Empreendedorismo

Mudança cultural e estímulos são fundamentais para aproximar universidades do mercado

Mesmo com leis e programas de incentivo, como o Catalisa ICT, há desafios a serem superados

Mercado e universidade
A startup Zeta Venom surgiu, neste ano, a partir de pesquisa da biomédica e imunologista Manuela Pucca./Acervo Pessoal

Em 2001, o coordenador do Laboratório de Genômica e Bioenergia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Gonçalo Pereira, pediu tempo parcial de dedicação à universidade para empreender e se dedicar à criação da Granbio, fabricante de etanol de segunda geração. Foi concedido a ele uma licença temporária de quatro anos e, caso ele resolvesse ficar por mais tempo fora, corria o risco de perder o emprego de pesquisador e professor universitário, o que o fez retornar à instituição com dedicação exclusiva depois de transcorrido o tempo autorizado para a licença.

Nesses quatro anos, mesmo com redução salarial, foi o período em que o laboratório sob sua responsabilidade mais produziu. “O empreendedorismo abriu meus horizontes: as linhas de pesquisa aumentaram e o laboratório aumentou de tamanho e ficou mais produtivo”, conta Pereira. “Além disso, aprendi a interagir com empresas, aprendi como elas funcionam. Esse perfil é raro no Brasil. Na academia, as pessoas são inteligentes, mas têm muita ingenuidade, sobretudo, nas relações com outras pessoas”, complementa.

A história de Pereira traduz um pouco os desafios que o Brasil ainda enfrenta na interação entre universidades e o mercado, embora o país tenha avançado a partir da Lei da Inovação e com a aprovação recente do Marco Legal das Startups.

Adriana Dantas, analista do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), lembra que, mesmo com a aprovação do marco legal da inovação, que promoveu avanços na interação entre academia e mercado, durante alguns anos houve insegurança jurídica já que universidades não contavam com estruturas de inovação, os chamados núcleos de inovação tecnológica (NITs). Mas essa realidade está mudando. “Agora a inovação está pujante sem tantas barreiras. Hoje o acadêmico pode ser sócio de empresas, o que antes era proibido”, complementa Adriana.

Gonçalo Pereira reconhece os avanços e destaca que o desafio maior no momento é tornar a legislação mais efetiva e divulgá-la. “O passo seguinte é promover uma transformação cultural dentro das universidades, de valorização da habilidade empreendedora de cientistas”, afirma.

Prova da desconexão das agendas científica e de inovação, segundo o pesquisador, é o Brasil ser o 12º país em produção de artigos científicos e estar na 59ª posição no ranking mundial de competitividade da escola de administração de Lausanne, na Suíça, com queda em indicadores relacionados à inovação.

“A ciência é a compreensão dos problemas e a inovação, a sua resolução. Esses dados mostram que o Brasil está compreendendo bem os problemas, mas entregando o problema para outros países resolverem, inovando e agregando valor a seus produtos”, completa.

Segundo Lara Franco, analista do Sebrae, a valorização de produção de conteúdos acadêmicos é importante para disseminar conhecimento, mas poderia ser complementada. “Temos de olhar para outros modelos, como o norte-americano que valoriza pesquisadores por quantidade de depósito de patentes e criação de startups”, afirma Lara Franco.

Programas apoiam a conexão 

Para incentivar a maior aproximação de universidades com as demandas do mercado, entidades privadas como o Sebrae e o Instituto Euvaldo Lodi (IEL), especializada em iniciativas de interação universidade-indústria, contam com programas que estimulam essa conexão. Entre as iniciativas estão o Catalisa ICT, do Sebrae, que apoia a aceleração de negócios inovadores de base tecnológica a partir de pesquisas de mestres e doutores, e o Inova Talentos, do IEL, que apoia a implementação de projetos tecnológicos inovadores de acadêmicos nas empresas.

