
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, nesta quinta-feira (26/11), que o Estado deve oferecer, sempre que possível, alternativas de datas para pessoas que não possam prestar concursos públicos ou atividades de serviço público em determinados dias por motivos religiosos. O julgamento levou três sessões plenárias e motivou debates entre os ministros quanto à solução firmada.
O colegiado concluiu que, em respeito à liberdade religiosa, a administração pública deve buscar alternativas àqueles que professam fé que imponha particularidades, quando for razoável. Ou seja, os ministros se preocuparam em assentar que não é em todo e qualquer caso que a administração pública deverá se adequar às idiossincrasias religiosas. Por maioria, foram fixadas duas teses de repercussão geral, que deverão ser observadas por todo o Judiciário do país:
“Nos termos do artigo 5º, VIII, da Constituição Federal é possível a realização de etapas de concurso público em datas e horários distintos dos previstos em edital, por candidato que invoca escusa de consciência por motivos de crença religiosa, desde que presente a razoabilidade da alteração e a preservação da igualdade entre todos os candidatos e que não acarrete ônus desproporcional à administração pública que deverá decidir de maneira fundamentada.”
“Nos termos do artigo 5º, VIII, da Constituição Federal é possível à Administração Pública, inclusive durante o estágio probatório, estabelecer critérios alternativos para o regular exercício dos deveres funcionais inerentes aos cargos públicos, em face de servidores que invocam escusa de consciência por motivos de crença religiosa, desde que, presente a razoabilidade da alteração, não se caracterize o desvirtuamento no exercício de suas funções e não acarrete ônus desproporcional à administração pública, que deverá decidir de maneira fundamentada.”
Foram dois processos julgados em conjunto. No recurso extraordinário (RE) 611.874, um homem adventista passou na prova objetiva para o cargo de técnico judiciário no Acre, mas a prova de aptidão física foi marcada para um sábado. Como a religião adventista não permite que os fiéis trabalhem ou se esforcem do pôr-do-sol de sexta-feira ao pôr-do-sol de sábado, o candidato então acionou a Justiça e conseguiu uma liminar para mudar a prova para um domingo, o que foi mantido pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1).
A União então recorreu ao STF, alegando que há violação ao princípio da igualdade e que atividades administrativas, desenvolvidas com o objetivo de prover os cargos públicos, não podem estar condicionadas às crenças dos interessados. O relator é o ministro Dias Toffoli.
O segundo caso é o ARE 1.099.099, interposto por uma professora adventista contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que manteve a reprovação no estágio probatório por ela ter se recusado a ministrar aulas às sextas-feiras após o pôr do sol, faltando 90 vezes injustificadamente em razão de suas convicções religiosas.
O TJSP, ao negar o recurso da professora, entendeu que o mero decurso do prazo de três anos não defere ao servidor o direito à estabilidade, sendo necessária a aprovação na avaliação do estágio probatório. Ela então recorreu ao STF. Este processo tem relatoria do ministro Edson Fachin.
Toffoli foi acompanhado pelos ministros Nunes Marques e Gilmar Mendes, vencidos. Fachin teve o entendimento seguido por Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Luiz Fux. A tese que teve aderência da maioria dos ministros foi a proposta pelo ministro Alexandre de Moraes. O ministro Marco Aurélio acompanhou a maioria no RE 611874 e ficou vencido no ARE 1.099.099. Como Fachin aderiu à redação dada por Moraes e abriu a divergência do caso relatado por Toffoli, Fachin fica como redator para ambos os acórdãos. Leia a íntegra dos votos de Fachin.
Relatores
Toffoli, o primeiro a votar, e que no fim ficou vencido, disse entender que o tema é de “extrema importância” e que a solução se amplia aos inúmeros concursos públicos realizados pelas administrações públicas. “A situação sob análise refere-se ao exercício da escusa de consciência pelo indivíduo nos casos em que há uma faculdade ou uma obrigação espontaneamente assumida. E é nesse ponto que se forma o elemento limitador do alcance deste julgado”, disse.
