ADI 5529

Não é competência do STF debater escolha do legislador sobre vigência de patente

Ellen Gracie, Floriano de Azevedo Marques e Carlos Ari Sundfeld avaliaram que dispositivo na lei de patentes não fere CF

complexo industrial da saúde, estoques de medicamentos
Crédito: Pixabay

* O texto foi alterado em 14 de outubro de 2020, às 16h02, para esclarecer que o webinar se tratou de um branded content patrocinado pela Crop Life e pela Interfarma.

O parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96), que versa sobre o prazo de validade para a exploração monopolista de patentes no Brasil, não deve ser considerado inconstitucional, uma vez que foi opção do legislador estabelecer a possibilidade de prorrogação do prazo de vigência de patentes em caso de demora na apreciação do pedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).

Essa é a avaliação de Ellen Gracie Northfleet, ministra aposentada do Supremo Tribunal Federal (STF), Floriano de Azevedo Marques Neto, diretor da Faculdade de Direito da USP, e Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV Direito SP e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público. Eles participaram de um webinar sobre o tema realizado na manhã desta terça-feira (13/10). O evento foi um branded content patrocinado pela Crop Life e pela Interfarma.

A discussão está posta no Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da ADI 5529, que foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República e está sob relatoria do ministro Dias Toffoli. Na ADI, a PGR questiona se esse dispositivo da lei de patentes afronta o princípio da temporariedade da proteção patentária, previsto no inciso XXIX do artigo 5º da Constituição Federal.

O inciso em questão diz: “A lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país”.

Neste sentido, quem contesta a lei alega que o parágrafo único do artigo 40 da Lei permite, na prática, uma extensão nos prazos de patente. Isso porque o INPI pode demorar mais de dez anos para despachar a patente. Nas palavras da PGR, essa realidade provoca “forte lesão a direitos sociais e à ordem econômica, pois os demais interessados na exploração da criação industrial não podem prever e programar-se para iniciar suas atividades”.

Segundo os três especialistas que participaram do webinar do JOTA, a discussão acerca do impacto desse dispositivo pode até ser relevante, mas não tem relação com constitucionalidade ou não. E, por isso, o debate não compete ao STF.

“A discussão toda da ADI se coloca em casos em que o pedido de INPI demore mais de dez anos. Após o deferimento, a patente vigorará por mais dez anos. Ou seja, pode haver patente ou privilégio que vigore, na soma dos períodos, por mais de 20 anos”, disse Sundfeld.

“Existe uma razão econômica racional para a discussão, mas qual é a inconstitucionalidade? A Constituição Federal só fala que a patente tem que ter privilégio temporário, mas não estabelece critérios”, acrescentou.

Para a ministra aposentada do STF Ellen Gracie, foi uma opção do legislador estabelecer a possibilidade de ampliação do prazo de validade em virtude da realidade da época em que a lei foi promulgada.

“Quando o Brasil assinou o acordo de Marraquexe em 1994 [e, assim, se comprometeu a proteger patentes], o órgão regulador, o nosso INPI, não estava há época habilitado, equipado para receber essa carga adicional de novos produtos registrados”, afirmou a ministra.

Ciente disso, o nosso legislador, com muita sabedoria, inseriu o parágrafo único no artigo 40. É conhecido o backlog do INPI [acumulação de patentes para analisar] e o parágrafo se refere exatamente a essa falta de equipamento”, continuou. 

Segundo Gracie, esse tipo de dispositivo “não é uma novidade brasileira” e existe também em legislações de países desenvolvidos, como na União Europeia e os Estados Unidos. “Nesses lugares, existe uma possibilidade de extensão de prazo (limitada em cinco anos) quando a patente, para que o produto seja fabricado e colocado à disposição do consumidor, exija a participação de outros agentes públicos, que também precisam autorizar a comercialização dos produtos”, disse.

Nessa lógica, opinou o professor Floriano de Azevedo Marques, o grande problema não está na constitucionalidade do dispositivo, mas no fato de o INPI “demorar tanto para fazer a patente”. “A ação da PGR constrói uma tese de que o dispositivo estaria ferindo a ideia constitucional de proteção patentária temporária. Mas é o contrário, ele define prazos claros”, defendeu.

Para Azevedo, é possível “gostar ou desgostar da opção do legislador, mas o fato é que ele seguiu o que o constituinte determinou: fixou um prazo”. Neste sentido, seria uma opção do legislador rever se esse período é elevado e deveria ser modificado. “Mas o Supremo não pode se substituir nesse nível de detalhe na decisão do legislador, afirmou Azevedo”.