“Mesmo com o crescimento de startups, o Brasil ainda estimula muito pouco o empreendedorismo e conta com quantidade insuficiente de profissionais nas áreas tecnológicas em relação a outros países”, afirma o superintendente do IEL, Eduardo Vaz. Segundo ele, para superar a lacuna de formação de profissionais nas áreas tecnológicas, é preciso ter mais incentivo à formação técnica. Ele destaca que a média de jovens que cursam a educação técnica chega a 50% em países da OCDE e 70% na Alemanha. No Brasil, a proporção é de apenas 9%.

Além dessa ênfase na formação técnica e tecnológica, é preciso preparar os pesquisadores para inovar. “Eles precisam de conhecimento de mercado e regulamentação, fomento e espírito empreendedor para vencer o chamado ‘vale da morte’ [momento entre o desenvolvimento do produto e a sua inserção no mercado]”, destaca Adriana.

Para ajudar a superar essa barreira, há dois anos o Sebrae criou o Catalisa ICT, que aproxima a academia e o mercado por meio do apoio em gestão, mentorias, recursos financeiros a projetos de inovação e do acesso a investidores. A jornada de aceleração é feita em aproximadamente quatro anos e é dividida em quatro etapas: mobilizar e despertar para empreender; aprender e estruturar; desenvolver e testar; e inovar e escalar.

Até o momento, foram investidos R$ 40 milhões e selecionadas mil pesquisas com potencial de inovação, sendo 42% delas feitas por mulheres. Foram capacitados ainda cerca de 3 mil pesquisadores em cursos para estruturação de negócio e em empreendedorismo inovador.

Segundo Lara, o Catalisa ICT “pega na mão” do pesquisador para apresentá-lo ao universo do empreendedorismo. “Eles param de falar o ‘tecnicês’ da tese acadêmica para falar a linguagem de mercado, investidores e startups. Passam a focar na demanda do cliente e não na solução que querem oferecer”, complementa Lara que, juntamente com Adriana, e mais dois colaboradores coordenam a iniciativa em âmbito nacional.

Com histórico longo na promoção da interação indústria-universidade, o IEL trabalha também com o estágio, tanto no ensino médio e técnico quanto no superior, além do Programa Inova Talentos. Segundo Vaz, essas iniciativas trazem benefícios tanto para estudantes quanto para empresas e universidades.

“A indústria ganha com a aceleração da transformação do conhecimento em tecnologia; a universidade tem a chance de participar de solução de problemas reais e adequar currículos; e estudantes podem realmente aprender e saber lidar com a realidade profissional”, diz Vaz.

Projetos da universidade para o mercado

Uma plataforma para gestão de projetos colaborativos, fruto de um projeto de doutorado de Isabela Piccirilo, da Escola de Engenharia de Produção de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP), que deu origem à startup Lotik, é um dos destaques do programa Catalisa ICT. “O intuito é tornar mais simples a gestão de contratos, ter rastreabilidade de propriedade intelectual e reduzir a quebra dos pactos em um cenário mais complexo de crescimento de parcerias entre universidades, startups e grandes empresas”, conta Isabela.

Quando começou a pesquisa, há pouco mais de quatro anos, Isabela não imaginava que conseguiria tirar o projeto do papel. Foi em uma oportunidade de apresentar o trabalho na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, que ela teve claro o potencial de mercado da tecnologia, quando diretores de empresas líderes no mercado perguntaram se ela já tinha uma startup para desenvolver o produto.

Isabela já passou pela primeira fase do Catalisa ICT, voltada a capacitações para construir o modelo de negócios, e agora está na segunda fase, em que irá preparar o produto para ir para o mercado. Em 12 meses, recebe um aporte de R$ 150 mil para investir em pessoal (R$ 130 mil) e estrutura (R$ 20 mil) para dar continuidade às pesquisas e realização de testes do produto. Entre os destaques do programa, na visão da Isabela, estão as comunicações recebidas dos gestores do Catalisa sobre oportunidades de financiamento tecnológico.

O bom andamento do projeto permitiu que a Lotik fosse selecionada recentemente para o StartOUT, programa para internacionalização de startups da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.

