Pandemia

Sindicatos e bancos disputam na Justiça obrigação de testar funcionários

Sindicatos foram à Justiça pedir a testagem regular dos funcionários como forma de barrar a Covid-19 nos bancos

Caixa Banco do Brasil
Fachada do Banco do Brasil Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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A flexibilização da quarentena e o consequente retorno das atividades econômicas levantam questões sobre a segurança do ambiente de trabalho, tanto para trabalhadores quanto para clientes. A discussão vem sendo feita nos bancos, que foram acionados na Justiça em diferentes localidades para que fossem obrigados a testar todos os funcionários com periodicidade. Na disputa sobre os limites das obrigações das empresas, surgiu também o contraponto do direito à privacidade dos funcionários.

Um setor que personificou o debate foi o bancário. A primeira decisão se deu no Maranhão. A 3ª Vara do Trabalho de São Luís, em 8 de maio, determinou, por meio de liminar, que os bancos submetessem os funcionários que estavam em regime presencial ao exame da Covid-19 a cada 21 dias.

A ação coletiva foi apresentada pelo Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários do estado contra Caixa, Banco do Brasil, Santander, Banco do Nordeste do Brasil, Banco da Amazônia, Bradesco, Itaú Unibanco, Banco Safra, Banco Pan, BV Financeira, Banco Daycoval, Banco Losango, Banco Múltiplo, BMG e Poupex.

“A Organização Internacional do Trabalho, na Convenção 155, art. 3º, alínea ‘e’, ao definir o termo ‘saúde’ em relação ao trabalho, não se ateve apenas à ausência de doenças, mas também aos elementos físicos e mentais que afetem a saúde do trabalhador, inclusive as relacionadas à segurança e higiene no trabalho. Pela norma internacional mencionada, ratificada pelo Brasil, apresenta-se inaceitável que o trabalhador tenha sua saúde afetada ou diminuída a sua capacidade de trabalho ou de sua expectativa de vida por conta do exercício da atividade laborativa”, disse a juíza do trabalho Angelina Moreira de Sousa Costa ao deferir a liminar.

A magistrada defendeu que a testagem periódica permitiria identificar os contaminados e os afastá-los imediatamente, condição que seria, inclusive, de interesse do empregador. A decisão logo foi conhecida pelos sindicatos de outras cidades e regiões, como Guaratinguetá (SP), Bauru (SP), Mossoró (CE), Espírito Santo e Paraná, que replicaram o pedido nas justiças locais.

“Quando conseguimos a decisão, divulgamos para outros estados”, conta o presidente da entidade no Maranhão, Eloy Natan. “Aqui no estado tivemos uma escalada muito grande de casos logo no início. Como os bancos continuaram abertos, e tendo sido o estado também de maior número de inscrições no auxílio emergencial, isso resultou em aglomerações que nos preocuparam”, contou Natan.

De acordo com ele, o sindicato tentou conversar com os bancos antes de judicializar a questão. “Pedimos boletins diários aos bancos de números de casos e o fechamento das agências, já que elas não têm ventilação natural e o ar condicionado potencializa a contaminação. Tentamos conseguir que fizessem a testagem com a Secretaria de Saúde”, enumera.

Depois da decisão, ele disse também que teve vitórias no comportamento de alguns dos bancos, mas que a ideia era uniformizar a postura e proteger adequadamente todos os trabalhadores. Mais recentemente, cada instituição financeira passou a entrar com mandados de segurança individualmente contra a decisão, que acabou derrubada na segunda instância.

Edgar Tavares, sócio do Queiroz e Lautenschläger Advogados e mestre em direito do Trabalho, afirma que decisões que obrigam empresários a testar os trabalhadores têm acontecido pelo país a partir do pressuposto de que a atividade teve a retomada permitida. “Nós entendemos que essa testagem de modo generalizado não tem fundamentação legal. E, em segundo lugar, não tem fundamentação científica”, argumenta.

Ele afirma que existe uma multiplicidade de testes, entre eles alguns que têm risco maior de falso negativo. Mais do que isso, os testes devem ser feitos com critérios claros, e algumas das decisões não fazem isso — até porque, diz ele, esses critérios devem ser estabelecidos por política pública ou pela medicina.

“No setor bancário existe um direcionamento muito forte do sindicato em todos os estados. São ações iguais em diversos lugares. Existe uma coordenação nesse sentido, e isso pode se estender para outros setores”, diz. Tavares se preocupa com uma possível sensação de falsa segurança. “Você testa hoje e amanhã pode ser infectado. É importante examinar as pessoas, mas não agir de forma intempestiva”, disse.

Decisões derrubadas

A decisão da Justiça maranhense foi revertida no segundo grau. O desembargador Luiz Cosmo da Silva Júnior, do Tribunal Regional do trabalho da 16ª Região, argumentou que não há provas de descumprimento de medidas de combate à pandemia dentro do corpo funcional dos bancos. De acordo com ele, em recurso movido pela Caixa, as empresas podem testar periodicamente todos os funcionários, mas não podem ser obrigadas a isso.

Os bancos reverteram, também, a decisão de Guaratinguetá. O caso chegou ao Tribunal Superior do Trabalho (TST), levado pelo Santander. “O ato ora impugnado imputou ao requerente a responsabilidade pela testagem para a Covid-19 aos trabalhadores e prestadores de serviços em suas agências, espalhados por todo o país, de imediato, sem previsão expressa normativa para tanto e sem considerar as questões afetas à disponibilidade e dificuldade na realização dos ditos exames, de notório conhecimento”, ressaltou o ministro Aloysio Corrêa da Veiga, em 17 de junho.

