TRABALHO

Covid-19 gerou 4,2 mil inquéritos civis trabalhistas em 100 dias, contabiliza MPT

Falta de EPIs, dispensa em massa e trabalhadores atuando apesar dos contratos suspensos estão entre as denúncias

Covid-19 gerou 4,2 mil inquéritos civis trabalhistas em 100 dias, contabiliza MPT
Crédito: Pixabay
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Cerca de quatro inquéritos civis relacionados à Covid-19 no ambiente de trabalho foram abertos por dia pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em todo o país no período entre 1º de março e 8 de junho de 2020. Segundo procuradores do trabalho ouvidos pelo JOTA, o número pode aumentar com a reabertura gradual de atividades consideradas não essenciais, como o varejo.

Entre os assuntos mais recorrentes estão a falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para os trabalhadores se prevenirem contra a Covid-19 no ambiente de trabalho, a ausência de testagem e de distanciamento mínimo entre os trabalhadores nas empresas, a dispensa em massa e os descumprimentos à Medida Provisória 936/2020, como, por exemplo, a suspensão do contrato de trabalho para empregados que continuam trabalhando.


Hospitais, frigoríficos e presídios

Ao todo foram 4,2 mil inquéritos, muitos originados das mais de 20 mil denúncias de trabalhadores que chegaram ao órgão. Os procuradores explicam que o número de denúncias é bem maior do que os inquéritos porque há denúncias repetidas sobre a mesma situação, e algumas não têm elementos suficientes para a abertura de inquérito civil. O segmento hospitalar, os presídios e os frigoríficos são apontados pelos procuradores como os locais que mais inspiram preocupação em relação às saúde do trabalhador e a Covid-19.

A partir das denúncias e dos inquéritos foram abertas mais de 140 ações civis públicas, assinados 35 Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), realizados 271 procedimentos de mediação e expedidas mais de 10 mil recomendações. Um exemplo foi o TAC assinado entre o MPT em Santa Catarina e a Bugio Agropecuária Ltda. Entre as recomendações estão a implementação de testagem, o home office para grupos de risco e a abstenção dos abates extras. O descumprimento injustificado das cláusulas pactuadas enseja multa mensal de R$ 15 mil por cláusula descumprida, limitado ao valor de R$ 500 mil.

“[O MPT] protege o trabalhador, mas é óbvio que a não vamos zelar por uma medida que termine com os empregos. Temos procurado sempre uma solução consensual. Os termos de ajuste de conduta têm sido o método mais eficaz para dar cabo às denúncias que vêm chegando no MPT. Nós só estamos judicializando quando necessário”, analisa Márcio Amazonas, procurador do trabalho e secretário de Relações Institucionais da Procuradoria-Geral do Trabalho.

Empresas também foram interditadas para assegurar a saúde dos trabalhadores, como mineradoras em Minas Gerais e frigoríficos no sul do Brasil. O MPT de Minas Gerais, por exemplo, conseguiu manter a interdição, no último dia 5 de junho, no complexo das Minas da Conceição, Cauê e Periquito da mineradora Vale em Itabira, até que seja proferida a sentença de mérito.

Segundo o MPT, a mineradora seguiu funcionando mesmo com alto índice de empregados contaminados e com fragilidades nos procedimentos de proteção contra a doença, como aglomerações dos trabalhadores nas minas, nos transportes coletivos e durante a troca de turno.

“Assim, evidenciado fica que as falhas identificadas vêm contribuindo para a ocorrência e manutenção do surto do novo coronavírus que se instalou no estabelecimento, comprovando, de forma cabal, como a empresa perdeu o controle da cadeia de transmissão, não havendo mais possibilidade de intervenções parciais”, escreveu o desembargador Marco Túlio Machado Santos em sua decisão para manter a interdição. A multa pelo não cumprimento é de R$ 500 mil.

Em nota publicada em seu site, a Vale informou que vai cumprir a decisão judicial. “A Vale informa, ainda, que tem consciência de sua responsabilidade socioeconômica e, desde o início da pandemia, tem buscado meios para contribuir com a sociedade brasileira na luta contra o vírus, protegendo seus empregados e as comunidades no entorno de suas operações”.

