Coronavírus

MP que institui suspensão de contrato de trabalho deve ser questionada no STF

Pelo menos dois partidos afirmaram que irão ao STF contra suspensão dos contratos de trabalho

MP, ameaça, ICMS, Justiça do Trabalho
Supremo Tribunal Federal. Crédito: Ascom STF

A Medida Provisória (MP) 927, que permite a suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses, regulamenta o teletrabalho e prevê a suspensão temporária do recolhimento do FGTS, deve ser alvo de ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF). A norma é alvo de críticas por entidades e partidos, e já provoca mobilizações no Congresso.

A MP, que altera as relações trabalhistas por conta da pandemia da Covid-19, foi publicada na noite do último domingo (22/3). Além de prever a suspensão dos contratos a norma define os critérios para a antecipação de férias individuais e coletivas, altera medidas de saúde e segurança do trabalho e permite a constituição de um regime especial de compensação de jornada, por meio de banco de horas. 

As mudanças valem apenas para o período de calamidade pública. Segundo o texto, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição.

“Qual o fundamento da MP? Na minha leitura é fazer o máximo possível para preservar o emprego, ainda que em uma condição ruim”, analisa a advogada Flávia Polycarpo, do escritório Polycarpo Advogados.

A norma, porém, é alvo de críticas. A Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), por exemplo, afirmou que estuda se acionará o Supremo Tribunal Federal a fim de declarar a medida inconstitucional. “A Constituição confere à autonomia negocial coletiva, e aos sindicatos, papel importante e indispensável de diálogo social, mesmo, e mais ainda, em momentos extraordinários. Estabelece a irredutibilidade salarial e a garantia do salário-mínimo como direitos humanos”, salientou a entidade em nota divulgada nesta segunda (23/03). 

No Congresso, o líder do PSB na Câmara dos Deputados, Alessandro Molon (RJ), apresentou um requerimento ao presidente do Congresso Nacional, Davi Alcolumbre (DEM-RJ), para requerer a devolução da MP 927/2020, por inconstitucionalidade. Pedido idêntico foi feito pelo líder do PSL no Senado, Major Olímpio, que argumentou que a medida provisória viola direitos fundamentais dos trabalhadores, e portanto fere cláusula pétrea da Constituição.

Já o Solidariedade informou que acionará o Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar suspender a validade da MP, e um dos pontos atacados será a falta de pagamento da bolsa de qualificação profissional para os trabalhadores atingidos pela medida. O PDT e o PSOL também informaram que vão acionar o STF contra a medida.

A redução de jornada de trabalho em até 50% e de salários pelos empregadores não estão na MP 927, mas fontes consultadas pelo JOTA indicam que o governo federal deve publicar nos próximos dias outra MP com esse conteúdo. A mesma MP deve implementar a medida anunciada na semana passada pelo governo sobre o pagamento de auxílio para os trabalhadores que recebem até dois salários mínimos e forem afetados em razão da redução de jornada e salários.

Medidas provisórias podem ser editadas pelo presidente da República a qualquer momento, e passam a valer a partir de sua publicação. Entretanto, é necessário que o Congresso analise e vote a validade da MP em até 120 dias – caso não seja apreciada, ela perde a validade.

Lay-off

Segundo especialistas ouvidos pelo JOTA, uma dos pontos mais relevantes da MP é a alteração das regras para o lay-off, que é a suspensão temporária do contrato de trabalho. A prática está prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas existiam algumas regras que, de acordo com o setor produtivo, precisavam ser alteradas neste momento. A principal delas era a necessidade de negociação coletiva com os trabalhadores. Ou seja, a mudança não poderia ser uma medida unilateral. 

De acordo com a CLT, a suspensão temporária do contrato de trabalho poderia durar de dois a cinco meses, e deveria estar prevista em acordo ou convenção coletiva. Durante este período, os empregados com o contrato suspenso deveriam ser submetidos a um treinamento profissional, com a possibilidade de pagamento pelo empregador de bolsas-auxílio, sobre as quais não incidem encargos trabalhistas. A Lei 7.998/1990, que regulamenta o seguro-desemprego, prevê que durante esta suspensão contratual o trabalhador terá direito a receber uma bolsa de qualificação profissional com os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, um pagamento nos mesmos moldes do seguro-desemprego.

A Medida Provisória publicada neste domingo estabeleceu, no entanto, que durante o estado de calamidade pública, “o contrato de trabalho poderá ser suspenso, pelo prazo de até quatro meses”. Nesse período, o empregado poderá ser direcionado para curso ou programa de qualificação, que poderá ser online. Além disso, essa decisão “não dependerá de acordo ou convenção coletiva”, o que atende a pedidos feitos por entidades como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) ao governo federal.

