SUPRA

A ciência pode determinar a competência para editar leis no combate ao coronavírus?

Supremo define nesta quarta (15) os papéis de cada um dos entes federativos no combate à Covid-19

Fotos: Heudes Regis /SEI/ Fotos Públicas

Definir os papéis de cada um dos entes federativos no combate ao novo coronavírus está na ordem do dia. O plenário do Supremo se reunirá na próxima quarta-feira para enfrentar a questão. Se União, estados e municípios podem editar leis no contexto da pandemia, quais devem prevalecer em caso de conflito? As respostas têm sido variadas, mas parecem chegar a uma conclusão comum: devem prevalecer as regras (1) que mais protejam a saúde, e (2) que o façam a partir da ciência e das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Contudo, é juridicamente problemático que recomendações da OMS e o consenso científico sejam utilizados como critério para resolver possíveis conflitos de competência.

A delimitação da competência de cada um dos entes deve se guiar pela interpretação do que são as competências legislativas concorrentes, previstas no artigo 24 da Constituição. Em matéria de defesa à saúde, cabe à União estabelecer as normas gerais, enquanto estados e municípios podem editar normas suplementares, de modo a atender às especificidades regionais e locais. A União fez uso dessa competência ao editar a Lei 13.979/20 e também a medida provisória 926/20, que alterou dispositivos da lei.

A partir daí, dois debates podem surgir sobre a aplicação dessa lei.

O primeiro tem a ver com sua amplitude – a definição da competência da União, que pela Constituição, pode apenas editar normas gerais. Caso a União ultrapasse esse limite, editando normas específicas, elas não serão aplicáveis a estados e municípios. Esse é um debate formal, e passa pela análise de apenas uma lei, que é a lei da União, e não deve envolver quaisquer considerações sobre o que diz a ciência ou a OMS. São planos de análise diferentes. O maior ou menor embasamento de uma medida, seja pela comunidade científica ou pela OMS, não a tornará mais ou menos geral ou específica para fins desses dispositivos constitucionais.

Portanto, o primeiro passo é verificar se a União avançou ou não sobre a competência dos estados. Se isso tiver ocorrido, os dispositivos específicos serão aplicados apenas no âmbito federal, mas não de estados e municípios, que são os entes da federação que possuem a competência concorrente para editar as normas específicas.

Aliás, quando está em jogo a repartição da competência concorrente entre União, estados e municípios, o STF tem uma série de decisões em que adota uma postura que limita a atuação dos entes locais, privilegiando a interpretação que confere um escopo amplo à legislação federal, independentemente de considerações científicas ou sobre qual das leis protegeria mais determinado direito. No ano passado, por exemplo, ao julgar caso que envolvia a competência para legislar sobre telecomunicações e direito do consumidor, o tribunal disse expressamente que a disciplina federal deveria prevalecer caso houvesse confronto com a estadual.

Além disso, a lei 13.979/20 e as demais normas editadas pela União podem ser questionadas a partir de um ponto de vista material. Aqui, a pergunta chave é: a legislação promove ou viola o direito fundamental à saúde? Se a norma geral for contrária ao direito fundamental ou, como bem pontuou Rodrigo Brandão, conferir proteção insuficiente à saúde, ela deverá ser considerada inconstitucional. Imagine, por exemplo, que a União edite uma lei que determine a exposição compulsória e simultânea de todas as pessoas ao vírus. A lei editada pela União seria inconstitucional – não por violar competências de outros entes, mas por atacar um direito fundamental. Nesse ponto, sim, é possível que recomendações científicas e da OMS entrem na análise.

Por sua vez, estados e municípios podem editar normas suplementares e específicas, para ajustar o combate ao novo coronavírus às realidades locais. A necessidade das leis estaduais e municipais é quase óbvia. Imagine, por exemplo, como o combate ao novo coronavírus irá variar entre os municípios que possuem o sistema de saúde integralmente público e aqueles outros em que o serviço é partilhado com a iniciativa privada. Ou estados que se localizam na costa, e por isso podem receber navios estrangeiros, e aqueles que não se localizam. Como consequência, temos a edição de milhares de leis diferentes sobre o mesmo assunto, o que pode gerar a falta de coordenação, vista como necessária para o combate à pandemia. Para além do caso da saúde, o fenômeno ocorre em outros ramos do direito, como nas leis urbanísticas ou na organização do comércio. Porém, esse foi o arranjo federativo escolhido pelos constituintes. Buscar a coordenação política dos entes é desejável. Desejável, no entanto, não é sinônimo de constitucionalmente exigível. A falta de coordenação pode ser ruim, mas não é, a princípio, inconstitucional.

Além das normas específicas e suplementares, há mais uma sutileza na repartição de competências concorrentes. Caso a União não edite normas gerais sobre determinado assunto, os estados poderão editá-las. Assim, se a Lei 13.979/20 não existisse, ou se não esgotasse as normas gerais sobre o tema, poderiam os estados editar normas gerais sobre o assunto, e elas seriam eficazes até que a União exercesse sua competência de edição de normas gerais. Isso é relevante para um ponto específico.

Imagine que a União edite normas gerais materialmente inconstitucionais. Se isso ocorrer, e se houver a declaração de inconstitucionalidade, os estados terão a competência legislativa plena, inclusive para editar normas gerais. Situação semelhante ocorreu no caso do amianto, em que o Supremo decidiu que a norma geral da União era pouco protetiva ao meio-ambiente e, portanto, inválida, dando aos estados a competência para editar normas gerais até que uma norma federal mais protetiva fosse editada.

Mais uma vez, essa parece ser a única situação em que considerações sobre recomendações científicas e da OMS entram em cena: para ajudar a definir se as normas são materialmente constitucionais ou não. E essas considerações não são válidas apenas para a União. Caso sejam editadas normas gerais pela União, ou específicas por estados e municípios, e elas sejam contrárias às recomendações sanitárias, é possível discutir se elas são compatíveis com o direito à saúde, assegurado constitucionalmente.

Em nenhum dos casos, o caminho para resolver a questão federativa em si passa por avaliar qual é a norma mais protetiva ou mais compatível com o direito à saúde no caso concreto da pandemia. Se a lei for editada pela União, é preciso averiguar se estamos diante de norma geral e, além disso, se é materialmente constitucional. Por outro lado, se for editada por estados e municípios é preciso verificar se as normas se inserem no interesse regional e local – ou se são normas gerais editadas diante do não exercício da competência concorrente pela União – e também se são materialmente compatíveis com o direito à saúde.

É inegável que a definição da competência de cada ente gera um conflito político entre União, estados e municípios, sobretudo no momento atual. Porém, comparar quais políticas são as mais protetivas para a saúde, ou se as recomendações científicas ou da OMS foram seguidas na edição de uma lei federal, estadual ou municipal são, a princípio, questões irrelevantes para definir qual ente federativo é competente para legislar sobre o assunto.