O frigorífico da JBS/Seara na cidade de Ipumirim, em Santa Catarina, chegou a ser interditado no último dia 18 de maio com denúncia de inexistência ou insuficiência das medidas de controle de disseminação da Covid-19 na planta industrial. Durante um webinar promovido pelo MPT, a vice-procuradora chefe em Criciúma (SC) Ana Roberta Tenorio Lins Haag afirmou que não havia o distanciamento necessário e pelo menos um trabalhador infectado com exame positivo da Covid-19 continuava trabalhando na fábrica da JBS, fatos que levaram à interdição.

A unidade voltou a funcionar no último dia 30 por meio de uma liminar concedida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Em nota enviada pela assessoria de imprensa, a JBS informou que as atividades estão normalizadas e acrescentou:

“A JBS tem o propósito inabalável de garantir a saúde e segurança de seus colaboradores. Com esse objetivo, desde o início da pandemia da Covid-19 no país, a empresa adota um rigoroso protocolo de controle e prevenção da doença em suas unidades. Os procedimentos foram definidos de acordo com os órgãos de saúde e a consultoria de médicos especializados, como o Dr. Adauto Castelo Filho, e do Hospital Albert Einstein, referência médica no país e que tem apoiado a empresa na construção das medidas implementadas em suas unidades, escritórios e demais instalações”

Acordos judiciais

Acordos judiciais também foram firmados, como ocorreu entre o MPT do Rio de Janeiro e a prefeitura da cidade em relação a hospitais municipais. A procuradora do trabalho Isabela Maul Miranda de Mendonça explica que os profissionais dos hospitais municipais de urgência e emergência do Rio de Janeiro estavam trabalhando em péssimas condições de trabalho, por isso, um acordo judicial foi feito para garantir que os trabalhadores tivessem acesso a EPIs e testagem. Além disso, o acordo exige o acondicionamento adequado de corpos, como refrigeração, para evitar a propagação do vírus.

“Os hospitais no Rio são uma mistura e têm uma gama de tipos de contratos. Alguns hospitais públicos são administrados por OS [Organização Social] e você tem de tudo, servidores concursados, outros CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], e os terceirizados de limpeza, conservação, técnicos de raio-X. Conseguimos na Justiça do trabalho do Rio liminares muito boas para todos os trabalhadores, todos foram objeto da tutela. Isso fez com que a prefeitura se aproximasse e firmamos o acordo”, explica Isabela Maul.

O Rio de Janeiro é a regional do MPT com a maior quantidade de denúncias e inquéritos civis abertos.

Mudanças

Os procuradores destacam que, ao longo dos 100 dias de atuação, as demandas relacionadas à Covid-19 foram se modificando. Nos primeiros dias, a questão da falta de EPI era a mais eminente, principalmente em setores considerados essenciais e que não tiveram as atividades paralisadas, como hospitais e supermercados. “A carência de EPIs foi uma coisa que mudou. No começo alguns lugares tiveram dificuldade para conseguirem EPIs, e depois foi acontecendo uma acomodação. Com isso, faltou máscara N95, faltou máscara normal, álcool em gel e luvas até em ambiente hospitalar”, explica o procurador Márcio Amazonas.

Depois, as dúvidas quanto aos acordos da redução e suspensão temporária do contrato de trabalho trazidos pela MP 936/2020 começaram a aparecer. A primeira delas era relativa à necessidade ou não de acordos coletivos ou se valeriam os acordos individuais. A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu sobre a possibilidade do acordo individual, sem a necessidade da intermediação de um sindicato.

Atualmente as dispensas em massa, as indenizações trabalhistas após a demissão e o não cumprimento da MP 936/2020 estão entre os assuntos sobre os quais vêm crescendo as denúncias e os inquéritos civis. “Temos recebido denúncias de trabalhadores que estão com contrato suspenso, recebendo o auxílio do governo e, mesmo assim, continuam trabalhando”, exemplifica a procuradora Isabela Maul.

A procuradora lembra ainda de redes como a churrascaria Fogo de Chão, que demitiu os trabalhadores e deixou de pagar o aviso prévio indenizado que, na visão da empresa, deveria ser pago pelos governos locais que tomaram medidas restringindo o funcionamento de serviços e comércios, como restaurantes. “Fica uma ideia ruim de que, em um cenário como esse, os direitos trabalhistas não existem mais. Agora estamos buscando medidas reparatórias. As verbas foram quitadas, mas a gente quer deixar o exemplo de que as empresas não tentem fazer isso porque não vai dar certo”, afirma.

“O caminho é a mediação de conflitos. A empresa pode procurar o MPT, buscar uma mediação. Vem a empresa, a gente convida os sindicatos para pensarmos juntos nas soluções”, complementa a procuradora.