Para ele, não há direito subjetivo à remarcação de prova com base em preceito de liberdade religiosa. “Nada obsta que a Administração, ao realizar um concurso público ou um vestibular, escolha datas não coincidentes com a sexta-feira ou o sábado, por exemplo. Todavia, a escolha cabe apenas à Administração, pois somente ela saberá os custos reais da escolha para adequar o certame aos candidatos”, explica o relator do RE 611.874. Leia a íntegra.
O ministro destacou que o Estado deve assegurar a liberdade religiosa, mas essa proteção, por meio do Estado, deve se dar às atividades religiosas. Não caberia, então, exigir do Estado “a modificação da forma de cumprimento de faculdades ou de obrigações espontaneamente assumidas pelo fiel para adequá-la à crença por ele professada”. Para ele, na medida em que as exigências são as mesmas para todos os interessados em um concurso, o princípio da igualdade está observado.
Fachin, por outro lado, defendeu que é dever do Estado oferecer obrigações alternativas para garantir a liberdade religiosa de servidor e de candidato em concurso público. O ministro lembrou a experiência bem-sucedida da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que, em 2009, passou a permitir aos sabatistas prestar o exame em horário alternativo e, posteriormente, passou a aplicar as provas apenas aos domingos.
Votos
O ministro Nunes Marques acompanhou o entendimento de Toffoli. Ele apontou que uma breve visita à história da humanidade revela que a intolerância religiosa foi grande causa de sofrimento para grande parte da população. Ele lembrou também que a laicidade do Estado não significa um Estado ateu. O ministro, na sua sabatina, fez várias referências aos valores religiosos que o guiam, mas, no voto, defendeu a laicidade da administração pública.
Marques defendeu que não é possível exigir do Estado uma mudança de data de concursos públicos em decorrência da presença de candidatos sabatistas porque não há previsão legal para tanto. Além disso, para ele, diversos fatores levam os órgãos que realizam concursos a marcar as provas para os fins de semana, como o baixo fluxo de veículos, a possibilidade de comparecimento do maior número possível de candidatos, facilidade de aluguel de salas de aula e contratação de fiscais de prova.
“Ninguém é compelido a prestar concursos públicos, importante observação feita pela PGR. É importante observar que ninguém está sendo obrigado a deixar de fazer alguma coisa. A eventual decisão de não prestar prova é inteiramente do candidato”, disse o ministro. Marques afirmou que, ao esbarrar em restrições deste tipo, o candidato sabatista o faz por uma proibição da denominação religiosa que segue, não estatal.
O ministro Alexandre de Moraes deu o segundo voto no sentido de que, quando possível, o Estado deve flexibilizar datas de concurso público e de atividades obrigatórias em cargos públicos quando o candidato ou servidor invoque escusa de consciência. “Não se pode considerar como plena liberdade religiosa se o Estado obriga alguém a optar entre sua profissão e sua fé”, disse. Para o ministro, a Constituição não se limita apenas a proclamar a laicidade do Estado de um lado, e a liberdade religiosa do outro, mas também consagrou “a absoluta necessidade do interrelacionamento e complementaridade entre liberdade religiosa e laicidade estatal”.
Moraes refutou o argumento utilizado pelo ministro Dias Toffoli de que não haveria necessidade de flexibilização de datas por razões religiosas porque ninguém é obrigado a prestar concurso público. O ministro defendeu que a análise da obrigatoriedade deve ser um passo adiante, pois quem opta livremente a prestar concurso público, tem uma obrigação de seguir os dias do edital, e quem é aprovado no concurso tem a obrigação de fazer determinadas atividades, como dar aulas às sextas-feiras a noite.
Já o ministro Luís Roberto Barroso enfatizou o papel de destaque que a religiosidade ainda desempenha no mundo contemporâneo, embora, na visão dele, “esse papel tem que ser tanto quanto possível reservado à vida privada”. Ele afirma que não existe hierarquia entre direitos fundamentais e princípios constitucionais.
“Em matéria de religião há dois grandes parâmetros: a liberdade de religião e a laicidade do Estado. O primeiro significa que o papel do Estado é assegurar um ambiente de respeito e segurança para que as pessoas professem as suas crenças. E o segundo é que o Estado deve ter uma posição de neutralidade perante as religiões, sem privilegiar nem desfavorecer nenhuma delas.”
