
A incorporação de novos medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) depende de uma série de etapas. Apesar de necessárias, quando elas não são realizadas de modo ágil, podem gerar impactos negativos que se refletem na qualidade de vida e na sobrevivência dos pacientes. Entre os diagnosticados com doenças raras, a situação é especialmente delicada.
Essas doenças são classificadas dessa forma quando acometem pelo menos 65 indivíduos a cada 100 mil habitantes. Para essas pessoas, a incorporação e a oferta de um medicamento pode ser a única chance de tratamento efetivo – por isso a demora na incorporação pelo SUS pode ser decisiva.
É o caso de quem convive com a polineuropatia amiloidótica familiar relacionada à transtirretina, mais conhecida como PAF-TTR, doença genética rara, grave e progressiva que afeta sobretudo o sistema nervoso periférico e central, o trato gastrointestinal, os rins e até o coração.
Em painel da Casa JOTA realizado nesta quinta-feira (9/3) com patrocínio da PTC Therapeutics, Camila Castelo Branco Pupe, professora de Neurologia da Universidade Federal Fluminense e especialista em doenças neuromusculares, contou que uma das mutações da doença é originária de Portugal. Por ter sido uma colônia portuguesa, o Brasil é um dos países com maior prevalência da enfermidade. Ainda que seja hereditária, ela é ainda é rara na população.
Inicialmente, o paciente costuma se queixar de problemas como dor, dormências, hipotensão, diarréia e constipação. Já no estágio 2, ele precisa andar com apoios (como bengalas); no estágio 3, em cadeira de rodas. Em até dez anos, o quadro pode se agravar e levar à morte.
Atualmente, o tratamento disponível no SUS é indicado para pacientes adultos em estágio 1. Já para quem está nos estágios 2, 3 ou que não respondeu bem à terapia na fase inicial, ainda não é oferecida uma opção eficaz.
“É uma doença que por muitos anos ficou sem tratamento. A partir da década de 1980, um dos tratamentos era o transplante hepático e depois de algum tempo surgiram algumas opções terapêuticas no mercado”, explicou a médica. “É importante fazer o diagnóstico precoce, iniciar o tratamento logo e, obviamente, ter terapias que possam atuar em todos os estágios da doença”, completou.
A PTC Farmacêutica do Brasil desenvolveu o medicamento inotersena nonadecassódica, que foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2019 com base nas evidências científicas que atestam bons resultados na qualidade de vida de quem está no estágio 2 ou em fase inicial mas com falha terapêutica.
A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), que avalia a viabilidade de que novos medicamentos sejam oferecidos, recebeu a submissão de incorporação em fevereiro de 2022, mas ainda não concluiu sua avaliação.
Somente após um parecer favorável, o Ministério da Saúde poderá aprovar a incorporação e mobilizar esforços para que o medicamento chegue aos pacientes do SUS. Essa etapa tem prazo de 180 dias para acontecer desde a formalização do aval.
“Tempo é crucial. A submissão da inotersena foi em 2018. Tivemos a aprovação da Anvisa, passamos um longo tempo para discutir o preço na Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) e agora estamos na Conitec. Ou seja, é um processo que até agora leva cinco anos”, diz Rogério Silva, vice-presidente e gerente geral da PTC Therapeutics.
O paciente dessa síndrome muda de estágio na evolução da doença, em média, a cada três anos. “A espera até agora significa que o paciente brasileiro está perdendo a janela terapêutica”, afirmou Silva. No último estágio, ainda não existe terapia medicamentosa, por isso o tratamento precisa acontecer antes que a doença evolua dessa forma.
Como o medicamento existe a já tem aprovação para ser usado no Brasil, a expectativa para os pacientes sem acesso ao tratamento aumenta. “Hoje temos uma possibilidade que não tínhamos há alguns anos. Existe evidência científica e uma aprovação da Anvisa para essa medicação. É temerário que hoje deixemos o paciente piorar sem um tratamento adequado. Estamos observando na prática clínica o desgosto de vê-los evoluindo de quadro e morrendo por causa dessa doença”, lamenta Pupe.