A MP ainda retira qualquer garantia de pagamento ao trabalhador, ao fixar, no parágrafo 5º do artigo 18, que “não haverá concessão de bolsa-qualificação no âmbito da suspensão de contrato de trabalho para qualificação do trabalhador” que tiver seu contrato suspenso temporariamente.

Antes da MP, o valor do pagamento poderia variar: para o cálculo era considerada a média de salários dos três meses anteriores à suspensão contratual, e o benefício não pode ser inferior ao salário mínimo. A parcela máxima não poderia passar de R$ 1.813,03. “Alguém pode entrar na Justiça alegando que este artigo é inconstitucional. Mas, ao meu ver, é melhor ficar sem nada e com o contrato suspenso do que demitido”, analisa a advogada Flávia Polycarpo.

O ponto é polêmico, e a constitucionalidade da medida já é alvo de questionamentos. O Solidariedade informou que acionará o STF para tentar suspender a validade da MP, e um dos pontos atacados será a falta de pagamento da bolsa de qualificação profissional para os trabalhadores atingidos pela medida. Outro ponto que será questionado é a possibilidade de acordos coletivos sem a presença dos sindicatos.

FGTS e teletrabalho

A MP também suspendeu o recolhimento do FGTS pelos empregadores, referente aos meses de março, abril e maio de 2020. A permissão vale para todas as empresas, independentemente do número de empregados, do regime de tributação, da natureza jurídica, do ramo de atividade econômica e da adesão prévia.

O recolhimento das competências de março, abril e maio de 2020 poderá ser realizado de forma parcelada, sem a incidência da atualização, da multa e dos encargos. Em caso de rescisão do contrato, contudo, os valores devem ser pagos. 

Outra demanda do setor produtivo, atendida pelo governo na MP, foi a retirada de certas exigências para o teletrabalho, que se tornou comum neste período de quarentena para evitar o contágio pela Covid-19. 

A MP permite que, neste período de calamidade, o empregador poderá, a seu critério e não mais tendo de fazer acordo ou prever a possibilidade em contrato, “alterar o regime de trabalho presencial para o teletrabalho, o trabalho remoto ou outro tipo de trabalho a distância e determinar o retorno ao regime de trabalho presencial”.

Também a critério exclusivo do empregador, as empresas poderão antecipar as férias dos trabalhadores, tendo de avisá-los com no mínimo de 48 horas de antecedência e não podendo ser gozadas em períodos inferiores e cinco dias corridos. E “poderão ser concedidas por ato do empregador, ainda que o período aquisitivo a elas relativo não tenha transcorrido”. 

“Adicionalmente, empregado e empregador poderão negociar a antecipação de períodos futuros de férias, mediante acordo individual escrito”, previu a MP. 

Profissionais de saúde

Para a área de saúde, a MP permite aos hospitais a prorrogação da jornada de trabalho “mediante acordo individual escrito, mesmo para as atividades insalubres e para a jornada de doze horas de trabalho por trinta e seis horas de descanso”. 

O texto admite ainda a possibilidade de adoção de escalas de horas suplementares entre a décima terceira e a vigésima quarta hora do intervalo interjornada, “sem que haja penalidade administrativa, garantido o repouso semanal remunerado”. 

As horas suplementares computadas em decorrência dessas medidas poderão ser compensadas em até 18 meses, contados da data de encerramento da calamidade pública. 

Reações

A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) manifestou repúdio à Medida Provisória nº 927/2020. A entidade diz que a MP vai na contramão de medidas protetivas do emprego e da renda que vêm sendo adotadas por outros países atingidos pela pandemia, como França, Itália, Reino Unido e Estados Unidos. 

“A MP 927, de forma inoportuna e desastrosa, simplesmente destrói o pouco que resta dos alicerces históricos das relações individuais e coletivas de trabalho, impactando direta e profundamente na subsistência dos trabalhadores, das trabalhadoras e de suas famílias, assim como atinge a sobrevivência de micro, pequenas e médias empresas, com gravíssimas repercussões para a economia e impactos no tecido social”, diz a associação. 

Para a Anamatra, as inconstitucionalidades da MP 927 são patentes. “A Constituição confere à autonomia negocial coletiva, e aos sindicatos, papel importante e indispensável de diálogo social, mesmo, e mais ainda, em momentos extraordinários. Estabelece a irredutibilidade salarial e a garantia do salário-mínimo como direitos humanos. Adota o regime de emprego como sendo o capaz de promover a inclusão social. Insta ao controle de jornada como forma de preservação do meio ambiente laboral, evitando que a exaustão e as possibilidades de auto e de exploração pelo trabalho sejam fatores de adoecimento físico e emocional. A presente crise não pode, em absoluto, justificar a adoção de medidas frontalmente contrárias às garantias fundamentais e aos direitos dos trabalhadores”, defende a entidade.