O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em sua atribuição legal de dar transparência e publicidade às informações relativas à atuação do Poder Judiciário brasileiro publica a cada ano o Relatório Justiça em Números, no qual há um capítulo denominado “Demandas mais recorrentes segundo a classe e os assuntos”.
Interessante observar que a cada ano, na classe Justiça Estadual, dentre aproximadamente 2.286 temas diferentes, a Indenização por Dano Moral encabeça a lista dos 5 (cinco) temas mais recorrentes, seja na Justiça Comum Estadual seja nos Juizados Especiais.
De acordo com o “Relatório Justiça em Números 2021”, o tema Direito do Consumidor – Responsabilidade do Fornecedor/Indenização por Dano Moral aparece em segundo lugar do ranking com 1.655.989 demandas distribuídas no país, representando 3,15% das demandas da competência da Justiça Estadual em geral.
Os relatórios demonstram que ano a ano as ações de indenização por dano moral se mantêm no topo das demandas, o que nos leva de volta à preocupação externada pela Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 1.426.710 – RS (publicado no – DJe: 09/11/2016), afirmando a existência de uma “tendência de vulgarização e banalização da reparação por danos morais” e, mais, que “cumpre aos julgadores resgatar a dignidade desse instituto que conforme nos ensina CAHALI, foi penosamente consagrado no direito pátrio”. Segundo a Eminente Ministra, “Esse resgate passa, necessariamente, por uma melhor definição de seus contornos (do dano moral) e parcimônia na sua aplicação, para invocá-lo apenas em casos que reclamem a atuação jurisdicional para o reparo de grave lesão à dignidade da pessoa humana.”
A Ilustre Ministra cita em suas razões de decidir o grande Calmon de Passos que assim expressou sua preocupação com a banalização dos pedidos de indenização por dano moral:
“Assim como já existiram carpideiras que choravam a dor dos que eram incapazes de chorá-la, porque não a experimentavam, também nos tornamos extremamente hábeis em nos fazermos carpideiras de nós mesmos, chorando, para o espetáculo diante dos outros, a dor que em verdade não experimentamos. A possibilidade, inclusive, de retirarmos proveitos financeiros dessa nossa dor oculta, fez-nos atores excepcionais e meliantes extremamente hábeis, quer como vítimas, quer como advogados ou magistrados. (CALMON DE PASSOS. O imoral nas indenizações por dano moral. In: Revista Magister de direito civil e processual civil. Porto Alegre, v. 5, n. 26, p. 47–60, set./out., 2008)
A partir da CF de 1988, que garantiu o direito à reparação do dano moral, o Judiciário, inclusive o STJ, que é a Corte responsável por uniformizar e interpretar a lei federal, se viu obrigado a se posicionar sobre situações, que apesar de desagradáveis, não acarretam abalo psicológico a ensejar dano moral, como por exemplo: a espera por 48 minutos em uma fila (Resp nº 1.823.471 – RO, Publicação: DJ 16/08/2019), a compra de eletrodomésticos com defeitos¹; a não entrega de produto adquirido online; o atraso de 5 (cinco) horas em voo doméstico, dentre outros.
Pedidos como os acima exemplificados foram sucessivamente apreciados e rejeitados por não restar comprovado o necessário abalo moral ou psíquico que caracterize o dano moral, tratando-se de “aborrecimento, sem consequências graves, por ser inerente à vida em sociedade -notadamente para quem escolheu viver em grandes centros urbanos -, é insuficiente à caracterização do abalo, mero dissabor do cotidiano².
Exatamente por conta dessa avalanche de pedidos desprovidos de justa causa, a Lei 14.034/20 implementou reformas definitivas no Código Brasileiro de Aeronáutica – Lei 7.565/86 – “CBA”, no que se refere à responsabilidade civil do transportador para EXPRESSAMENTE afastar o conceito do dano moral “in re ipsa”, dispondo que “a indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga.”.
