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A admissão da ‘força maior’ na interdição do aeroporto de Fernando de Noronha

Na contramão do histórico de danos morais, Judiciário tem entendido que não cabe indenização a consumidores por esse episódio

Foto: Unsplash

É fato público e notório, por meio da Portaria 9.433/SIA, expedida pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que desde o dia 12 de outubro de 2022, aeronaves com motores à reação (turbo-jato) estão impedidas de operar no aeroporto de Fernando de Noronha (PE). A razão é a deterioração da pista de pouso e decolagens do aeródromo, cuja manutenção é de responsabilidade da administradora aeroportuária.

Referida medida teve como objetivo a segurança das operações locais, preocupação, portanto, legítima e que não poderia tardar para que fosse implementada o mais rapidamente possível, para preservar a segurança dos passageiros.

Por apenas possuir em sua frota aeronaves fabricadas pela Boeing, todas com motor turbo-jato, a partir de então a Gol ficou impedida de realizar quaisquer outros voos com destino ou origem em Fernando de Noronha.

Como resultado do fechamento do aeródromo, não apenas a oferta de voos foi reduzida, mas houve também uma crise de abastecimento local, o que foi noticiado por veículos de imprensa na ocasião.1

Sob o ponto de vista legal, a interdição da pista do aeroporto – que se mantém até os presentes dias – não escapou de ser alvo de um fenômeno recente em nosso Poder Judiciário, que tanto impacta o setor aéreo: a judicialização excessiva.

Isso acontece ainda que se trate de clara hipótese de força maior, cuja excludente de ilicitude está positivada em diversos dispositivos legais2 (art. 14, § 3º, II, do Código de Direito Civil; art. 256, §1º e §3º, incisos II e III do Código Brasileiro de Aeronáutica; arts. 734 e 737, além do próprio art. 393 do Código Civil).

Dados levantados até o momento apontam que apenas esse evento específico em Noronha ensejou a distribuição de ao menos 170 ações judiciais, propostas por consumidores de todo o Brasil somente em face da Gol.

Esses números, como dito, endossam aquilo que se tornou uma realidade – a princípio sem solução a curto e médio prazos –, e que vem sendo vivenciada em nosso Judiciário, de distribuição desenfreada de ações judiciais quando o assunto é a aviação civil comercial.

Infelizmente, ainda são um estímulo à judicialização, que segue cada vez maior, o pouco conhecimento por parte dos operadores do Direito e dos próprios consumidores a respeito da complexidade envolvida nas operações das companhias aéreas, somado a outros fatores, tais como, o fácil e gratuito acesso à Justiça por meio dos juizados especiais cíveis; a concessão do benefício da gratuidade de Justiça a quem não comprova a hipossuficiência; a ideia de lucro fácil e o histórico de vultosas indenizações por danos morais (por mais banal que tenha sido o problema); a cessão de direitos de ação e o uso de “lawtechs” (aplicativos abutres) para captação (ilegal) de clientes que tenham sofrido algum tipo de dissabor pelo serviço prestado pelas companhias aéreas.

Na contramão desse cenário desalentador, porém, em relação ao episódio debatido neste artigo, nosso Judiciário tem entendido que nem sempre o consumidor terá razão e deverá ser indenizado nas reclamações voltadas contra companhias aéreas.

Contudo, é importante salientar que, no caso específico da interdição do aeródromo de Noronha, um fato que sem dúvida contribuiu para uma maior reflexão a respeito desse delicado tema, foi uma atuação in loco nas comarcas nas quais as ações foram distribuídas, o que possibilitou uma maior aproximação por parte da Gol junto aos magistrados locais.

Tal postura permitiu que fossem esclarecidas as peculiaridades deste evento, assim como os riscos (para a companhia aérea e os próprios passageiros) envolvidos, caso eventual decisão impusesse à Gol a manutenção de suas operações com aeronaves turbo-jato para a ilha.

Voltando aos números apontados anteriormente, das mais de 170 demandas judiciais ajuizadas em decorrência dos desdobramentos causados pela interdição da pista e da consequente suspensão das atividades pela Gol, até o momento, as decisões proferidas têm sido, em sua maioria absoluta, favoráveis à companhia aérea.

