Helena Najjar Abdo

“Ela vai ser médica” – essa foi a sentença que eu ouvi e acatei pela primeira década e meia de minha vida. Afinal, qual o destino que se imagina para uma menina, filha de pais médicos, com mais de metade da família graduada em Medicina? Uma criança que passou a infância desenhando em prontuários, no verso de folhas de eletrocardiograma, muitas vezes na companhia de enfermeiras e passando visita a pacientes em hospitais?
E, a cada nota alta na escola em Ciências, Biologia e Química, o vaticínio era novamente entoado: “Tá vendo? Olha que beleza… Benza Deus! Ela vai ser médica!”. Tudo parecia uma preparação para aquele destino certeiro. Aprender a costurar significava treinar para fazer suturas. Os cortes dos legumes para a salada precisavam ser retos e proporcionais. Afinal, eu poderia resolver me tornar uma cirurgiã. A caligrafia imperfeita era justificada pela futura carreira profissional: “Vai ser médica mesmo: até letra feia ela já tem!”. Ao ingressar na adolescência, já conhecia todas as especialidades médicas, até mesmo aquelas menos populares: proctologia, hematologia, patologia, reumatologia, nefrologia…. O caminho parecia estar seguramente traçado e eu adorava aquilo tudo.
Mas, confesso que, secretamente, também tinha outras paixões. Gostava de sintaxe, acentuação, interpretação de texto. Era apaixonada por poesia e por expressar minhas ideias em páginas e páginas escritas, muitas vezes no verso das folhas de eletrocardiogramas. As redações da escola eram trabalhadas, artesanalmente elaboradas e eu sempre recebia elogios dos professores: “Essa menina tem maturidade para escrever”, “Como escreve bem!”, “Que ótimo vocabulário!”. Gostava de História e de aprender idiomas estrangeiros: inglês, francês e, algum tempo depois, italiano. E me indagava como poderia coadunar essas paixões com minha futura profissão.
Aos 15 anos, as certezas se dissiparam e a dúvida interna apareceu: qual caminho seguir daqui por diante? Me perguntava diariamente se a Medicina seria mesmo a melhor opção, ao mesmo tempo em que me atormentava o receio de frustrar as expectativas da família, sobretudo de meus pais.
Um dia, joguei a bomba: “Não vou mais prestar vestibular para Medicina. Ainda não sei o que quero, só sei que tem a ver com a área de Humanas”. Seguiu-se um longo período de angústia e de intermináveis conversas, nas quais eu era doutrinada sobre a importância de ser uma profissional liberal, de não ter um chefe e correr o risco de perder o emprego a qualquer momento.
Diante desse quadro, o Direito foi uma escolha natural porque se enquadrava nos dois requisitos: era uma carreira da área de Humanas e ainda me permitiria tornar-me uma profissional liberal. “Então é Direito mesmo que você quer? Tem certeza?”. Não, eu não tinha. Que certeza se tem aos 15 ou 16 anos de idade? O Direito nunca tinha sido uma paixão. Aliás, era uma alternativa meio repentina, apressada, que havia aparecido do nada apenas por causa dos “requisitos”. Mas eu afirmei que tinha certeza, que nunca estive tão segura na vida e levei o discurso até o fim. Afinal, não poderia gerar duas frustrações sequenciais na família…
Fui aprovada no exame da FUVEST (Fundação Universitária para o Vestibular) e ingressei aos 16 anos na quase bicentenária Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da qual nunca mais saí, e onde concluí os programas de mestrado (2003) e doutorado (2006) em Direito Processual. É ali que atuo como professora assistente voluntária há mais de 15 anos.
Logo no segundo ano da graduação, aos 18 anos de idade, comecei a exercer as funções de estagiária em um excelente escritório de advocacia. Era a mascote do time: mais jovem do que o mais novo dos integrantes, que era assistente administrativo. Ali tive uma das mais valiosas lições profissionais, que carrego comigo até hoje: aprendi que o afinco e a estratégia eram mais importantes que a justiça. Cogitei prestar concurso público para a magistratura e ouvi do saudoso Dr. Francisco Antonio Fragata: “Menina, esqueça isso. Você vai logo ver que a advocacia é o suprassumo do Direito”. Dito e feito. Quatro anos depois, eu fazia meu juramento na Seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil.
Hoje sou advogada de contencioso e professora de Direito Processual Civil. E posso afirmar que a única segurança que tenho em minha vida profissional é a de que, tal como se diz por aí, “posso até morrer de susto, mas nunca morrerei de tédio”. Isso acontece porque a agenda de um advogado de contencioso costuma ser agitada e diversificada. A semana de 22 a 26 de maio de 2017 não fugiu à regra.
Segunda-feira (22/05) 
O dia começou com uma reunião interna do escritório entre integrantes do setor administrativo e sócios do Contencioso para discutir os números, metas e o status de faturamento de 2017. A manhã rendeu tarefas para todos os sócios.
