Kaline Ferreira

Leila Cuéllar

Certamente quase todos os Estados brasileiros têm pelo menos uma ação ajuizada contra a União, predominantemente perante o Supremo Tribunal Federal (STF). A União, por sua vez, possui um contencioso expressivo em relação aos Estados. Essa é uma constatação negativa e que diz muito sobre a relação estabelecida na prática entre esses entes públicos que compõem a federação brasileira.
Do latim foedus (pacto, tratado ou aliança), federação significa uma convenção entre entidades  que se obrigam reciprocamente.<a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a> Participação, cooperação e integração entre União, Estados e Municípios são valores que norteiam o federalismo nacional em nível constitucional. Esse complexo e singular sistema de inter-relações implica uma importante correlação entre o federalismo e o princípio da solidariedade, estampado no inc. III do art. 3º da Carta de 1988. Trata-se de uma forma de inter-relacionamento federativo em que se busca não somente as condições para que cada ente federado, a seu modo, concretize os direitos sociais fundamentais, mas, indo além disso, para que todas as entidades federativas alcancem esse objetivo da forma mais equânime possível.<a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a>
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A Constituição Federal prioriza o fenômeno da cooperação entre os entes federativos, conforme disposto nos arts. 23, 24, 198 e 204 e nos arts. 30, inc. VI, 17 e 182. Na prática, todavia, os Estados e a União têm estabelecido uma relação adversarial, tensa e plena de ressentimentos e desconfiança institucional, o que acarreta o distanciamento e a judicialização de conflitos.
Parece-nos na contramão do agir político coordenado entre as entidades estatais que elas negligenciem o diálogo e a comunicação para se socorrer do Poder Judiciário (heterocomposição) como forma prioritária de resolução de conflitos interfederativos.  Os conflitos  provavelmente serão solucionados judicialmente de forma insatisfatória, em face da inadequação do método escolhido pelos envolvidos.
Ora, a heterocomposição é forma de resolução de conflitos que impõe aos interessados uma solução, substituindo a vontade das partes pela vontade do Juiz (no caso da via judicial e, do árbitro, na arbitragem), restando aos envolvidos somente a obediência; diferentemente, a autocomposição empodera as partes, para que elas discutam, debatam, dialoguem e cheguem a uma solução construída por elas próprias. Como se percebe, na autocomposição há solidariedade e cooperação entre os envolvidos como essenciais na formulação de soluções e na construção de saídas para uma crise, o que concretiza os valores constitucionais do federalismo pátrio.
A distribuição de competências e receitas contidas na Constituição Federal tem uma conotação estritamente organizacional, formal, mas o interesse público/coletivo é indivisível e deve ser perseguido por todos esses entes, cuja relação deve ser solidária, cooperativa e não adversarial. Esse argumento reforça a inadequação da via judicial para solucionar os conflitos interfederativos e reafirma o valor e a eficiência da autocomposição como método preponderante para solução de tais conflitos.
Importante destacar a inserção dos métodos autocompositivos e heterocompositivos dentro da noção de acesso à justiça, tal qual prevê a Constituição brasileira.
<blockquote class="jota-article__eye">O acesso à justiça não se resume a alcançar um Tribunal imparcial que intervenha validamente nas relações para dirimir conflitos.</blockquote>
Acredita-se na Justiça como caráter próprio das atividades estatais, principalmente da atividade administrativa, em que se aplica o direito como mecanismo de proteção à Justiça, sopesando as carências e o contingenciamento direcionado a sua satisfação.
No preâmbulo da CF/88 estabeleceu-se expressamente como destinação do Estado Brasileiro assegurar a justiça como valor supremo, fundada na harmonia social, e comprometida também na ordem interna com a solução pacífica das controvérsias; o que está ratificado no art. 3º que consigna a construção de uma sociedade livre, justa e solidária como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil. Diante do que está posto na norma fundamental brasileira sobre a justiça, acreditamos que a Constituição não está assegurando apenas uma célere e imparcial atividade jurisdicional para reparar supostas lesões ou ameaças a direito, ela está se referindo a uma Justiça Valor que se encontra diretamente vinculada a toda atividade estatal, dela não podendo se apartar sob pena de perder o caráter democrático e de submissão ao direito.