Já em 18 junho o Ministério da Economia publicou a Portaria n° 20, que estabelece as medidas a serem observadas para prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da Covid-19 nos ambientes de trabalho. No documento, a pasta define: “não deve ser exigida testagem laboratorial para a Covid-19 de todos os trabalhadores como condição para retomada das atividades do setor ou do estabelecimento por não haver, até o momento da edição deste Anexo, recomendação técnica para esse procedimento”, acrescentando que, ao fazer os exames, as recomendações do Ministério da Saúde devem ser observadas.

As empresas comemoraram a medida do governo federal. Afirmam que não se ignora que é dever da empresa a redução de riscos inerentes ao trabalho, nos termos do artigo 7º, inciso XXII, da Constituição Federal. Mas elas não podem ser obrigadas a fazer algo sem previsão legal. “Os testes não constam de nenhuma norma, protocolo ou recomendação sobre as maneiras mais eficazes de proteção e para evitar a transmissão da Covid-19”, diz o advogado Edgar Tavares.

Os testes, continua, são um apoio ao diagnóstico médico e somente devem ser realizados por indicação, orientação e acompanhamento médico ou segundo protocolos de políticas públicas em estudos epidemiológicos, que orientam as ações do poder público.

Eduardo Henrique Marques Soares, sócio da LBS Advogados, discorda. “Especialmente os bancos têm condições financeiras de realizar os testes e manter os trabalhadores protegidos. Se existe um dano irreparável, é para o trabalhador. E, no caso de agências bancárias, é um ciclo vicioso, já que o funcionário é colocado para atender clientes em espaços cheios e com pouca ventilação, o que afeta, ainda, pessoas que se encontram com as que passaram por esses ambientes”, aponta. Assim, para ele, o retorno coloca toda a categoria e seus familiares em risco.

Desde a extinção do Ministério do Trabalho e Emprego e o que ele chama de fragilização de órgãos de trabalho no país, a segurança e saúde dos trabalhadores recebem menos atenção. “Sabemos que muitas vezes a pessoa está assintomática e passa o vírus. A própria OMS insiste que assintomáticos transmitem o vírus e, por isso, a testagem é fundamental para detectar pessoas infectadas de forma precoce”, enfatiza o advogado.

Os critérios, diz, estão determinados nos pedidos e nas primeiras decisões favoráveis aos sindicatos: testagem dos funcionários a cada 21 ou 15 dias, a depender dos despachos. Essa definição tem em vista, afirma, justamente o tempo de quarentena indicado pelas entidades médicas nacionais e internacionais. Para além disso, ele defende que a negociação coletiva poderia evitar a judicialização.

“Chamar o sindicato para discutir políticas e critérios objetivos para construir essa política pela segurança é mais rápido e atinge de forma adequada aquela categoria envolvida, porque a entidade sindical conhece a necessidade e o cotidiano dos trabalhadores e das empresas”, ressalta.

Acordo setorial

No dia 24 de junho entidades sindicais, a Federação Nacional dos Bancos (Fenaban) e as instituições financeiras se reuniram em audiência de conciliação, por videoconferência, para discutir a realização de exames de Covid-19 em todos os bancários do Brasil.

A reunião, sob a presidência do desembargador do trabalho Gerson Lacerda Pistori e com a presença do procurador-regional do trabalho Fábio Messias Vieira, foi convocada após decisão favorável à ação civil pública ajuizada pelo Sindicato dos Bancários de Guaratinguetá pleiteando a concessão de liminar para a realização de exames nos bancários de sua base territorial, além dos funcionários terceirizados das agências, como forma de evitar a disseminação da Covid-19. A decisão, entretanto, acabou suspensa pelo TST.

Como o Santander conseguiu o efeito suspensivo, o relator do caso no TRT15 estendeu a decisão a todos os bancos, até o julgamento do agravo do Santander. Na audiência, o presidente do Sindicato de Guaratinguetá, Claudio Vasques, reafirmou a importância da testagem nos bancários, alegando que a medida é considerada por autoridades sanitárias como uma das principais estratégias de combate à pandemia, além de garantir a reabertura segura das atividades no país.

Fábio Vieira enfatizou a necessidade de haver uma sinalização por parte dos bancos acerca da efetiva testagem entre os funcionários, restrita às agências que já verificaram casos positivos de contaminação. O procurador também destacou a necessidade de consenso, tendo dito que, de acordo com o posicionamento dos bancos, a realização de exames não seria efetiva. E reforçou a necessidade de detecção antecipada do contágio.

O grupo concordou em apresentar no prazo de 10 dias uma proposta de acordo sobre o tema.

Intimidade

Em alguns momentos o direito à intimidade tem sido levantado como relevante para a discussão sobre obrigação de testagem generalizada. Todo e qualquer exame médico é protegido pelo sigilo, mas há quem sustente que ser possível divulgação de casos de Covid-19.

Edgar Tavares pontua que o conflito de privacidade e saúde não permanece o mesmo no cenário da pandemia. “Em determinadas condições, é possível sim que se obrigue o teste por solidariedade, colaboração e porque todo mundo tem interesse que o ambiente de trabalho seja saudável”, diz.

O sócio da LBS Advogados confirma que a Lei Geral de proteção de Dados tem sido muito acionada nos debates em torno dessa disputa. “Especialmente as empresas têm levantado esse ponto. A lei é um ponto essencial no que diz respeito ao sigilo. Mas isso não tira a necessidade de a empresa proteger o seu trabalhador”, alerta.