Guilherme Brum

Fui honrado pelo conhecido e respeitado site jurídico JOTA com um convite para redigir uma “carta a um jovem procurador de Estado”. O fato de ter, neste ano de 2017, completado uma década de exercício dessa função pública foi o que, sem dúvida alguma, encorajou-me a aceitar o desafio.
Nesses dez anos muitas coisas aconteceram. Mudei, mais de uma vez, minhas opiniões então pouco refletidas sobre instituições como governo, democracia e poderes da República. A profissão de procurador propicia um realizar constante de juízos reflexivos sobre nossas visões arraigadas de mundo. Enfim, só posso começar dizendo que até aqui tudo valeu a pena. E como valeu!
A atividade de advocacia pública ou advocacia de Estado é uma das chamadas Funções Essenciais à Justiça, e os procuradores a exercem em regime de monopólio constitucional (artigo 132 da Constituição do Brasil) no âmbito de cada estado-membro da Federação. Exige-se concurso para ingresso nos respectivos quadros. Um dificílimo concurso, diga-se de passagem, para o qual dediquei aproximadamente três anos de intensos estudos (desde antes da abertura do edital até a aprovação).
É curioso que, apesar de ser uma função jurídica consolidada, ela ainda é pouco conhecida, notadamente entre o público que não atua no campo do Direito, mas – o que surpreende – até mesmo entre os estudantes de graduação. Não considero isso necessariamente ruim. No entanto, para alguém que se interesse por ter uma maior notoriedade em seu labor profissional, essa característica pode ser um aspecto negativo do cargo. Seja como for, o procurador de Estado, embora atue silenciosamente, é um agente político-institucional central para a manutenção do regime democrático. E provavelmente seja essa a característica que mais me encanta na função.
Os procuradores de Estado, advogados que são, tem por atribuição defender em juízo a unidade federativa à qual se vinculam e prestar-lhe consultoria jurídica, dando a última palavra sobre a interpretação das regras e princípios no âmbito das administrações públicas estaduais. No desempenhar de ambas essas atividades, atuam como advogados da e para a democracia. Digo isso porque Estado não existe sem governo em um regime democrático. E os procuradores, embora sejam inegavelmente “de Estado”, não ostentam essa qualidade para agir contra o governo, mas para que estejam aptos a bem defender as políticas governamentais.
É evidente, por outro lado, que os procuradores só poderão defender políticas de governo se elas não desbordarem dos limites da legalidade. Como agentes político-institucionais que são, agem por princípio. No entanto, não é menos verdade que o próprio sentido de legalidade é disputável. O Direito é um saber eminentemente argumentativo e, para as questões constitucionais de maior importância, não há respostas jurídicas fáceis. Os procuradores, pois, apenas deixarão de dar respaldo aos atos de governo quando se tornarem indefensáveis segundo qualquer sentido coerente de legalidade.
Pode parecer, a uma primeira vista, que essa característica tolheria a independência funcional desses profissionais, uma vez que estariam obrigados a oferecer – sempre que possível – defesa em nome do ente público subnacional que “presentam”. Mas esse modo de ver o papel do procurador no contencioso judicial não resistiria a um olhar mais sofisticado sobre os fins dessa Função Essencial à Justiça.
Localizados no epicentro do embate entre Direito e política, os procuradores de Estado são forçados a testar diariamente as suas pré-compreensões e a pelo menos tentar suspender seus juízos prévios (e muitas vezes irrefletidos) sobre o que é mais justo no caso concreto.
Dessa maneira, aquilo que muitas vezes aparenta ser, no nível intuitivo, indefensável pode, no desenvolvimento do estudo de um caso complexo, tornar-se aceitável e até mesmo figurar como o caminho que melhor atende a um ideal de justiça (algo que ocorre em não raras situações). Não permanecer escravo de suas intuições, de seus sentimentos pessoais, subjetivos e idiossincráticos de justiça: isso é libertador! Ao contrário, portanto, do que possa parecer, o dever de defender em juízo o Estado sempre que sua ação possa enquadrar-se em algum sentido possível de legalidade é não apenas desafiador como algo profundamente valioso. Propicia uma vida profissional de reflexão constante. Tédio não tem espaço por aqui.
A mesma forma de levar a vida também se encaixa na atividade de consultoria jurídica exercida pelas procuradorias de Estado. Essa atribuição é a que torna mais visível a característica de viabilizador de políticas públicas, própria do procurador. A grande dificuldade, nessa ambiência, talvez não seja dizer o “não” para o administrador que pretenda colocar em ação um plano de governo eventualmente ilegal. Mas, sim, contribuir para que se chegue a um arranjo de ação governamental que, ao mesmo tempo, atinja a finalidade desejada pelo representante eleito pelo povo e não desborde de um sentido juridicamente aceitável de legalidade. Dizendo-o de um modo mais direto: o grande desafio é construir o “sim”! Propiciar, portanto, que o projeto de governo vencedor nas urnas insira-se na agenda pública e seja concretizado no mundo da vida em respeito à democracia.
É possível, então, dizer sem hesitar ao jovem procurador de Estado: há um claro grau de essencialidade da advocacia pública tanto para o funcionamento do Estado quanto para a própria governabilidade. Em suma: para um regime democrático sadio. Não é à toa, pois, que temos, na atual composição do Supremo Tribunal Federal, três ministros advindos dos quadros de procuradorias de Estado. A ministra Cármen Lúcia, presidente da Suprema Corte, era procuradora do Estado de Minas Gerais. Os ministros Roberto Barroso e Edson Fachin, procuradores dos Estados do Rio de Janeiro e do Paraná, respectivamente. Enfim, é uma profissão que muito me orgulha desempenhar. Se você tem vontade de lutar pelo direito de todos – e não apenas de alguns – e preza a democracia, aqui provavelmente seja o seu lugar. Um fraterno abraço.

Vista aérea de Porto Alegre

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JOTA

O procurador é um agente político-institucional central para a manutenção do regime democrático

Carta a um jovem procurador do Estado

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