Anderson Schreiber

Há diferentes modos de enxergar a relação entre Direito e samba. Pode-se, naturalmente, enfatizar o tratamento repressivo que foi reservado historicamente pela nossa ordem jurídica à prática do samba, partindo-se dos inúmeros registros de apreensão de instrumentos musicais e prisão de sambistas com base no crime de “vadiagem”, tipificado no Código Penal de 1890 (art. 399).
Pode-se analisar os traços deixados por esse tratamento repressivo em nossa cultura jurídica, que reverberam, ainda hoje, na proibição de bailes funk e em outras formas de constrangimento das manifestações musicais da chamada periferia.
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Sob uma perspectiva mais otimista, pode-se dar destaque à legislação que traduz o reconhecimento do samba como bem juridicamente protegido, tais como o Decreto Municipal do Rio de Janeiro n. 42.708/2016, que torna o samba-enredo patrimônio cultural imaterial da cidade, ou, ainda, o Decreto n. 28.980/2007 do mesmo Município, que declara constituírem patrimônio cultural carioca as escolas de samba que desfilam na cidade – reconhecimento normativo tão tardio que não deixa de revelar, sob outro viés, uma conveniente tentativa de apropriação estatal do samba após a sua consagração como gênero musical e após o sucesso mundial do carnaval como evento turístico.
Pode-se, ainda, abordar o tema sob a perspectiva inversa, partindo da retratação do Direito e do funcionamento da Justiça estatal pelos sambistas em suas obras artísticas, como se pode ver, a título ilustrativo, no samba-enredo apresentado pela Vila Isabel em 1989, Direito é Direito, que converteu em versos o melhor entusiasmo com a promulgação da Constituição de 1988:
<blockquote>“É hora da verdade/A liberdade ainda não raiou/Queremos o direito de igualdade/Viver com dignidade/Não representa favor (...) A justiça é cega, mas enxerga quando quer/Já está na hora de assumir (eu sei)”.</blockquote>
https://www.youtube.com/watch?v=kxw-A_PL8Ms
Ainda nessa direção, pode-se mencionar, como exemplo mais recente, o animado samba do Galocantô intitulado Vara de Família, que convoca os sambistas a dançarem separados:
<blockquote>“Vamos dançar separados! Já disse Cecília!/Tipo vara de família: Separados!/Vara de família: separados.” E arrebata: “Quem não dança pega na criança/Senão, cansa e não vai acertar/Não tem tropeço eu reconheço/E pago o preço do DNA/Como dizia o jurista/Antonio Evaristo de Melo Peixoto/Vamos dançar separados pra um não pisar no pé do outro.”</blockquote>
https://www.youtube.com/watch?v=sSkFIioJ-MA
Essas perspectivas são tentadoras porque mostram, respectivamente, o samba visto pelo Direito e o Direito visto pelo samba, mas não examinam, efetivamente, a relação entre Direito e samba, deixando de enfatizar talvez o aspecto mais evidente dessa relação: sua falta de intensidade.
<blockquote>Há entre Direito e samba, mais que uma desconfiança recíproca, um profundo distanciamento, uma sólida indiferença, cujas causas e efeitos seguem pouco explorados, de modo que o distanciamento e a indiferença mantêm-se no tempo, sem que esses dois universos pareçam interessados em se conectar de qualquer modo.</blockquote>
Não deixa, contudo, de ser surpreendente que uma expressão cultural tão poderosa quanto o samba, tão definidora da identidade brasileira, tão inatamente nossa, continue sendo um mundo estranho à ordem jurídica que guia nossos comportamentos cotidianos.
É preciso, também, notar que esse dado da realidade afirma – ou canta chorosamente, talvez – algo muito profundo acerca da gênese e do desenvolvimento do Direito brasileiro.
De fato, é preciso perguntar: em que medida nosso Direito (entendido não apenas como conjunto de normas, mas como ramo do conhecimento, como experiência e ambiente) é genuinamente brasileiro?
<blockquote>Se uma roda de samba é, aos olhos de qualquer observador, algo nitidamente brasileiro, quão brasileiros são as nossas salas de audiência, os nossos tribunais e as nossas faculdades de Direito?</blockquote>
Qual abismo separa de modo tão drástico esses dois ambientes, a ponto de não se reconhecerem, quiçá, como facetas do mesmo povo e da mesma cultura?
Nosso Direito é, de berço, alienígena. Ao estudante de Direito ensina-se que as primeiras normas jurídicas vigentes no território do Brasil foram as Ordenações do Reino de Portugal, como se as civilizações indígenas que por cá viviam, antes de serem dizimadas e quase extintas, vivessem em uma espécie de anarquia absoluta, sem regras ou convenções que regessem sua complexa vida social.
