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‘Essa vaga não é para mulher ainda’: como o machismo opera no Poder Judiciário

Ao JOTA, oito magistradas, de primeiro e segundo graus e de tribunais superiores, contaram como enfrentam o machismo institucional

Crédito: Pixabay

A trajetória de mulheres que hoje se destacam no Poder Judiciário brasileiro é fruto de árdua batalha. Atualmente, o sistema para alcançar cargos em tribunais superiores funciona com duas características centrais: demanda uma dedicação colossal (jurisdicional e acadêmica) por parte dos profissionais e exige uma dedicação para tentar influenciar o jogo político das indicações. Com a dupla jornada tradicional das mulheres no país, dominar esse esquema é uma tarefa que parece impossível.

As poucas que conseguem ascender a postos de juízas federais, desembargadoras e ministras não deixam de enfrentar o machismo institucional do Judiciário brasileiro. Como distribuidoras de Justiça, elas devem fazer valer em seus julgados o direito à igualdade, previsto no artigo 5º da Constituição Federal. Mas, dentro do Poder Judiciário, precisam lutar ativamente para fazê-lo valer.

Oito magistradas, de primeira e segunda instância e de tribunais superiores,  contaram os desafios e questionamentos que enfrentam até hoje em um evento realizado nesta segunda-feira (23/11) pelo JOTA, em parceria com a Transparência Eleitoral Brasil.

O encontro, que celebrou os vinte anos da nomeação da ministra Ellen Gracie Northfleet no STF, debateu o tema “20 anos de mulheres no Supremo Tribunal Federal: conquistas e necessidade de avanços”. Participaram Clara Mota, juíza federal, Marília Sampaio, juíza do TJDFT, Mônica Vieira, juíza TJMG, Marcia Milanez, desembargadora do TJMG, Ana Maria Brito, desembargadora do TJDFT, Maria Elizabeth Rocha, primeira ministra a presidir o Superior Tribunal Militar, Delaíde Arantes, ministra do Tribunal Superior do Trabalho e Eliana Calmon, primeira ministra do Superior Tribunal de Justiça.

Do caso de uma juíza a quem um homem, como parte, não lhe dirigia a palavra durante a audiência, até o da ministra que enfrentou duas tentativas de ter o regimento interno do tribunal alterado para evitar que ascendesse à Presidência, as histórias explicam porque a palavra mais enfatizada no encontro foi perseverança.

“A audiência era por maus tratos. [A parte era] o padrasto de algumas crianças. Em primeiro lugar que as perguntas que eu fazia, o moço não respondia. Comecei a perceber no decorrer da audiência que o promotor ele respondia. Negociamos para ele seguir com a audiência. Então, o promotor perguntou ‘por que você não responde a juíza?’ ele respondeu: ‘porque na minha terra menino, mulher e cachorro não têm opinião'”, relatou Marília Sampaio, do TJDFT.

Mônica Vieira, juíza do TJMG, também passou por situação semelhante quando substituiu um juiz de uma vara da infância. “Eu estava sentada no lugar que fica o juiz e a parte não falava comigo, se negava a olhar para mim. É impressionante o quanto esse machismo está arraigado na sociedade. É disso que a gente está falando”.

Nem mesmo ter um cargo de ministra, um dos mais altos do Poder Judiciário, blinda a mulher de ter a sua capacidade questionada. De acordo com a ministra Maria Elizabeth Rocha, por duas vezes tentaram mudar o regimento interno do STM para impedir que ela fosse presidente da Corte. “Eu não apenas senti, como ainda sinto uma profunda discriminação dentro do meu tribunal […] mas eu me sinto merecedora do lugar que ocupo”, afirmou.

Eliana Calmon, primeira ministra a ser escolhida para ocupar uma vaga no STJ, relatou que quando se candidatou para o cargo em 1998, disseram a ela que a vaga ainda não deveria ser ocupada por uma mulher.

“Eu quando me candidatei a uma vaga de STJ, o que se dizia é que não era uma vaga ainda de mulher. Se entendia que eu, com o temperamento forte que tenho, minha linguagem direta e crítica ao Poder Judiciário, jamais chegaria ao STJ“, disse.

Base e topo do Judiciário

De modo unânime, as profissionais entendem que os problemas a serem enfrentados para um maior acesso de mulheres no Poder Judiciário demandam uma intensa transformação social, que não pode ser resolvida apenas com políticas afirmativas. Isso porque o desafio está em transformar a cultura e a mentalidade da sociedade, dentro das quais se inserem também os integrantes do Judiciário.