O almoço foi suprimido para dar lugar a uma sessão de acupuntura para dores na coluna cervical.
Após um lanche rápido, fui tomar um café com o advogado de uma empresa com a qual minha cliente realizaria uma sessão de mediação empresarial “ad hoc” na quinta-feira daquela semana. Combinamos algumas regras para a mediação a ser realizada dali a alguns dias.
Voltei diretamente para uma entrevista com o sócio gerente do escritório e a administradora principal. O objetivo era conversar comigo sobre minha interação com os outros 40 sócios do escritório, num contexto de avaliação (Múltipla Visão) do nosso SAS (Sistema de Acompanhamento de Sócios).
Na sequência, revi os termos de um recurso (agravo de instrumento) que seria interposto até o dia seguinte perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e conversei com a equipe sobre as alterações necessárias.
Por fim, participei de uma conferência telefônica em inglês, entre advogados brasileiros e norte-americanos de uma cliente multinacional, com o intuito de traçar a estratégia a ser adotada em uma audiência que se realizaria na semana subsequente.
Arrematando a jornada, o final da tarde e o início da noite foram destinados à revisão de planilhas e preparação de uma proposta de honorários global para uma grande empresa farmacêutica.
Terça-feira (23/05) 
Depois de uma sessão de fisioterapia (novamente para as dores cervicais), parti para uma reunião, juntamente com um colega da área de direito concorrencial, para explicar a clientes a respectiva situação em um inquérito civil público, instaurado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo que versa sobre questões concorrenciais.
A seguir, aproveitei para almoçar com advogadas da equipe de direito ambiental e, ao mesmo tempo, discutir providências a serem realizadas numa demanda coletiva (ação civil pública) recém-assumida pela equipe e que na qual nossa cliente foi condenada a recuperar diversos bens de valor histórico no estado do Rio Grande do Sul.
Após uma rápida discussão com uma advogada sênior sobre o teor de um recurso (embargos de declaração) a ser interposto em breve, parti para a revisão de uma notificação cuja minuta havia sido prometida ao cliente para aquele dia.
Saí atrasada para participar de uma banca examinadora de defesa de dissertação de mestrado na minha querida Faculdade. Terminei o dia de trabalho ali mesmo, participando da Semana do Estágio Direito USP 2017, passando algumas horas na companhia de meus colegas de escritório (tanto da área jurídica, quanto da área administrativa, sobretudo de recursos humanos) para prestar orientações sobre o mercado de trabalho.
O terceiro turno começou por volta das 21h, quando me dediquei aos estudos de Ciências – de novo, as Ciências – para uma prova que minha filha de 8 anos teria no dia seguinte.
Quarta-feira (24/05) 
Acordei às 5h para revisar os pontos da palestra que daria naquela manhã em evento promovido pela Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (CIESP). O evento, intitulado “Debates de Arbitragem e Processo – Ano II”, durou toda a manhã e tratou da temática do direito probatório na arbitragem e no processo judicial.
Após o almoço com os organizadores e demais palestrantes do evento, corri para o escritório para me reunir com a equipe e traçar a estratégia para uma contestação, bem como elaborar propostas de honorários pendentes.
Quinta-feira (25/05) 
O dia foi integralmente dedicado à mediação empresarial mencionada acima, entre um grupo empresarial nacional e nossa cliente (indústria multinacional). Os trabalhos – muito bem conduzidos pelo mediador, pelos advogados de ambas as partes e pelos executivos das empresas – duraram mais de doze horas e resultaram em uma possível proposta de acordo. A sessão de mediação foi suspensa para verificar a viabilidade da proposta de acordo, já que envolvia créditos de uma terceira empresa que mantém relacionamento com ambas as partes.
Sexta-feira (26/05) 
Pela segunda vez na semana, acordei bem cedo para terminar de revisar os pontos a serem abordados na aula que ministraria no período da manhã para a turma do 4º ano da graduação da USP. O tema abordado foi o da “Prova Pericial” e a aula transcorreu muito bem, com diversas perguntas curiosas dos alunos sobre a aplicação prática de dispositivos do Código de Processo Civil. Almocei num café perto da Faculdade ao mesmo tempo em que respondia meus e-mails pelo celular e organizava as tarefas daquela tarde. Ao chegar no escritório, um dos sócios de contencioso pediu meu auxílio na interpretação de questão processual intrincada em um procedimento de Recuperação Extrajudicial de empresas. Depois de ler as peças do caso e prestar minha consultoria, segui para uma reunião no fim da tarde com integrantes do departamento jurídico de uma empresa cliente, para discutir estratégia a ser adotada no cumprimento de sentença de um processo judicial já transitado em julgado. Saindo de lá, passei em um supermercado gourmet para comprar ingredientes e guloseimas para o jantar que prepararia na sequência ao meu marido, fechando uma semana muito produtiva.