Essa amnésia em relação ao componente cultural indígena não representa uma falha pontual dos nossos cursos jurídicos, mas uma opção deliberada do ensino jurídico brasileiro, desenhado a partir de um forte eurocentrismo – e, mais recentemente, com influências norte-americanas nos campos do Direito Constitucional, Direito Empresarial e Direito Penal.
Em nossas faculdades de Direito, um estudante pode perpassar cinco anos recebendo conteúdo jurídico sem ouvir qualquer referência a uma decisão judicial proferida na Argentina, no Uruguai, no Chile, no Peru ou em qualquer outro país da América Latina, mas saberá citar, de pronto, decisões das cortes constitucionais da Alemanha (ex. caso Lebach) e dos Estados Unidos (ex. New York Times vs. Sullivan ou Marbury v. Madison).
<blockquote>Significa dizer que, em vez de buscar paralelo na experiência jurídica de países que compartilham conosco alguma identidade cultural e problemas sociais semelhantes, o jurista brasileiro é treinado, desde os bancos da graduação, a olhar para longe.</blockquote>
Cruza-se o Atlântico rumo à Alemanha ou se salta toda a América Latina para buscar na pátria de Donald Trump os argumentos de autoridade e os fundamentos das nossas construções jurídicas nacionais.
Nas faculdades de Direito, ainda hoje, são dados exemplos com os personagens Caio, Tício, Mévio e Simprônio, todos nomes romanos, da Roma Antiga: “Caio vende um cavalo a Tício”, “Mévio se obriga a pintar um quadro para Simprônio” e assim por diante.
Instigado com esses exemplos de outro mundo e de outra era, o estudante de Direito deixa a sala de aula, entra num ônibus ou num trem, chacoalha até o seu bairro, tira o pandeiro da mochila e se junta a uma roda de samba para cantar Timoneiro de Paulinho da Viola (“não sou eu quem me navega/quem me navega é o mar”) enquanto as faculdades de Direito, sem a injustiça da acusação feita outrora contra Carmen Miranda, não suportam o breque do pandeiro e ficam arrepiadas ouvindo o ronco de uma cuíca: não têm “molho, ritmo, nem nada” (Disseram que eu voltei americanizada, 1940).
<blockquote>O estrangeirismo do ensino do Direito é só a primeira nota de uma melodia mais cruel: sua indiferença generalizada à realidade brasileira.</blockquote>
O conteúdo programático de um curso de direitos reais, por exemplo, abrange nominalmente o estudo das teorias da posse, de Ihering e Savigny, mas não traz qualquer alusão aos conflitos no campo, aos sem-terra, à população de rua ou aos “barracões de zinco” das favelas – mesmo não sendo raro, no Brasil, encontrar faculdades de Direito que, erguidas à pouca distância de favelas, encontram-se tão distante da realidade dessas comunidades que parecem cantar baixinho o samba de Roberto Martins e Waldemar Silva, eternizado em 1936 na voz de Francisco Alves:
“Favela oi, Favela/Favela que guardo no meu coração/Ao recordar com saudade/A minha felicidade/Favela dos sonhos de amor/E do samba-canção/Hoje tão longe de ti/Se vejo a lua surgir/Eu relembro a batucada/E começo a chorar/Favela das noites de samba/Berço dourado dos bambas/Favela é tudo que eu posso falar”
https://www.youtube.com/watch?v=rG7rYWaLs10
Ainda na mesma direção, o conteúdo programático habitual do curso de Direito de Família não menciona o tema da violência doméstica – tão dramaticamente constante da nossa realidade que se faz presente até em sambas de amor, como em Faixa Amarela (1997), de Zeca Pagodinho, em que as declarações do personagem apaixonado pela sua “linda donzela” são seguidas do espasmo de violência naturalizada do homem brasileiro:
“Mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela/Vou lhe dar uma banda de frente/Quebrar cinco dentes e quatro costelas/ Vou pegar a tal faixa amarela/Gravada com o nome dela/E mandar incendiar/Na entrada da favela”.
E, por falar em crimes, é possível passar por todo o curso de Direito Penal sem visitar um presídio e sem enxergar com seus próprios olhos a falência evidente do superencarceramento nacional: “há muito tempo não ouço/o tal do samba sincopado/só não dá pra cantar mesmo/é vendo o Sol nascer quadrado” (Martinho da Vila, Canta Canta Minha Gente, 1999).
https://www.youtube.com/watch?v=FxQB1FYLu5k
E são pouquíssimos os cursos de Direito Constitucional que enfrentam o tema do racismo brasileiro, bem apontado por Moacyr Luz nas segundas-feiras do Clube Renascença:
<blockquote>“Preto joga charme, come carne/Preto roda de chofer/Anda de avião, craque de gamão/Troca de talher/Preto lê Exame, férias em Miami/Prêmio Molière/Pede uma suíte, roupa de boutique/Preto dá rolé/Estranhou o quê?/Preto pode ter o mesmo que você.” (Estranhou o quê?).</blockquote>