Além das consequências físicas para a saúde de quem sofre com a patologia, falta de tratamento adequado gera uma série de outros problemas, como impactos emocionais e financeiros para as famílias, como explica Raphael Boiati, farmacêutico e diretor da organização Casa Hunter.
Por se tratar de uma doença rara, muitas pessoas demoram até uma década para receber o diagnóstico correto e, como ela é progressiva e degenerativa, a espera por um medicamento resulta em ansiedade, angústia, perda da capacidade de trabalhar e, em alguns casos, fragmentação do núcleo familiar após a morte do paciente.
Segundo Boati, justificar a demora na incorporação de novos medicamentos com justificativa de falta de orçamento público não abarca a complexidade da questão.
“Quanto o SUS realmente gastou para tratar esse paciente sem ter acesso ao medicamento adequado? Além da pessoa não ter uma boa qualidade de vida, ela está gerando um custo e nunca vai gerar crescimento para o país, pois precisa parar de trabalhar e recorrer ao INSS. Estamos investindo recursos financeiros em uma pessoa que nunca vai conseguir dar um retorno simplesmente porque perdemos o timing do tratamento”, argumentou ele.
Além disso, outra consequência negativa para os cofres públicos está nos processos movidos por quem reivindica no Poder Judiciário, de modo individual, o direito de receber um medicamento que poderia estar à disposição de todos.
“A judicialização pode gerar iniquidade social, pois nem sempre conseguimos tutelar as pessoas de modo igualitário. A Constituição consagra o direito à saúde, então em tese as pessoas teriam direito a diagnóstico e a receber um tratamento. Então, a judicialização causa uma omissão inconstitucional”, explica Clenio Schulze, juiz federal em Santa Catarina, que estuda Direito da Saúde.
Segundo ele, mesmo que o Judiciário dê respostas positivas para algumas solicitações, é preciso considerar que muitos pedidos ainda aguardam resolução e que, em um país com muitas desigualdades sociais, várias pessoas não têm acesso à informação, advogados ou facilidade de acesso à defensoria pública para iniciar um processo judicial.
No caso da PAF-TTR, o Brasil fornece medicamentos obtidos via judicialização para 36 pessoas. Segundo Raphael Boiati, o valor gasto com isso seria o suficiente para garantir tratamento para pelo menos o dobro de pacientes. Isso porque o medicamento judicializado é comprado por um preço maior, já que não há uma negociação com o fornecedor.
Se considerados os custos de cada processo judicial, os gastos são ainda maiores. Além disso, o SUS não consegue prever os custos que terá com o tratamento desses pacientes, já que eles podem ou não entrar na Justiça para garantir esse direito.
Na avaliação de Boiati e Silva, nos últimos anos aconteceram avanços importantes sobre a incorporação de novos medicamentos pelo SUS e os desafios para agilizar o sistema.
A Comissão Nacional de Ética e Pesquisa conseguiu trazer para o Brasil mais pesquisas sobre doenças raras e ultra raras e promoveu na Anvisa o chamado fast track, sistema rápido de registro de novas tecnologias em saúde. Por outro lado, a Conitec já ultrapassou o prazo de 270 dias que teria para avaliar a inotersena .
“Não podemos desistir do fluxo regulatório, porque ele é necessário. Já evoluímos na Anvisa, mas precisamos evoluir na precificação e na aceleração da avaliação da Conitec. Espero que isso aconteça para a PAF-TTR e também para outras doenças raras”, diz Rogério.
“A indústria farmacêutica faz os maiores esforços para termos um produto incorporado porque a judicialização não é benéfica para o paciente, para a indústria e nem para o governo”, concluiu.
O evento está disponível na íntegra no YouTube: