

Os assustadores e crescentes números de demandas judiciais promovidas contra companhias aéreas no Brasil merecem uma profunda reflexão de todos nós.
Entre muitos fatores que estimulam a judicialização, evidenciamos elevado número de indenizações sentenciadas sem o respaldo legal, bem como a ausência de custas e riscos sucumbenciais em primeira instância nos Juizados Especiais.
Para nossa análise como intérpretes do direito, trazemos à reflexão conceito primário e indiscutível, como princípio basilar de uma sociedade justa e democrática:
“A fonte imediata do direito é a lei” – Clóvis Bevilacqua
Assim, a construção de um ambiente de negócios transparente e equilibrado depende de sólida base legal, o que nosso ordenamento jurídico já contempla e, indubitavelmente, deve ser aclamado e obedecido.
A aviação é reconhecida por estar entre as atividades mais reguladas do mundo, notadamente em relação ao aspecto segurança operacional. É cediço que há regras para todos os detalhes operacionais, dos mais aparentemente irrelevantes até os mais fundamentais à segurança do voo. E não poderia ser diferente, a prioridade é sempre a preservação da segurança da operação aérea e, por óbvio, das vidas transportadas.
Portanto, merece total respeito o intransigente cumprimento das normas mundialmente estabelecidas e permanentemente aperfeiçoadas. E, em nome da prevenção de acidentes aeronáuticos é que se impõe todo rigor no cumprimento das exigências para que operação aérea ocorra de maneira segura e eficaz.
O artigo 87 do CBAer – Código Brasileiro de Aeronáutica determina que:
“a prevenção de acidentes aeronáuticos é da responsabilidade de todas as pessoas, naturais ou jurídicas, envolvidas com a fabricação, manutenção, operação e circulação de aeronaves, bem como as atividades de apoio da infraestrutura aeronáutica no território brasileiro”.
Entretanto, em razão do imprevisível, planos originalmente estabelecidos através do contrato de transporte pactuado, podem se modificar, causando atrasos ou, até mesmo, o cancelamento de operações aéreas, por conta de fatos motivados pelo fortuito e força maior.
Caso fortuito ou força maior são matérias conhecidas e admitidas desde os primórdios do estudo do direito romano, especialmente dentro do conceito fatalista que caracterizava o pensamento daquela época.
- De modo geral, o caso fortuito (ou força maior) era o acontecimento decorrente da natureza ou de fato do homem, por via de regra imprevisível, a que o devedor não podia resistir, e que acarretava a impossibilidade objetiva da prestação. (ALVES, José Carlos M. Direito Romano. Grupo GEN, 2021. – Pág. 410).
Assim, partindo-se do pressuposto que o direito reconhece, histórica e globalmente, que existem forças imprevisíveis que impedem o cumprimento da obrigação, com isenção da responsabilidade civil, estamos à frente de matérias sedimentadas e incorporadas de forma perene e secular nos estudos do direito. Encontramos as mesmas excludentes de responsabilidade no ordenamento jurídico de muitos países como Argentina, Colômbia, Equador, Japão, Suíça, Itália, Portugal, Espanha, França, Estados Unidos (circunstâncias além de seu controle) entre muitos outros.
Tanto o caso fortuito, como a força maior, são matérias incontroversamente admitidas como excludentes de responsabilidade daquele que se obrigou a cumprir algo sem ressalva especial. Desde a Convenção De Varsóvia (Decreto 20.704/1931) e Montreal (Artigo 19 – Decreto 5910/2006) é contemplada a excludente de responsabilidade se o transportador provar que lhe foi impossível adotar medidas para evitar danos ao passageiro.
O Código Civil de 1916 no artigo 1058, bem como o atual Código Civil no artigo 393, estabelecem as excludentes de responsabilidade (caso fortuito ou força maior).
Como atividade empresarial precípua, portanto, cumpre ao transportador aéreo disponibilizar ao passageiro o meio de transporte adequado e seguro a cumprir o contrato pactuado (artigo 730 Código Civil), cumprindo as exigências legais e operacionais que lhe correspondam. Fatores externos e incontroláveis, alheios à ação direta do transportador rompem o nexo de causalidade e afastam definitivamente a responsabilidade do transportador e, por consequência, o dever de indenizar.
A teoria da causalidade adequada define com clareza a necessidade de se aferir a existência do nexo causal, ou seja, se o alegado dano é efeito necessário e adequado de uma ação ou omissão.
Tratar toda e qualquer ação de um transportador aéreo como causadora de dano sem objetiva análise do liame causal é tornar a atividade empresarial uma aventura sem regras e sem limites de responsabilidade – não há no sistema legal brasileiro direito à indenização sem causa, ou em caráter meramente punitivo, e sem prova do alegado dano.