Impactos econômicos negativos

É consenso para os especialistas que participaram do webinar que alterar o dispositivo pode trazer impactos econômicos negativos para o desenvolvimento de inovação no Brasil e também para os próprios consumidores.

Não é o agente econômico responsável pelo desaparelhamento do órgão regulador, não se pode atribuir esse prejuízo ao agente econômico, que faz publicar todos os detalhes que permitem a reprodução de sua invenção por outras pessoas”, disse Gracie. 

Em relação ao impacto ao consumidor, um exemplo prático, segundo Azevedo, poderia ser observado na própria corrida pela vacina da Covid-19. “O consumidor pode perder tanto se a patente for muito longa quanto se não houver proteção patentária”, disse.

“Vou dar um exemplo: hoje, todo mundo acompanha bilhões de dólares sendo gastos em pesquisas com a Covid-19. Tanto as instituições públicas quanto as privadas têm interesse em explorar a vacina. Se houvesse uma regra que não tivesse mais proteção patentária, haveria um desincentivo de boa parte dos agentes econômicos que estão investindo bilhões, com risco de não dar em nada, buscando a prioridade, a prevalência, de ser a primeira vacina. Porque em dez anos haverá várias vacinas e o preço será muito baixo”, disse.

“Nessa lógica, poderíamos ter uma demora maior para ter a vacina. É um pouco ilusório pensar só no consumidor depois que a patente existe, temos que pensar em todo o processo”, prosseguiu.

Para Sundfeld, uma saída é convencer os legisladores a mudar esse entendimento. “O STF é um tribunal constitucional, para aferir a compatibilidade da lei pela Constituição. Não para aferir se essa solução regulatória pode ser melhorada ou piorada, para um lado e para o outro”, afirmou.

Estudo do TCU

Ao longo de diversas petições no processo do STF, há inúmeras referências a um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) focado em patentes de medicamentos que apontou que o dispositivo trouxe um impacto aos cofres públicos na ordem de R$ 1 bilhão, entre 2010 a 2019.

Segundo o tribunal, a extensão de prazo definido no parágrafo único do artigo 40 da lei beneficia os laboratórios quando o INPI demora demais para analisar os pedidos de patentes não reduzindo, portanto, seu valor de aquisição.

“É importante saber se realmente há ou não um prejuízo para o setor público na compra desses medicamentos. Agora, eu realmente tenho muita dificuldade em imaginar como pode o TCU, a priori, definir que se quebrado esse monopólio antes do tempo outros produtores apresentariam o mesmo medicamento com menor custo. É um exercício de futurologia”, afirmou Gracie.

Azevedo chamou atenção para o fato de que essa análise leva em conta apenas o curto prazo e não todas as variáveis também de longo prazo. “Grande parte da pressão do SUS hoje sobre os medicamentos, não está nem nos medicamentos com patentes, mas sim nos experimentais. Esses têm valores exponenciais e o SUS é obrigado a fornecer por decisão judicial”, afirmou.

Ele acrescentou que “pior para o consumidor de medicamentos é você não ter acesso ao medicamento. E um retrocesso em uma lógica de proteção patentária, pode inibir a própria disponibilidade do medicamento”, assegurou.

Previsão em caso de inconstitucionalidade

Caso o julgamento do STF, que ainda não tem data definida, entenda pela inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da legislação, será imprescindível modular seus efeitos, segundo avaliaram os três especialistas.

Isso porque, imediatamente com o entendimento nesse sentido, o mercado se abriria e as empresas que ainda esperam as aprovações de suas patentes perderiam o privilégio sobre elas. “Portanto, todos os investimentos que se fez considerando o prazo da lei se perderiam, seria um dano para as empresas que já investiram. É evidente que é preciso fazer uma transição, que é um valor jurídico muito importante, que hoje está prevista no artigo 23 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro”, disse Sundfeld.

Para Gracie, uma mudança dessa magnitude sem modulação, “seria desconsiderar toda a confiança que os agentes econômicos depositaram na legislação, de modo que ficariam sem proteção de um dia para o outro”. 

Já Azevedo aposta em uma modulação que foque nos novos registros patentários, deixando de fora inclusive os que já estão em tramitação. “Sem isso, teríamos uma situação esdrúxula”.