Letícia Paiva

Passada a pandemia, Brasil terá dificuldade em obter força de trabalho qualificada e já se fala numa “geração perdida” de jovens que ficaram sem acesso à educação e experiência profissional no período. Os prognósticos para essa população vinham em uma trajetória negativa, mas as crises sanitária e econômica agravaram o cenário. Esse é potencialmente o pior momento do século para o jovem – a questão é como tornar os efeitos menos duradouros, barrando prejuízos ao desenvolvimento do país e até às empresas. 
Quando se trata de desemprego, o impacto da crise sanitária foi maior para jovens de 18 a 24 anos. A taxa de desocupação, que era de 23,8% no quarto trimestre de 2019, logo antes da pandemia, saltou para 29% no primeiro trimestre deste ano. Isso corresponde a quase 4,1 milhões de jovens sem emprego, de acordo com números da Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, divulgados na quinta-feira (27/5). Negros foram mais afetados, assim como mulheres, que migraram para a inatividade de forma contundente. 
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Olhando em retrospecto para anos anteriores, se tem dimensão do avanço do problema. Em 2015, a proporção de ocupados entre as pessoas de 30 a 59 anos, era 7,3 pontos percentuais acima dos jovens da faixa etária de 19 a 29 anos; essa diferença se elevou para 12,3 no ano passado, conforme observou estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o aprofundamento da desigualdade no mercado de trabalho na pandemia, publicado em abril. 
Este comportamento foi percebido em diferentes crises econômicas, mas na atual chama atenção o desalento na busca de emprego pelos jovens e a ampliação do grupo conhecido como “nem-nem” – que não estuda e também não trabalha. “Esse fenômeno não é novo, mas a virada da pandemia é que eles saíram direto para a inatividade, sem nem transitar pelo mercado de trabalho. Eles podem passar quase dois anos sem acumular capital humano e ser atropelados por uma outra geração sem conseguir se recuperar”, afirma Enid Rocha, pesquisadora do Ipea e autora de estudo sobre esse grupo. 
Em meio à pandemia no ano passado, a proporção de jovens que não trabalham nem estudam atingiu o maior patamar desde o início da série histórica, oito anos antes. Eles são um terço do total de 18 a 29 anos. Também foi a primeira vez que o montante de jovens totalmente fora da força de trabalho ultrapassou o número daqueles que ainda buscam vaga. Esses desencorajados vêm subindo de forma preocupante desde meados de 2015. 
O governo federal pretende lançar socorro social voltado para essa população. O ministro da Economia, Paulo Guedes, pretende lançar iniciativa que remete ao Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), do segundo mandato de Dilma Rousseff. O novo pacote seria estruturado em duas frentes: Bônus de Inclusão Produtiva (BIC) e Bolsa de Incentivo à Qualificação (BIQ). Eles têm propósito de repassar recursos a jovens de 18 a 29 anos.
A ideia é que eles recebam o equivalente ao valor do salário mínimo por hora (cerca de R$ 5). Em jornada reduzida, de seis horas, a bolsa chegaria a R$ 600 por pessoa. Metade dos recursos viriam dos cofres públicos e a outra metade, da iniciativa privada. A proposta envolveria o Sistema S na qualificação, prevendo a inserção dos beneficiados na rotina de trabalho das empresas. Os jovens teriam vínculo especial com a empresa, dentro de um regime de treinamento; a provável duração da experiência seria de quatro meses.
<h3>Anos de educação perdidos</h3>
A falta de acesso à escola pune de forma dupla as adolescentes e mulheres jovens. Para elas, um fator importante é gravidez ou cuidado de filhos ou irmãos. Ainda que elas tenham ensino remoto, recaiu principalmente nelas a rotina de cuidados em casa – aumentada pela suspensão de aulas presenciais na maior parte do ano, ao mesmo tempo em que trabalhos presenciais de adultos retornaram. O que se vê ainda são fragilidades na educação que podem aumentar, além da desigualdade de gênero, disparidades de renda, raciais e regionais após a pandemia. 
Desde a pré-escola até a pós-graduação, podem existir 6 milhões de estudantes sem acesso à internet no Brasil, excluídos portanto do ensino remoto na pandemia. Com maior volume de alunos no total, o ensino básico é o que mais sofre com o problema. Ainda assim, são 740 mil adolescentes da rede pública não tem a tecnologia e cerca de outros 190 mil graduandos. 
Não houve também, na maior parte do país, retomada das aulas presenciais em boa parte do ano. “No ensino médio, muitos terão ficado mais tempo fora das escolas do que frequentando as aulas, enquanto outros tiveram condições opostas. Será necessário inclusive um trabalho de autoestima com essas pessoas, que não têm mais esperança”, diz Remi Castione, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), coautor do estudo que chegou a esses números para a crise com dados mais recentes disponíveis, de 2018. 
A maior parte dos sem acesso estão fora das capitais – mais de 80% em todos os níveis. Além disso, havia três vezes mais homens negros ou indígenas no ensino superior sem conexão em relação aos brancos e amarelos. Foi calculado um custo de R$ 500 milhões para disponibilizar tecnologia para os alunos do ensino médio, além de outros 30 para o nível superior. Ainda que houvesse esse esforço, ao menos 250 mil crianças, adolescentes e jovens não seriam alcançados – pois não dispõe nem de televisão em casa. O problema é muito difícil de ser solucionado, ainda mais quando não há recursos para enfrentamento. 
Nos primeiros meses deste ano, na tentativa de resolver a lacuna de conectividade, foi aprovado nas duas casas legislativas o Projeto de Lei 3.477/2020 para dar acesso à internet a alunos e professores da educação básica pública, determinando repasse de R$ 3,5 bilhões do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) para o programa. A matéria foi vetada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), por razões orçamentárias; ainda não há data fechada para o Congresso analisar se derrubará o veto. 
