Aviação

Os impactos da cultura da judicialização no setor aéreo

Consequências da ampliação, pelo Poder Judiciário e órgãos de defesa do consumidor, dos deveres impostos pela regulamentação setorial às companhias aéreas

cofins, setor aéreo
Crédito: Unsplash

Há mais de 5 anos, entrava em vigor a Resolução n.º 400/2016, da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), que já tinha a finalidade de adequar o setor aéreo brasileiro às práticas e normas internacionais, de modo a tornar o setor mais atrativo para que novas companhias aéreas investissem e ingressassem no mercado brasileiro, bem como para estabelecer e assegurar o cumprimento a normas que promovam a segurança operacional e um ambiente de mercado competitivo na aviação civil.

Referida Resolução regulamentou, entre diversos outros temas atinentes ao setor aéreo, a permissão de cobrança pela franquia de bagagem e demais serviços opcionais, permitindo que o consumidor adquira apenas os serviços que necessita ou deseja, o que está alinhado com a prática internacional do setor aéreo. Afinal, a criação de uma regulação consistente com os padrões internacionais favorece o desenvolvimento e a segurança jurídica do setor, permitindo uma cada vez maior popularização do acesso ao transporte aéreo no Brasil e até mesmo o aumento da concorrência.

Contudo, apesar do grande avanço regulatório do setor para tornar o mercado mais flexível, organizado e seguro do ponto de vista regulatório, ainda assim há diversos entraves ao reconhecimento das normas regulatórias criadas pela ANAC –o que, por sua vez, impacta os resultados e os investimentos do setor.

A Resolução n.º 400/2016, da ANAC, ao regular as condições gerais do transporte aéreo, trouxe disposições bem claras sobre os deveres das companhias aéreas, inclusive no tocante às matérias que os consumidores mais demandam o Poder Judiciário, tais como alterações nos horários dos voos (artigo 12), atrasos e cancelamentos de voos (artigos 20, 21, 26 e 27), extravio de bagagens (artigos 32 e 33), preterição de embarque (artigo 24) e no-show (artigo 19).

No entanto, apesar da regulação pelo órgão competente, é comum nos depararmos com decisões judiciais e administrativas ampliando os deveres das companhias aéreas para além dos constantes na norma regulatória setorial, assim como concedendo indenizações por danos morais em situações, como dito, já reguladas.

Trata-se, na realidade, de espécie de ampliação de deveres das companhias aéreas, que acabam por serem obrigadas a prestarem indenizações e a cumprirem obrigações para além do que determina a norma que regulamenta o setor. E isso, por sua vez, gera estímulos à judicialização excessiva das companhias aéreas; afinal, ainda que haja norma autorizando a companhia aérea a atuar de determinada maneira, o fato de existirem decisões judiciais ampliando seus deveres faz com que cada vez mais consumidores busquem algum tipo de reparação perante o Poder Judiciário.

Veja-se que, aqui, não se está tratando de nenhum tipo de impedimento ao direito de ação dos consumidores, nem tampouco de defender que as companhias aéreas não deveriam ser demandadas; a questão aqui tratada refere-se essencialmente àquelas situações em que, muito embora tenha de fato havido observância às normas de regulação do setor, ainda assim há condenação a obrigações adicionais, seja via judicial ou por meio da atuação de órgãos de defesa dos consumidores.

Em um exemplo prático, em um único voo, cujo atraso esteja dentro dos parâmetros previstos na Resolução n.º 400/2016, é possível que a companhia aérea, mesmo tendo cumprido as obrigações de assistência impostas pela norma, sofra sanção administrativa de órgãos de defesa do consumidor, bem como responda por ações individuais de todos os passageiros.

De acordo com a ANAC¹, em 2021, os custos e despesas dos serviços aéreos totalizaram R$ 36,2 bilhões, sendo que 2,1% representam gastos com assistência a passageiros, indenizações extrajudiciais e condenações judiciais, o que equivale a aproximadamente R$ 760 milhões. O percentual de despesas decorrentes de indenizações em processos judiciais ou administrativos, por sua vez, é equivalente ao percentual gasto com as tarifas aeroportuárias (2,4%), cabendo destacar que as tarifas aeroportuárias brasileiras são consideradas umas das mais altas do mundo.

Nesse mesmo sentido, conforme dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça², o Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (IBAER) apurou, no ano de 2021, que 98,5% das ações cíveis no mundo contra as companhias aéreas estão concentradas no Brasil.