De início, o Direito não era uma paixão, era somente uma escolha conveniente. Mas ele me apresentou a advocacia e a docência e lhe serei eternamente grata por isso.
Outros Diários de Carreira
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://jota.info/carreira/diario-de-carreira-advogado-aeronautico-26052017" target="_blank" rel="noopener noreferrer">A rotina de um advogado aeronáutico</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://jota.info/carreira/diario-de-carreira-procuradora-do-estado-de-goias-30052017" target="_blank" rel="noopener noreferrer">O dia-a-dia de uma procuradora do estado de Goiás</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://jota.info/carreira/diario-de-carreira-advogado-de-propriedade-intelectual-11042017" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Diário de Carreira: advogado em propriedade intelectual</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://jota.info/carreira/diario-de-carreira-advogado-e-executivo-de-empresa-02052017" target="_blank" rel="noopener noreferrer">A rotina de um advogado e executivo de empresa</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://jota.info/carreira/diario-de-carreira-diretor-de-ong-de-direitos-humanos-17022017" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Uma semana de trabalho de um diretor de ONG de Direitos Humanos</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://jota.info/carreira/diario-de-carreira-advogado-tributario-consultivo-03032017" target="_blank" rel="noopener noreferrer">A rotina de um advogado tributário consultivo</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://www.jota.info/carreira/diario-de-carreira-promotor-de-justica-da-infancia-e-da-juventude-11102016" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Uma semana na Promotoria da infância e juventude</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://www.jota.info/carreira/diario-de-carreira-consultor-legislativo-senado-09122016" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Uma semana de trabalho de um consultor legislativo do Senado</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://www.jota.info/carreira/diario-de-carreira-semana-de-trabalho-de-um-juiz-federal-numa-vara-civel-28102016" target="_blank" rel="noopener noreferrer">A semana de um juiz federal numa vara cível</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://www.jota.info/carreira/diario-de-carreira-rotina-de-um-headhunter-direito-23122016" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Diário de Carreira: headhunter do Direito</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://www.jota.info/carreira/diario-de-carreira-rotina-de-um-delegado-plantonista-da-policia-civil-rj-01112016" target="_blank" rel="noopener noreferrer">A rotina de um delegado plantonista da polícia civil do RJ</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://www.jota.info/carreira/diario-de-carreira-semana-de-um-advogado-trabalhista-20012017" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Diário de Carreira: a semana de um advogado trabalhista</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://www.jota.info/carreira/diario-de-carreira-semana-de-trabalho-numa-defensoria-mista-25112016" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Diário de Carreira: a semana de trabalho numa Defensoria mista</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://www.jota.info/carreira/diario-de-carreira-conciliadora-da-justica-trabalho-08022017" target="_blank" rel="noopener noreferrer">O dia-a-dia de uma conciliadora da Justiça do Trabalho</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://jota.info/carreira/diario-de-carreira-juiz-substituto-do-tj-rj-24032017" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Diário de Carreira: Juiz substituto do Tribunal de Justiça do RJ</a>
+JOTA: <a style="color: #ff0000;" href="https://www.jota.info/carreira/diario-de-carreira-procurador-da-republica-em-tabatinga-27012017" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Como é ser  procurador da República em Tabatinga</a>

Helena

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Nunca morrerei de tédio: a agenda de um advogado de contencioso costuma ser agitada e diversificada

Diário de Carreira: sócia de contencioso e arbitragem

Quer patrocinar nossa cobertura permanente sobre a formação de profissionais do Direito? Mande um e-mail para contato@jota.info.