Asfalto ecológico

Outra iniciativa apoiada pelo Catalisa ICT é a de um ligante asfáltico constituído por polímeros combinados com grafeno e borracha reciclada. O produto substitui o betume produzido com petróleo, que é altamente poluente. A ideia de trabalhar com grafeno surgiu quando Henrique Geraldino, que cursava doutorado em Química pela Universidade Estadual de Maringá, conseguiu dar escala à produção de grafeno, que na época era importado e tinha um preço muito elevado.

Assim, surgiu a startup CarbonExplore que conta hoje com outro sócio, Wellington Vitti, que cuida da gestão comercial e administrativa, enquanto Geraldino é responsável pela produção e pesquisa do negócio.

Geraldino conta que hoje já se produz no Brasil grafeno de qualidade, porém isso ainda não é tão difundido e muitas empresas optam pela importação. “A CarbonExplore possui, além do grafeno, mais oito produtos em seu portfólio, entre eles tintas e revestimentos de aplicação industrial”, relata.

Em relação ao ligante asfáltico ecológico, Geraldino diz que a ideia é encerrar os testes do produto até o fim do ano para que já esteja no mercado no próximo ano. Vitti diz que, por ser atóxico e não possuir derivados de petróleo, o ligante asfáltico terá demanda crescente nos próximos anos. Ele aposta que, entre as principais aplicações, estarão condomínios fechados criados em conceitos sustentáveis, pistas de caminhada em parques ecológicos, e não descarta a possibilidade de ver o ligante aplicado em rodovias.

Geraldino destaca que o Catalisa ICT/Sebrae é muito importante, pois cria conexões entre o pesquisador acadêmico e a indústria, algo que era bem difícil de acontecer antigamente. “Atualmente existem muitas pesquisas sendo desenvolvidas nas universidades brasileiras, gerando uma quantidade expressiva de conhecimento. E a maioria delas possui potencial para virar negócios inovadores.”

Inovação contra veneno de cobras

A startup Zeta Venom surgiu neste ano a partir de pesquisa da biomédica e imunologista Manuela Pucca, que hoje é professora na Universidade Federal de Roraima (UFRR). Ela criou a tecnologia Venom Block, que ainda está em fase de testes e é uma alternativa ao atual soro antiofídico usado em tratamento contra veneno de cobras. O tratamento neutraliza tanto a ação local, evitando necrose e amputação de membros, quanto o seu espalhamento pelo organismo.

Além disso, não será mais necessário fazer uso de cavalos na produção do antiveneno. Segundo Manuela, que nasceu e viveu grande parte de sua vida no estado de São Paulo, a inovação terá significativo impacto social na Amazônia e em Roraima, onde ocorrem mais de um caso de picada por serpente por dia e cerca de 600 casos por ano. “Diferentemente da Região Sudeste, no Norte os acidentes ofídicos são um problema grave de saúde pública, sendo Roraima o estado do Brasil com a maior incidência”, afirma a biomédica.

Ela complementa que lá as vítimas são frequentemente amputadas, os envenenamentos são graves e com manifestações clínicas únicas. “Ainda temos muitos indígenas com pouco acesso ao tratamento. Verificamos a necessidade de produzir um produto farmacêutico de maior eficácia e com portabilidade”, diz Manuela.

Antes de ingressar no programa Catalisa ICT, o projeto fez parte da iniciativa de pré-aceleração do Inova Amazônia, também do Sebrae, com o intuito de desenvolver startups de bioeconomia na Região Norte.

Segundo Manuela, com a participação nas iniciativas do Sebrae, ela foi capacitada para empreender e para ficar por dentro das oportunidades para alavancar o negócio, que entrou para o ranking das cem startups de 2022 da iniciativa Like a Boss. “O Sebrae ainda vem auxiliando na busca por investidores, inclusive internacionais. Estou muito feliz com os programas e com o Sebrae. Posso dizer que ele identificou o grande potencial do nosso produto.”