No entanto, ao compararmos o número de judicialização com o número de voos domésticos cancelados ou que sofreram atrasos em 2021 no Brasil, verifica-se uma verdadeira discrepância. Segundo dados disponibilizados pela ANAC, apenas 3,4% dos voos domésticos foram cancelados em 2021, e 1,9% dos voos sofreram atrasos superior a 60 minutos³, o que representa um número extremante razoável frente ao cenário mundial, ainda mais levando em conta o cenário de crise ocasionado pela pandemia da Covid-19, existente à época da obtenção dos dados.

Além disso, em estudos recentes, a ANAC estimou que o custo anual do setor aéreo com judicializações já alcança R$ 1 bilhão⁴, o que demonstra o progressivo aumento de valores despendidos pelas empresas do setor em demandas judiciais.

Todos esses dados, somados aos fatores expostos acima que ocasionam um estímulo à judicialização envolvendo companhias aéreas (cumprimento da regulamentação setorial e majoração da obrigação imposta à companhia aérea), demonstram que se estruturou no Brasil uma espécie de “cultura litigiosa” no setor aéreo. Não há dúvidas de que essa cultura (“indústria da indenização”), que possui cifras tão representativas para o setor, impacta diretamente os resultados, desestimula investimentos e impacta o preço final.

Vale referir que o ônus enfrentado pelas empresas aéreas brasileiras é desproporcional inclusive quando comparado a empresas do setor aéreo em nível internacional. Conforme estudo realizado pela IATA, “a chance de uma empresa aérea ser processada no Brasil é 5.836 maior que nos Estados Unidos”⁵. A IATA destaca que “nos Estados Unidos 1 ação judicial é gerada a cada 7.883 voos operados, a mesma empresa operando no Brasil sofre 1 ação judicial a cada 1,35 voos⁶”.

Isto ocorre, entre diversos fatores, pois os custos a serem contingenciados com demandas judiciais e administrativas são altíssimos, o que reduz os resultados e o interesse por maiores investimentos e desenvolvimento do setor. Isso tudo sem falar no impacto gerado no valor final das passagens aéreas, que sofre as consequências dos altos custos do serviço.

Nesse sentido, também não há como negar que as dificuldades enfrentadas pelas companhias aéreas brasileiras, decorrentes da alta judicialização e da ampliação dos deveres impostos nas normas setoriais por parte dos órgãos de defesa do consumidor e do Poder Judiciário, tendem a afastar investimentos externos.

A título de exemplo, o superintendente de Acompanhamento de Serviços Aéreos da ANAC⁷, Ricardo Catanant, reportou que há relatos de empresas aéreas como a Fly Bond, que em três meses de operação no Brasil já havia recebido a mesma quantidade de demandas judiciais que em todo o seu período de atuação na Argentina (à época, a empresa já atuava havia três anos no país), onde se iniciou a sua operação. Esse é um excelente exemplo de uma empresa low-cost encontrou óbices à atuação no mercado brasileiro devido ao alto custo de operação.

Nesse mesmo sentido, Dany Oliveira⁸, diretor-geral da IATA, já concluiu assertivamente que: “É muito difícil operar no Brasil. O custo é grande. Temos uma judicialização forte para todo o setor. Além disso, um dos combustíveis de aviação mais caros do mundo”.

Portanto, o que se percebe é que, apesar das boas intenções da ANAC em regulamentar o setor, trazendo segurança jurídica às operações, em observância às boas práticas operacionais, ainda assim as companhias aéreas brasileiras se veem diante de um estímulo cada vez maior à judicialização –que se justifica pela imposição, administrativa e judicial, de obrigações para além daquelas previstas na regulamentação. Isso gera impactos diretos nos resultados das empresas e, no que diz respeito ao setor, impacta diretamente seu crescimento e maior disponibilização ao mercado consumidor.

Referências

  1.  https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/dados-e-estatisticas/mercado-do-transporte-aereo/painel-de-indicadores-dotransporte-aereo/painel-de-indicadores-do-transporte-aereo-2021
  2. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/05/cartilha-transporte-aereo-CNJ_2021-05-20_V10.pdf
  3. https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/dados-e-estatisticas/mercado-de-transporte-aereo/anuario-do-transporteaereo/anuario-do-transporte-aereo
  4. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/06/02/internas_economia,860327/judicializacaono-setor-aereo-atinge-r-1-bilhao-diz-diretor-da-iata.shtml
  5.  https://valordaaviacao.org.br/judicializacao/
  6.  https://valordaaviacao.org.br/judicializacao/
  7.  https://www.agenciainfra.com/blog/custo-da-judicializacao-no-setor-aereo-e-de-r-1-bi-ao-ano-apontam-diretoresda-anac/
  8. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,aereas-de-baixo-custo-ja-pensam-em-deixar-brasil,70003190833