Isso porque, para esses casos, vem prevalecendo o entendimento segundo o qual as restrições aeroportuárias impostas configuram a ocorrência de caso fortuito externo ou motivo de força maior, que, como já ponderado anteriormente, são causas de exclusão da responsabilidade da companhia aérea. Vejamos.

Nos autos de um processo que tramita no Tribunal de Justiça do Sergipe (TJSE),3 por exemplo, foi proferida sentença reconhecendo que “no caso vertente, indiscutivelmente, a restrição aeroportuária (interdição da pista para aeronaves turbo-jatos) caracteriza motivo de força maior, excludente de responsabilidade, prevista no art. 393 do Código Civil”.

Já em outra ação,  no Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA),4 também nessa linha, o magistrado asseverou o seguinte: “Não se pode perder de vista que o fato ocorrido deve ser caracterizado como fortuito externo por romper o nexo causal entre a causa e o efeito do dano supostamente experimentado. Isto porque, a abrupta interrupção das aeronaves turbo-jato no aeroporto da ilha não deve ser inserida nos riscos inerentes à atividade prestada pelas empresas aéreas.” E prosseguiu: “Trata-se, em verdade, de evento imprevisível, mormente pela magnitude Portaria da Agência Reguladora.”.

Ainda nessa toada, há decisões que vão além, reconhecendo, também, que não restou alternativas à Gol senão interromper seus voos por não possuir aeronaves compatíveis com as operações de forma segura.

Tão importante quanto isso, em muitos desses casos se reconheceu que a companhia aérea cumpriu com o seu dever de informar previamente a todos os passageiros afetados, pelos canais de comunicação disponíveis, a respeito dos cancelamentos de seus voos, dando-lhes a possibilidade de reacomodação, remarcação ou reembolso dos valores pagos.

Em um cenário altamente judicializado e no qual as transportadoras aéreas, geralmente, são condenadas na maior parte das decisões, sem sombra de dúvidas é um alento e deve ser visto com algum entusiasmo o posicionamento majoritário do Poder Judiciário em relação ao caso de Fernando de Noronha.

Porém, é evidente que não se tratou do primeiro e nem será o último evento dessa natureza que impactará a aviação civil. Greves, acidentes com aeronaves na pista do aeroporto, vulcões em erupção, interdições por obras ou fechamento de aeroportos por mau tempo são também exemplos clássicos de ocorrência de força maior e que deveriam ser reconhecidos como um fortuito externo.

Em uma atividade altamente complexa e dinâmica, já que inúmeras variáveis (muitas delas imprevisíveis e inevitáveis) são enfrentadas a cada voo que decola e aterrissa, o que se espera dos operadores do direito é justamente entender e separar aquilo que realmente se enquadra como falha na prestação de serviço e um evento sobre o qual a companhia aérea não possuía qualquer ingerência e nada poderia fazer para contornar.

A aviação civil sofre (e continuará sofrendo) impacto de circunstâncias diversas que afetam os planos de seus passageiros. Diferenciar o que de fato está sob a responsabilidade e controle das companhias aéreas é fator essencial no combate à judicialização excessiva.

De todo modo, a resposta que vem sendo dada pelo Poder Judiciário é positiva, ao menos em relação ao fechamento do aeródromo de Fernando de Noronha, devendo servir como sinal de alerta e um desestímulo para aqueles que possuam qualquer pretensão de aventurar-se juridicamente na reprovável tentativa de obter ganho fácil através da condenável “indústria do dano moral”.

1. Folha de S.Paulo, Bandeirantes, Agência Folha.

2. Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Art. 256. O transportador responde pelo dano decorrente:
[…]
§ 1° O transportador não será responsável:
§ 3º Constitui caso fortuito ou força maior, para fins do inciso II do § 1º deste artigo, a ocorrência de 1 (um) ou mais dos seguintes eventos, desde que supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis:   
II – restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária; 
III – restrições ao voo, ao pouso ou à decolagem decorrentes de determinações da autoridade de aviação civil ou de qualquer outra autoridade ou órgão da Administração Pública, que será responsabilizada;   

Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.

Art. 737. O transportador está sujeito aos horários e itinerários previstos, sob pena de responder por perdas e danos, salvo motivo de força maior.

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

3. 0014799-51.2022.8.25.0084

4. 0166878-28.2022.8.05.0001