Referida alteração legislativa vai ao encontro da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “na hipótese de atraso ou cancelamento de voo operado por companhia aérea, não se vislumbra que o dano moral possa ser presumido em decorrência da mera demora e eventual desconforto, aflição e transtornos suportados pelo passageiro. Isso porque vários outros fatores devem ser considerados a fim de que se possa investigar acerca da real ocorrência do dano moral, exigindo-se, por conseguinte, a prova, por parte do passageiro, da lesão extrapatrimonial sofrida.”
Infelizmente, essa preocupação externada pela Ministra Nancy Andrighi, em nome do Superior Tribunal de Justiça e consolidada na citada legislação, não tem sido compartilhada em muitos julgados das instâncias inferiores do Poder Judiciário que reconhecem o dano moral in re ipsa, afastando a necessidade de sua efetiva demonstração. E mais, condenando fornecedores a indenizarem por danos morais decorrentes de situações que, apesar de desagradáveis, representam mero dissabor.
É tempo de se repensar sobre a responsabilidade da sociedade e do próprio Poder Judiciário. Isto porque, a sociedade reclama constantemente da “demora do Judiciário”, mas, de outro lado, não se esquiva de “chorar”, como diz Calmon de Passos, “uma dor que não experimentou”. Por sua vez, ao acolher pedido que se resume à expressão in re ipsa, o Poder Judiciário, sem perceber, estimula a litigiosidade, sendo o pedido de indenização por danos morais mal utilizado ou utilizado às avessas, não para o fim de minimizar a dor, mas como meio fácil de se monetizar uma dor que não existiu.
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¹…..Com efeito, em que pese seja incontroverso o vício do produto apresentado, a mera hipótese de descumprimento ou má-execução do contrato, por si só, não configura dano moral indenizável, cabendo ao autor comprovar lesão aos direitos da personalidade ou grave desconsideração” (TJ-RS – Recurso Cível: 71007690126 RS, Relator: Mara Lúcia Coccaro Martins Facchini, Data de Julgamento: 29/05/2018, Primeira Turma Recursal Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 04/06/2018)
² RESPONSABILIDADE CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. ATRASO EM VOO DOMÉSTICO NÃO SIGNIFICATIVO, INFERIOR A OITO HORAS, E SEM A OCORRÊNCIA DE CONSEQUÊNCIAS GRAVES. COMPANHIA AÉREA QUE FORNECEU ALTERNATIVAS RAZOÁVEIS PARA A RESOLUÇÃO DO IMPASSE. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. 1. . O cerne da questão reside em saber se, diante da responsabilidade objetiva, a falha na prestação do serviço – atraso em voo doméstico de aproximadamente oito horas – causou dano moral ao recorrente. 2. A verificação do dano moral não reside exatamente na simples ocorrência do ilícito, de sorte que nem todo ato desconforme ao ordenamento jurídico enseja indenização por dano moral. O importante é que o ato ilícito seja capaz de irradiar-se para a esfera da dignidade da pessoa, ofendendo-a de maneira relevante. Daí porque doutrina e jurisprudência têm afirmado, de forma uníssona, que o mero inadimplemento contratual – que é um ato ilícito – não se revela, por si só, bastante para gerar dano moral. 5. O aborrecimento, sem consequências graves, por ser inerente à vida em sociedade -notadamente para quem escolheu viver em grandes centros urbanos -, é insuficiente à caracterização do abalo, tendo em vista que este depende da constatação, por meio de exame objetivo e prudente arbítrio do magistrado, da real lesão à personalidade daquele que se diz ofendido. (omissis). 6. Ante a moldura fática trazida pelo acórdão, forçoso concluir que, no caso, ocorreu dissabor que não rende ensejo à reparação por dano moral, decorrente de mero atraso de voo, sem maiores consequências, de menos de oito horas – que não é considerado significativo -, havendo a companhia aérea oferecido alternativas razoáveis para a resolução do impasse. 7. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1269246/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 20/05/2014, DJe 27/05/2014)