Há também a “questão de tempo para estudar”, segundo Ana Maria Brito, desembargadora do TJDFT. “A mulher tem mais dificuldade por causa da dupla jornada. Ela precisa de apoio”, afirmou Ana Maria, sobre as dificuldades no início da carreira.

Na avaliação dela, apesar dos avanços conquistados pela luta das mulheres, ainda hoje há inúmeros desafios para as novas gerações femininas que quiserem seguir carreira de magistrada – principalmente, se já estiver em fase de constituir família.

“Quando se passa para concurso de juiz, normalmente tem que assumir o cargo em alguma cidade do interior. O problema é: a mulher tem que ir para o interior e o marido com carreira na capital. E na Justiça Federal então? Qual marido vai acompanhar a mulher ou vai ficar na capital com os filhos? Há toda essa dificuldade. É trabalhar mais, ter uma conjuntura familiar muito peculiar para conseguir ficar na magistratura”, disse.

De acordo com Clara Mota, juíza federal, até mesmo o ingresso na base do Poder Judiciário tem hoje um desenho institucional que prejudica o desempenho feminino. “Depois da Emenda Constitucional 45, a gente passa a ter mulheres ingressando na magistratura com 29, 30 anos. Você já pega mulher em idade de constituição de família e fase reprodutiva. Isso já é um óbice em relação às mulheres que ingressaram ali com 26, 27 anos”.

No entendimento de Marcia Milanez, desembargadora do TJMG, outra questão que dificulta o desenvolvimento de mulheres na magistratura é a culpa. “A mulher quando avança muito na magistratura fica com uma culpa sobre marido e filhos. Ou ao contrário, não avança porque sabe que vai ter que dedicar. Nossa dupla jornada nos causa sim um certo prejuízo, porque o dia tem 24 horas”, disse a desembargadora.

Para ela, a geração atual que quer seguir carreira de magistrada também vai enfrentar as mesmas dificuldades. “Elas chegam no casamento com a situação profissional mais bem estabelecida, mas ai vão para maternidade. Vão ter as mesmas dificuldades que tivemos”.

Em relação ao trabalho político necessário para ingressar em tribunais superiores, Clara Mota defende que é preciso repensar esse acesso. “Temos um desenho institucional que não considera a dificuldade do trabalho político. Muitas mulheres que ascendem precisam de uma grande figura masculina, seja paternal, seja marido, para poder receber e interagir, sem sofrer barreira de machismo e sexismo”, afirmou.

“Muitas mulheres que almejam promoção recebem pecha pejorativa, ambiciosa. Sua vida pessoal passa por um escrutínio que não existe para os homens. A gente precisa colocar na mesa essa dificuldade do trabalho político, porque é real, é doloroso”, disse Mota.

Ainda segundo a juíza federal, a sociedade precisa pressionar o Poder Judiciário a dar uma resposta sobre as políticas institucionais que versam sobre o assunto. Por enquanto, há uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (255/2018) que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. A iniciativa, no entanto, ainda é recente para surtir grandes efeitos.

Movimento feminista

Para a ex-ministra Eliana Calmon, a grande transformação para as mulheres começarem a crescer no Poder Judiciário veio com o movimento feminista a partir dos anos 90. Na época, as mulheres feministas pressionaram o Governo Federal para indicar as primeiras mulheres a tribunais superiores.

“Para adquirir igualdade na chegada à cúpula de poder do Judiciário, as mulheres têm de fazer política que os homens já estão muito avançados. As mulheres só começaram isso no final da década de 90. É por isso que estamos muito atrasados e ainda temos dificuldades”, disse.

“Em nosso país, embora a igualdade esteja assegurada formalmente na Constituição Federal, os dados estatísticos, nossa vivência de mulher em uma das funções de poder da República, nos permite afirmar que em pleno século XXI ainda temos um longo caminho para percorrer”, completou Delaíde Arantes, ministra do TST.

Para os próximos meses, haverá duas aposentadorias de ministros nos tribunais superiores, uma de Napoleão Nunes Maia, do STJ, e outra de Marco Aurélio, do STF. Essas seriam duas oportunidades para indicar mulheres aos cargos. Segundo levantamento do JOTA, desde 2014, nenhuma mulher é indicada a um tribunal superior no Brasil

“O movimento não vai ser deflagrado quando surgir a aposentadoria. Meu modo de ver é que é para agora. É nesse momento que nós temos de arregaçar as mangas e dizer nós queremos mais mulheres nos tribunais. Mas nós não podemos lutar sozinhas, precisamos de apoios da associações, ONGs, movimentos feministas, etc”, finalizou Eliana Calmon.