Mais recentemente, o foco do embate entre educação e orçamento se voltou para a queda de repasses destinados ao ensino superior. Em relação ao ano passado, a redução de recursos do Ministério da Educação às universidades federais para este ano foi de R$ 1,2 bilhão, ou 18%, calcula a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Além disso, foram congelados R$ 2,7 bilhões. Assim, 60% dos recursos estão condicionados à eventual aprovação pelo Congresso Nacional. 
O quadro fez com que instituições anunciassem que, se não houver mudanças, devem inativar seus prédios neste ano – embora as aulas estejam sendo feitas à distância, isso poderia impactar o desenvolvimento de pesquisas e o funcionamento de hospitais universitários. No ano passado, 4 milhões de alunos deixaram as salas de aula – as maiores taxas nos ensinos superior (16%) e médio (10%), principalmente por dificuldades financeiras, constatou levantamento do Datafolha com o C6 Bank. Para os próximos anos, a preocupação é que o abandono não seja revertido, havendo impacto de mais longo prazo nos anos de formação. 
A mingua de recursos também pode impactar a realização neste ano do Enem, o maior vestibular do país. Em ofício enviado pelo ministro da Educação, Milton Ribeiro, à Economia pede o desbloqueio de recursos e suplementação para cumprir demandas da área, como a realização do exame e o pagamento de bolsas a estudantes da pós-graduação. A estimativa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), responsável pelo exame, é que sejam necessários R$ 794 milhões para a prova neste ano.
Foi aventada a possibilidade de que o Enem ficasse para os primeiros meses de 2022, o que poderia inviabilizar matrículas em universidades ainda no primeiro semestre. Ainda não há posição oficial sobre quando será a prova, mas as inscrições estão previstas para iniciar em junho. Até lá, jovens estudam para a prova sem saber se terão chance de ingressar no ensino superior no próximo ano.
<h3>O papel e o impacto nas empresas</h3>
A continuidade dos estudos de jovens é muito afetada pela perda de renda familiar. Na pandemia, um indicativo disso é o aumento de adolescentes de 15 a 17 incluídos no mercado de trabalho – fora da escola ou não, eles têm as condições de aprendizagem reduzidas. O caminho, frequentemente, é o da informalidade, tanto nessa faixa quanto acima quando há baixa escolaridade. 
Nesse sentido, houve redução de jovens obtendo renda por meio do programa federal Jovem Aprendiz, que estipula às médias e grandes empresas patamar mínimo de 5% de vagas em relação ao total de funcionários. Em 2020, foram abertas 167 mil postos a menos no programa junto à associação Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), que faz essa ponte. “Na tentativa de sobreviver, empresas deixaram de cumprir a regra. Também não entendem que se perde muito ao não aliar trabalho decente com condições de estudar. Não se pode abandonar o programa agora”, diz Humberto Casagrande, presidente do CIEE. 
Os estágios para universitários seguiram a mesma rota de queda, com alguma recuperação nos primeiros meses deste ano, mas ainda aquém dos patamares anteriores à pandemia. Em ambos os modelos, a jornada permitida é de até seis horas diárias, o que contribui para a permanência na educação formal. Para as empresas, há menos encargos trabalhistas devido ao regime especial, como FGTS reduzido. 
“No momento em que vemos o Estado sobrecarregado e sem plano de atuação, cabe à iniciativa privada agir, mas a magnitude do problema é tão grande que dificilmente iniciativas muito pontuais darão conta”, afirma Enid Rocha, do Ipea. Para as empresas, a questão principal é que, se nada for feito rapidamente, faltará profissionais inclusive para os postos de entrada. Nessa linha, está em risco a prioridade de grandes empresas em ampliar diversidade em seus quadros a passos largos – considerando aqui o fato de que é sobretudo a população pobre e negra a que pode deixar os bancos escolares e universitários. 
Outra ameaça às empresas é que se amplie a lacuna, já existente, em certas funções e carreiras. Exemplo substancial é o setor de tecnologia, que se aqueceu no período. Foram 54 mil novos postos de trabalho em TI e comunicação entre janeiro e novembro de 2020, com crescimento frente ao ano anterior à pandemia, segundo a Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom). Otimista, a expectativa é de haver necessidade de 70 mil profissionais por ano nesse setor até 2024. 
Ao mesmo tempo, empresas relatam dificuldade de contratar cientistas de dados e desenvolvedores por falta de preparo técnico, mesmo quando não há exigência de formação superior na área. Uma aposta tem sido as parcerias entre quem precisa desses profissionais e quem é capaz de treiná-los – principalmente com enfoque em grupos vulneráveis. 
"Temos falado em justiça racial e social na pandemia. Os cargos de entrada das empresas são onde há menos barreiras para ampliar isso, por isso é importante pensar em qualificação para quem está dentro e também fora, mapeando profissionais habilitados para os próximos anos", defende Liliane Rocha, fundadora da Gestão Kairós, consultoria de sustentabilidade e diversidade para empresas. 
Iniciativas como Generation Brasil (organização criada pela consultoria McKinsey), {reprograma} e PrograMaria ganharam fôlego na pandemia dando aporte técnico para contribuir com a inserção de jovens no mercado de trabalho. O Santander foi uma das companhias a criar o próprio treinamento, de 75 dias para ensinar programação e com 50 mil bolsas. Entretanto, faltam ainda iniciativas robustas que deem conta de manter alunos nas escolas até o final do ciclo recomendado.

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JOTA

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