A arbitragem é método adjudicatório de resolução de conflitos, por meio da qual partes capazes de contratar podem atribuir a terceiro jurisdição para resolver litígios ligados a direitos patrimoniais disponíveis. Esta é a definição prevista na Lei nº 9.307/1996 (Lei de Arbitragem).
Em linha gerais, portanto, a escolha pela arbitragem significa, consequentemente, renúncia à jurisdição estatal, na medida em que havendo convenção de arbitragem o conflito não será, em princípio, resolvido pelo Poder Judiciário, mas, sim, pelo(a) árbitro(a), quando se escolher julgador único, ou pelo Tribunal Arbitral, quando as partes optarem pelo julgamento colegiado.
Se as partes, em decorrência da autonomia privada de vontade, optaram pela arbitragem como método de resolução de disputas é porque, no momento da assinatura do contrato, entenderam que seria o modelo mais adequado diante das peculiaridades do direito material ou, muitas vezes, porque poderiam livremente regular o procedimento, desvinculando-se das amarras procedimentais do Código de Processo Civil.
Seja por qual motivo for, a verdade é que o entusiasmo presente no momento da assinatura do contrato em que há convenção de arbitragem nem sempre é reproduzido quando os primeiros sinais de litígio passam a existir. As razões são as mais variadas, citando-se, por exemplo, os custos da arbitragem, que geralmente são mais elevados do que aqueles praticados pelos Tribunais vinculados ao Poder Judiciário, ou até a intenção de utilizar expedientes para tumultuar a análise do direito material, como uma tentativa desesperada para fragilizar o(a) adversário(a).
Mas a verdade é que a Lei de Arbitragem, o Código de Processo Civil e, principalmente, a jurisprudência têm mecanismos que buscam prestigiar a arbitragem, respeitando-se, assim, a escolha das partes em conferir jurisdição ao(à) árbitro(a). Cite-se, por exemplo, as regras dos artigos 337, X, e 485, VII, ambos do CPC, que estabelecem, respectivamente, que o réu antes de discutir o mérito poderá, preliminarmente, apontar a existência de convenção de arbitragem, o que possibilita ao Juiz, se acolhida a preliminar, extinguir o processo sem resolução do mérito.
Por outro lado, no que diz respeito à lei de arbitragem, o artigo 8º, parágrafo único, reconhece que cabe ao árbitro decidir de ofício, ou a requerimento das partes, questões relacionadas à existência, à validade e à eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula arbitral. Trata-se, pois, da positivação do princípio kompetenz-kompetenz, ou, em português claro, competência-competência, que visa justamente proteger a escolha das partes em conferir jurisdição ao(à) árbitro(a).
As regras apontadas acima são mecanismos que a lei estipula para prestigiar a arbitragem, evitando que, seja por qual motivo for, a vontade das partes no momento da assinatura do contrato deixe de prevalecer no momento do potencial litígio. Não se pode deixar de dizer, inclusive, que o Poder Judiciário, aqui citando-se especialmente o Superior Tribunal de Justiça (STJ), tem sido um importante aliado para o desenvolvimento da arbitragem no Brasil ao longo das últimas décadas[1].
Ocorre que, como qualquer regra jurídica, a discussão acerca da convenção de arbitragem como preliminar de contestação não está imune a críticas.
Este breve artigo objetiva discutir principalmente problemas que estão relacionados ao momento e à forma que a lei faculta a alegação de convenção de arbitragem pela parte que é demandada judicialmente. Não se tem a pretensão, evidentemente, de exaurir o tema, porque certamente exigiria trabalho mais profundo, o que é incompatível com a função desta Coluna.
Todavia, a ideia é, desde já, discutir possibilidades para que o Poder Judiciário possa conhecer da alegação de convenção de arbitragem, sem prejuízo às garantias fundamentais do processo previstas na Constituição Federal.
Vimos acima que se porventura for proposta demanda judicial com o objetivo de discutir questão fática ou jurídica disposta em convenção de arbitragem, o Poder Judiciário poderá extinguir o processo sem julgamento de mérito, em razão da ausência de jurisdição.