No caso, há o direito à liberdade religiosa e o bom funcionamento da administração pública, que também atende a diversos interesses, como também a direitos fundamentais de todos. “Importante assinalar que a liberdade religiosa é fundamental, mas por certo que não é absoluta. Portanto ela pode ter de ceder diante de outros direitos fundamentais ou de interesses da administração constitucionalmente previstos, por exemplo, na condução de concurso público está embutida a ideia de igualdade, que é fundamental que eventualmente pode precisar ser contraposta, sim, à liberdade religiosa, além dos interesses legítimos da administração pública. Portanto, se deve evitar ônus desproporcional”, refletiu o ministro.
A ministra Rosa Weber destacou, em seu voto, que “restrições ao discurso religioso somente são admissíveis quando traduzem verdadeira exigência da preservação da segurança, da ordem da saúde ou da moral públicas ou dos direitos e liberdades das demais pessoas”. Para a ministra, “por serem as liberdades de consciência e de crença invioláveis, compete ao Estado tutelar suas diversas formas de expressão”.
Weber disse que “a neutralidade exigida do Estado em razão da premissa da regra constitucional da laicidade não implica indiferença perante às religiões e suas demandas”. Para a ministra, “constitui obrigação moral e jurídica do Estado constitucional democrático concretizar os direitos fundamentais. Não lhe cabe frustrar seus direitos de proteção, atuando de forma insuficiente ou mesmo deixando de atuar”. Assim, entendeu que, quando possível e razoável, o Estado deve promover alterações necessárias para acomodar o livre exercício da liberdade religiosa.
O ministro Gilmar Mendes integrou a corrente minoritária. Para ele, autorizar que alterações como as pedidas sejam feitas pode ferir isonomia e imparcialidade. “A administração pública não pode ficar à mercê de individualidades. pode afetar interesses de toda a sociedade”, disse. Ele afirmou se preocupar com o fato de a discussão ser feita com repercussão geral, já que as teses podem ter consequências não previstas pelo colegiado.
“Inevitavelmente, vão se buscar os fundamentos determinantes do decisum. O primeiro caso é muito particularizado e o próprio TRF ressaltou essas particularidades, o fato de se poder fazer a prova em outro local. Mas é claro que se até esse fato se generalizar, considerada a massa de pessoas que se habilitam aos concursos, isso passa a ser um grave problema de organização. Então me preocupa que as conclusões aqui inevitavelmente serão aplicadas nesse longínquo Brasil com as realidades e peculiaridades que conhecemos”, disse.
O ministro ressaltou ter “toda a simpatia para a liberdade religiosa” e disse que a liberdade é “talvez uma das bases do nosso pluralismo”, o que tem que ser preservado. “Mas me parece que na ideia da laicidade e da neutralidade do Estado tem que estar também presente a ideia de que o aparato estatal não pode ficar refém de idiossincrasias de cada religião.”
No primeiro caso, sobre a data de concurso público, o decano da Corte, ministro Marco Aurélio, entendeu que, como o concurso já havia sido feito, a decisão não poderia ser desfeita. Não houve, ainda, ofensa ao princípio da isonomia e nem ônus à administração. Para ele, o tratamento foi igualitário, uma vez que ele apenas realizou a prova com os candidatos de outro estado e não pretendeu uma segunda chamada. O ministro seguiu o entendimento do relator, ministro Luiz Edson Fachin. Por outro lado, no segundo processo, também acompanhou o relator, integrando a linha que ficou vencida.
“Essa postura da administração pública que não foi avisada de nada antes das faltas pode ser glosada entendendo-se que a professora teria direito liquido e certo a não comparecer em sala de aula 90 vezes, sem aviso, porque abraçara a religião que abraçara? A resposta, para mim, é desenganadamente negativa, sob pena de ter-se na administração pública bagunça, a baderna”, disse.
O presidente da Corte, ministro Luiz Fux, ao aderir à corrente majoritária já formada, afirmou defendeu que as liberdades foram feitas para serem exercidas. “A liberdade de reunião libera a reunião, a liberdade de imprensa libera a publicação e a liberdade religiosa não pode ser uma mera divagação acadêmica. Ela é fruto do próprio conceito de liberdade e a antítese de liberdade é a intolerância”, disse.