A conferir inegável vigência aos seculares conceitos, sobreveio a Lei nº. 14.034 de 05/08/2020, introduzindo modificações ao Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº. 7.565/1986), com destaque ao novel artigo 256 que reafirma, categoricamente, as hipóteses de caso fortuito ou força maior, a saber:
§ 1º O transportador não será responsável:
II – no caso do inciso II do caput deste artigo, se comprovar que, por motivo de caso fortuito ou de força maior, foi impossível adotar medidas necessárias, suficientes e adequadas para evitar o dano.
§ 3ºConstitui caso fortuito ou força maior, para fins do inciso II do § 1º deste artigo, a ocorrência de 1 (um) ou mais dos seguintes eventos, desde que supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis:
I – … condições meteorológicas;
II – … indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária;
III – … determinações da autoridade de aviação civil ou de qualquer outra autoridade ou órgão da Administração Pública;
IV – … decretação de pandemia;
(grifamos)
Sentimos, lamentavelmente, timidez e relutância do Poder Judiciário na aplicação das normas que regulamentam o contrato de transporte aéreo no Brasil, embora, à toda evidência, estarmos à frente do conceito legal que o rompimento do nexo de causalidade, em razão do caso fortuito ou força maior, é o permissivo à isenção de indenização, mesmo quando o dano for concretamente comprovado. O imprevisível é circunstância totalmente alheia à possibilidade de gestão do transportador, o que se traduz pela ausência do nexo causal obrigatório a se justificar a responsabilidade reparatória.
Tipifica-se, claramente, como fortuito ou força maior a manutenção imprevista e não programada em aeronaves, visando preservar a segurança dos passageiros, tripulação e da população em terra, fato que por si só, rompe o nexo de causalidade ao se caracterizar como caso fortuito ou força maior.
O risco do negócio, ou fortuito interno, reside apenas no descumprimento das obrigações legais e regulamentares da operação, estas sim passíveis de previsibilidade, incluídas nesta hipótese a manutenção ordinária e preventiva da lei, por sua natureza mandatória e previsível.
Nesse mesmo sentido, em brilhante artigo publicado na Revista do Advogado da Associação dos Advogados de São Paulo (nº. 142 de junho 2019), o ex-ministro do STF Francisco Rezek se manifestou a respeito da relutância do Poder Judiciário em aplicar as normas internacionais que o Brasil é signatário, como é o caso da Convenção de Montreal:
(…) O desprezo dos limites convencionais da responsabilidade do transportador aéreo, o barateamento do conceito de dano moral, a determinação da responsabilidade objetiva, a afirmação abstrusa de que o regulamento internacional se aplica a determinadas situações e não a outras – embora todas sejam integrantes do escopo dos tratados que regem a matéria – e, por último, a inovação forense de critérios que o direito convencional expressamente veda e que o próprio direito interno desconhece, como a condenação punitiva ou didática, vêm sendo as errôneas de maior incidência nos últimos anos (…)
A inequívoca quebra do nexo de causalidade, que podemos traduzir como o rompimento do vínculo entre ação e o dano comprovado, está definida na lei, ou seja, temos a segurança jurídica almejada. Crucial que o Judiciário observe e aplique a legislação brasileira em vigor, e igualmente definida nas convenções internacionais que permitem o necessário equilíbrio e harmonia nas relações jurídicas entre empresas aéreas e países onde operam.
Não há como avaliar qualquer situação in concreto passando-se ao largo da análise do nexo de causalidade, especialmente se estivermos frente ao rompimento deste liame em razão da constatação de caso fortuito ou força maior.
Ao desprezarmos a força da lei, nos deparamos com verdadeiro estímulo a mais e mais ações judiciais e um desestímulo a novos operadores aéreos no Brasil, na medida que se implantou um sistema de afronta à Lei e contrariedade aos basilares e históricos conceitos do ordenamento jurídico brasileiro e, também, ao sistema das Convenções Internacionais aplicáveis.
Estimular, ainda que implicitamente, mais e mais demandas judiciais cria barreiras a novos investidores, deixando, assim, de gerar mais riquezas e competitividade empresarial, em razão do inseguro ambiente de negócios formado. Novos operadores e investidores se mostram indignados e se surpreendem com a forma como o Brasil está tratando o tema.
Por isso, vale a pena refletir sobre a situação da verdadeira indústria indenizatória, inclusive do dano moral sem provas, instalada no Brasil, esperando que nosso Judiciário abrace e acolha a legislação em vigor em nome de uma Sociedade justa e moderna.