O raciocínio do parágrafo anterior não muda, em regra, mesmo se houver, por exemplo, alegação de nulidade da cláusula compromissória pelo autor da ação. Aplica-se o princípio kompetenz-kompetenz. Isso não quer dizer, contudo, que o Poder Judiciário não terá oportunidade de enfrentar o tema relativo à alegada nulidade. A possibilidade existe e deverá acontecer, tão somente, no momento que se julgar eventual ação anulatória proposta pela parte interessada, nos termos do artigo 32, I, da Lei de Arbitragem.
Ocorre que o Código de Processo Civil, no já citado artigo 337, X, do Código de Processo Civil, determina que a alegação de convenção de arbitragem deve ser feita antes de se discutir o mérito, vale dizer, em preliminar de contestação, regra esta que visa prestigiar o princípio da eventualidade ou concentração de defesa.
A eventualidade significa dizer que o réu deverá apresentar todas as suas defesas, de mérito ou não na sua contestação, sob pena de preclusão. Ainda que existam defesas conflitantes entre si, é a contestação o momento adequado para que o réu possa resistir à pretensão do autor com todas as suas armas.
Essa previsão não gera maiores problemas de um modo geral. O réu, por exemplo, em uma demanda de cobrança, pode dizer que não há obrigação e, se houver, que a dívida está prescrita. Não há nenhuma incompatibilidade entre as citadas defesas direta e indireta de mérito. A regra da eventualidade, contudo, torna-se desafiadora quando se está diante de alegação de convenção de arbitragem, conforme será demonstrado nas próximas linhas.
Em primeiro lugar, a existência de cláusula arbitral em determinado contrato importa dizer que as partes renunciaram à jurisdição estatal, conferindo ao (à) árbitro (a) poderes para decidir, com grau de definitividade, eventuais conflitos de interesses relacionados àquele contrato. O juiz que tem jurisdição/competência para analisar a preliminar de convenção de arbitragem, muito provavelmente, não terá jurisdição/competência para julgar o mérito da demanda.
Em segundo lugar, a despeito de tanto a arbitragem como o procedimento estatal buscarem solucionar o conflito, não há identidade procedimental quanto à fase postulatória. Isto porque, quando se está diante de demandas judiciais, o procedimento tem início com o protocolo da petição inicial, oportunidade em que a parte apresentará todas as matérias a fim de ver tutelado o seu suposto direito. O réu, por sua vez, será citado para, se quiser, defender-se dos fatos alegados pelo autor.
Na arbitragem, sobretudo nas institucionais, o primeiro ato não é a apresentação das Alegações Iniciais pelo requerente. Antes disso há, de forma geral, um caminho a ser percorrido, que vai desde o Requerimento de Instituição de Arbitragem até a assinatura do Termo de Arbitragem, em que, aí sim, as partes poderão estipular, se ainda não tiverem feito, as regras do procedimento arbitral.
Mas o fato é que quando o Código de Processo Civil determina que a alegação de convenção de arbitragem deve ser feita na contestação, está, por via indireta, impondo ao réu que adiante a sua tese de defesa a seu adversário (que deveria ser revelada somente no procedimento arbitral) e, mais do que isso, que se defenda perante órgão que, em princípio, não tem jurisdição para conhecer da matéria.
Por isso, parece-nos que o legislador não fez uma boa escolha ao determinar que o réu somente poderá alegar a existência de convenção de arbitragem como preliminar de contestação, simplesmente porque ignorou o fato que nessa situação a jurisdição não pertence ao Poder Judiciário, mas, sim, ao (à) árbitro (a).
Entendemos, assim, que a regra da eventualidade não deve ser tida como absoluta, cabendo ao juiz, de forma lícita, alterar o procedimento para, primeiro, viabilizar a discussão a respeito da convenção de arbitragem de forma separada do mérito. Essa possibilidade mostra-se alinhada com as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, bem como garante à parte que seus argumentos de defesa serão apresentados não só no momento oportuno, mas sobretudo àquele que possui jurisdição nos termos da convenção de arbitragem.