https://www.youtube.com/watch?v=TK9hZVbeBFk
A realidade brasileira, que está tão presente no samba, ausenta-se quase que inteiramente do ensino do Direito, moldado por uma neutralidade e universalidade que representam um paradigma cientificista incompatível com uma ciência social aplicada, especialmente em uma realidade social que clama por transformação. E assim nossos cursos jurídicos desafinam.
O abismo entre Direito e samba revela-se, ainda, em um último aspecto, tradicionalmente pouco explorado, que é o da ambiência.
O ambiente do samba é o ambiente da informalidade, do improviso, da síncope, da boemia, da brincadeira. O ambiente do Direito é, ao contrário, o ambiente do formalismo, da sobriedade, do procedimento, do documento, da toga.
Pode-se entender que essa dicotomia é necessária: afinal, trata-se, de um lado, da arte e, de outro lado, da regra. Liberdade versus norma. Pode-se, até mesmo, compreender essa dicotomia sob uma perspectiva de estereótipos: é tão certo que há muita seriedade no samba quanto é certo que há improvisos no Direito.
<blockquote>Ainda assim, não parece haver dúvida de que os ambientes diferenciam-se em sua construção concreta de modo tão radical que, com poucas e honrosas exceções, um sambista assusta-se diante do acentuado formalismo de um tribunal, tal como um desembargador dificilmente acomoda-se bem em uma roda de samba.</blockquote>
Essa contraposição de ambiências expõe um dos maiores problemas da Justiça brasileira, que consiste no seu acentuado afastamento em relação ao cidadão.
Prédios luxuosos, plenários amplíssimos que se assemelham a conselhos intergalácticos dos filmes de ficção científica de maior orçamento, juízes vestidos como senadores romanos comunicando-se com os jurisdicionados por meio de um Português de outro tempo e de brocardos latinos (que não exprimem nenhuma cultura, apenas frases decoradas) são sintomas de que algo vai muito mal nas nossas instituições jurídicas.
<blockquote>Se uma decisão judicial, proferida para solucionar uma disputa surgida por conta do aluguel de um apartamento ou de um acidente de trânsito, não puder ser lida em voz alta e compreendida em um botequim ou – por que não? – em uma roda de samba, o problema certamente não está nos frequentadores do bar ou nos sambistas.</blockquote>
O Direito, apesar de técnico, precisa saber se fazer compreender, sob pena de se afastar gradativamente daquilo que lhe confere legitimidade: a confiança daqueles a quem se destina o serviço público prestado pela Justiça.
E essa compreensão da realidade que rodeia o magistrado, e o jurista de modo geral, não é possível senão por meio do reconhecimento de “coisas nossas” (salve Luiz Antonio Simas), de circunstâncias que nos fazem brasileiros, entre elas, inegavelmente, o samba.
Em outras palavras, ao ambiente do Direito compete, por dever de ofício, aproximar-se do ambiente do samba, superando esse descompasso, essa “disritmia” (novamente, Martinho da Vila), e permitindo que todo brasileiro sinta-se em um tribunal como quem se sente em sua casa, não sendo obrigado a se retirar de uma audiência, como ocorreu em 2011 no Paraná, pela inusitada afronta de “usar bermudas”.
Encerro com uma nota pessoal: há muitos anos, escrevi um artigo sobre abuso do Direito, que começava com uma epígrafe extraída do conhecido samba de Antonio Carlos e Jocafi: “Você abusou/Tirou partido de mim, abusou”.
Dois colegas meus que muito admiro, também professores Direito, aos quais pedi que lessem o texto previamente, não tinham qualquer reparo ao conteúdo do artigo, mas me fizeram a mesmíssima recomendação: suprimir a epígrafe.
<blockquote>Na visão deles, uma epígrafe de samba poderia retirar a seriedade do artigo, que consideraram profundo e inovador. Aquela “irreverência” perigava afastar o estudioso mais sério. Não sei se teriam feito a mesma recomendação se a epígrafe fosse um verso de Vinícius de Moraes ou Caetano Veloso, mas, seguramente, não a fariam se eu estivesse citando uma ópera de Puccini. Mas Puccini não é coisa nossa.</blockquote>
O Direito brasileiro precisa urgentemente de menos Beethoven e mais Cartola.

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JOTA

O Direito brasileiro precisa urgentemente de menos Beethoven e mais Cartola

Direito e Samba: o que o samba ensina sobre o ensino do Direito

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'O Direito brasileiro precisa urgentemente de menos Beethoven e mais Cartola', diz o professor da UERJ, Anderson Schreiber, no artigo Direito e samba