O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gurgel de Faria defendeu na noite de quinta-feira (17/8) o respeito aos precedentes, por meio da aplicação da teoria dos precedentes, como instrumento para se alcançar a segurança jurídica no Brasil. Durante congresso da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), o magistrado afirmou que o país tinha uma “jurisprudência lotérica”, com uma série de decisões diferentes no Poder Judiciário versando sobre a mesma controvérsia. Hoje, disse o ministro, a teoria dos precedentes, embora esteja funcionando, ainda possui “falhas” e “soluços”.
Faria fez as afirmações durante o painel de encerramento do VII Congresso Internacional de Direito Tributário do Rio de Janeiro – com o tema “Segurança jurídica, litigiosidade e competitividade”, promovido pela ABDF.
Pela teoria dos precedentes, os entendimentos firmados em decisões judiciais devem ser aplicados em casos semelhantes, de modo a uniformizar a jurisprudência e garantir a previsibilidade do direito. O ministro afirmou que o sistema de precedentes foi efetivamente implantado no Brasil a partir do Código de Processo Civil (CPC) de 2015, ao passo que o sistema anglo-saxão existe há mais de 200 anos.
“Se a gente for verificar o sistema de precedentes anglo-saxão, são mais de 200 anos, e aqui a gente não tem um sistema que é anglo-saxão. A gente está implantando o sistema de precedentes que a gente pode dizer, de precedentes à brasileira, precedentes ali com as suas peculiaridades”, disse Faria.
O magistrado avaliou ainda que o sistema de precedentes no Brasil ainda não está funcionando como deveria. Faria criticou o fato de o Supremo Tribunal Federal (STF) e o STJ, em alguns casos, darem um “passo atrás” em relação aos precedentes formados tanto nas sistemáticas de repercussão geral quanto de recursos repetitivos. Precedentes formados em ambos os regimes são vinculantes, ou seja, obrigam as demais instâncias do Judiciário a aplicarem o mesmo entendimento em causas idênticas.
“O próprio STF, o próprio STJ, às vezes em determinados precedentes que são formados, em repercussão geral ou em repetitivo, às vezes dá um passo atrás. E a gente diz que a estabilidade está no caso formada”, questionou?
Como exemplo, Gurgel de Faria afirmou que, no julgamento que ficou conhecido como a “tese do século”, no Tema 69, o STF excluiu em 2017 o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins. Quatro anos depois, em 2021, no julgamento do Tema 1048, o Supremo definiu que o ICMS deve ser incluído na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB). “A tese não seria a mesma? A situação não era exatamente igual?”, questionou. “Aí a gente diz, então: o precedente está funcionando? Eu diria que o precedente está funcionando, mas ele ainda tem suas falhas”, afirmou Faria, que considerou ainda que a teoria dos precedentes tem “alguns soluços” no Brasil.
Juristas propõem efeitos vinculantes
Durante o encerramento do congresso, a ministra Regina Helena Costa, do STJ, afirmou que uma das alterações propostas pela comissão de juristas para a reforma do processo tributário e administrativo propõe que as decisões do STF em repercussão geral e do STJ em repetitivo tenham efeitos vinculantes sobre a administração pública. Hoje, essas decisões obrigam apenas o Judiciário a aplicá-las em casos semelhantes. Mas não obrigam os fiscos a deixar de aplicar as normas julgadas inconstitucionais ou ilegais pelos dois tribunais.
“Estamos propondo efeitos vinculantes para as administrações tributárias das decisões proferidas pelo STF e pelo STJ, porque hoje não há vinculação para a administração, a não ser por meio de súmula vinculante”, disse Regina Helena.
A ministra ressaltou que “não adianta uniformizar [a jurisprudência] para o Judiciário se a administração continua se recusando a cumprir [as decisões]”. “Então, a ideia é que, uma vez estabelecida uma decisão em julgamento em repercussão geral ou em recurso especial repetitivo, que todas as administrações públicas, federal, estaduais e municipais, estejam vinculadas à obediência desse julgado”, disse a ministra.
Regina Helena presidiu a comissão de juristas do Senado para a reforma do processo administrativo e tributário. Na seara tributária, o grupo entregou ao Senado em setembro de 2022 oito anteprojetos de lei, que já tramitam na casa em formato de projetos de lei. Em maio de 2023, o Senado aprovou a criação de uma comissão temporária interna para analisar os textos.
Durante o congresso, a ministra fez um apelo para que os profissionais da área do direito participem das discussões no Senado, realizem críticas e sugestões e contribuam para que as propostas saiam do papel. Regina Helena disse estar animada com a expectativa de avanço no tema no Senado Federal e ressaltou que o foco das propostas da comissão de juristas é a redução da litigiosidade, um dos motes do Congresso da ABDF.
Limites da coisa julgada
Em sua palestra sobre segurança jurídica, Gurgel de Faria citou o julgamento dos Temas 881 e 885 no STF. Em fevereiro de 2023, o Supremo decidiu que um contribuinte com uma decisão transitada em julgado afastando um tributo perde automaticamente o seu direito diante de um novo entendimento da Corte no controle concentrado (em uma ADI, por exemplo) ou em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida. Tecnicamente, a Corte entendeu que os efeitos da coisa julgada devem ser cessados diante de uma nova decisão do STF nessas sistemáticas. O caso concreto envolveu a CSLL, mas o julgamento impacta outros tributos pagos de modo continuado.
Neste julgamento, afirmou Faria, o princípio da segurança foi colocado “na balança”, ou seja, foi ponderado com outros princípios, como a igualdade tributária e a livre concorrência. No fim das contas, prevaleceram estes dois últimos princípios. “Ainda há quem diga que, na verdade, mesmo numa hipótese dessa, a segurança jurídica ainda estaria a prevalecer”, disse o ministro do STJ, que observou que, para uma ala interpretativa, ao se aplicar a isonomia e respeitar o princípio da livre concorrência, o STF traz segurança jurídica para todo o sistema.
Gurgel de Faria não se posicionou sobre o mérito do julgamento, mas disse que, a seu ver, naquele caso, caberia a modulação de efeitos da decisão. Ou seja, ela deveria ter efeitos projetados para frente, de modo que os contribuintes fossem obrigados a pagar CSLL apenas a partir do julgamento. Na ocasião, o pedido de modulação de efeitos foi negado por 6X5 votos no STF. Os contribuintes insistiram em um novo pedido por meio de embargos de declaração, que ainda não têm data para serem julgados.
“Houve um debate grande sobre a modulação e, na minha modesta interpretação – eu brinco que, se esse tema cai para mim, como juiz, estou vinculado, porque sou defensor do sistema de precedentes, mas quando vou falar na área acadêmica tenho liberdade, como professor, de dar opinião –, no caso específico, entendo que o STF nunca tinha se debruçado sobre aquela matéria e deveria ter modulado [a decisão]”, disse Faria.
*A reportagem viajou a convite da ABDF