Na hipótese acima, se o fundamento for acolhido pelo juiz, o processo será extinto sem julgamento do mérito sem que o réu seja compelido a discutir suas teses de defesa perante órgão sem jurisdição. Se, porventura, o fundamento atinente à convenção de arbitragem não for acolhido, o juiz poderá, tranquilamente, abrir oportunidade para que o réu complemente a sua defesa, de preferência em prazo não superior a 15 dias.
Importante dizer que a adaptação do procedimento é, hoje, uma realidade incontestável. Exemplificativamente, temos o fato de os juízes não estarem designando a audiência de conciliação/mediação prevista no artigo 334 do Código de Processo Civil.
A experiência tem demonstrado que os juízes, em atenção ao princípio da eficiência e razoável duração do processo, têm determinado a citação do réu para contestar, em vez de prever o comparecimento à audiência daquele artigo.
Embora a escolha legislativa prevendo a audiência de conciliação/mediação antes da contestação, o procedimento comum vem sendo adaptado de forma rotineira no dia a dia forense como forma de entregar à parte que tem direito procedimento mais célere e justo.
De acordo com essa lógica, por que não possibilitar ao réu, antes de discutir o mérito, apresentar exclusivamente a alegação de convenção de arbitragem, fazendo-se um pequeno ajuste no procedimento para, em primeiro lugar, definir-se a questão relacionada à jurisdição, que, em uma linha do tempo, situa-se, logicamente, antes da discussão de mérito.
Entendemos que, inclusive, essa possibilidade estaria afinada com o princípio kompetenz-kompetenz, que tem como função primordial respeitar a vontade das partes ao estipularem a arbitragem como método adequado de resolução de disputas. Referido princípio parece-nos que não só confere ao(à) árbitro(a) o dever de se pronunciar em primeiro lugar a respeito das questões de inexistência, validade e eficácia da convenção de arbitragem, como, também, deve permitir à parte demandada judicialmente apresentar suas armas durante a arbitragem.
Como alternativa à sugestão de adaptabilidade procedimental feita de ofício pelo juiz, tem-se a possibilidade de as partes, na própria cláusula contratual que estipula a arbitragem, estabelecerem previamente que, sendo proposta medida buscando cognição exauriente perante o Poder Judiciário, o julgador estará autorizado a bifurcar o procedimento para resolver a questão atinente à convenção de arbitragem primeiro, o que vai ao encontro da regra do artigo 190 do Código de Processo Civil.
A possibilidade indicada logo acima foi bem colocada pelo Professor Luis Fernando Guerrero, durante aula ministrada na AASP -Associação dos Advogados de São Paulo[2].
Como tivemos a oportunidade de aduzir, não seria possível exaurir a discussão nessas breves linhas. No entanto, buscou-se alternativas para solucionar situação jurídica que impõe ao réu dificuldade no momento de se alegar a existência de convenção de arbitragem. Parece-nos que é um paradoxo exigir a observância à concentração de defesa, falando-se inclusive em preclusão, quando a alegação preliminar diz respeito à própria jurisdição, de modo que se pretendeu desenhar procedimento mais harmônico com a Constituição Federal e com a Lei de Arbitragem.
Bibliografia
Curso de arbitragem/Daniel Levy, Guilherme Setoguti J. Pereira, coordenadores. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.
TUCCI, José Roberto Cruz E. Questões Polêmicas do Processo Arbitral – Subsídios para o Advogado do Contencioso Arbitral. São Paulo: Quartier Latin, 2019.
Didier Jr., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015.
OLIVEIRA, Guilherme Peres De. Adaptabilidade Judicial, A modificação do Procedimento pelo Juiz no Processo Civil. Rio de Janeiro: Saraiva. 2013
[1] Confirmando a aplicação do princípio kompetenz-kompetenz: STJ, AREsp 1773848/SP, Relator Ministro Raul Araújo, julgado em 7/6/2021.
[2] Comentário realizado durante exposição no Curso AASP “Arbitragem em Três Fases: Métodos, Práticas e Técnicas, no dia 8/7/2021.