O valor da justiça é considerado como fundamento da ordem jurídica, não se resumindo ao alcance e acesso ao Poder Judiciário, uma vez que esse valor pode ser realizado por diversas outras vias. Conforme ensina JJ Calmon de Passos, o justo está diretamente ligado à interferência de condutas e a carências insatisfeitas, cuja causa é sempre a ação de outro homem. Por isso não existe indagações em torno do tema Justiça quando não existe um conflito a ser dirimido ou uma frustração a ser sanada. A grande celeuma em torno do assunto gravitava apenas sobre a dúvida a respeito de quem ganharia e de quem perderia e em que extensão isso se daria.<a href="#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a> Atualmente temos uma outra perspectiva, a possibilidade de estudar os riscos, estabelecer o peso das forças e das fraquezas de cada envolvido e gerar uma opção de solução onde as perdas são reduzidas ao máximo possível e os ganhos otimizados – essa é a lógica da autocomposição.
Ainda sobre a Justiça, ensina Jean Dabin, relembrando a classificação adotada por São Tomás de Aquino e Aristóteles, quando a relação se dá entre entes públicos ocorre a justiça distributiva no que tange ao que é devido por cada um desses entes. Demonstra-se que, sob a perspectiva estatal,  assegurar a Justiça é, sobretudo, garantir a prestação de uma atividade estatal capaz de distribuir o mais equitativamente possível os ativos sociais, que são escassos e não apresentam proporção equilibrada em relação às carências humanas. Essa tarefa de distribuição equitativa dos ativos sociais é própria do Estado-Administração, que deverá promover a Justiça social ao fazer suas escolhas políticas, todas elas norteadas pelos critérios constitucionais.<a href="#_edn4" name="_ednref4">[iv]</a>
Essas considerações sobre Justiça nos remetem à própria justificativa da existência de um Estado. O fim do Estado, segundo Carlos Cassagne, é a realização da Justiça, virtude superior que universalmente não variou muito das concepções emprestadas por Ulpiano e Aristóteles: “El hábito según el cual uno, con constante y perpetua voluntad, da a cada cual su derecho.” Expressão que o autor considera a salvo de críticas, uma vez que abarca não só uma dimensão privatística e individualista, mas também o que é devido à sociedade e aos indivíduos como parte de uma coletividade.<a href="#_edn5" name="_ednref5">[v]</a>
Essa noção de Justiça ratifica o que se defende até aqui sobre a possibilidade de ela ser promovida preponderantemente pelos entes públicos, principais sujeitos gerenciadores das diminuições de desigualdades e injustiças sociais.
Diante disso, considera-se até inconstitucional que os entes federados se socorram do Poder Judiciário antes de tentar coordenar e ajustar suas ações de forma consensual e dialógica, uma vez que seus interesses não podem ser contrapostos em sua dimensão material, mas tão somente na sua dimensão formal e organizacional.
Não se trata de um impedimento de acesso à via judicial. Propõe-se uma reflexão quanto a fazer valer o princípio federalista fundado no princípio da solidariedade. Urge que os entes federados tentem resolver seus conflitos prioritariamente sem intervenção de um terceiro em processo adversarial heterocompositivo. Essa saída não nos parece ser uma opção para os entes federados. A tentativa de resolver conflitos por si e de forma colaborativa se afigura como um imperativo constitucional.
A autocomposição que está sendo desenvolvida em todos os Estados da federação, e que já é uma política institucional estruturada há algum tempo na Administração Pública Federal, facilita ainda mais a concretização dessa realidade para os conflitos interfederativos. A assimilação do valor do consenso pelos entes envolvidos e incorporação das técnicas autocompositivas e da cultura não adversarial são fatores de estímulo para a observância desse método para uma área de conflito tão sensível politicamente.
A elevação do diálogo na resolução de conflitos interfederativos traz benefícios múltiplos, tais como: melhoria da relação entre os entes federados; construção de políticas cooperativas como solução para várias crises; desobstrução das vias judicias; celeridade na resolução dos conflitos; reflexão sobre o modelo federalista, sobre formas de avanço e seu aperfeiçoamento; reconhecimento das desigualdades e situações interinas e próprias de cada ente federado.
Tecemos considerações capazes de provocar uma inversão de prioridades no momento da eleição do método mais adequado na resolução de conflitos que envolvem entes federados. Não lhes falta capacidade técnica para realizar essa tarefa, não lhes falta base jurídica, e há imperativo constitucional que clama por essa escolha política – priorizar a autocomposição na resolução de conflitos interfederativos.
O Supremo Tribunal Federal, no intuito de preservar os valores de cooperação e solidariedade entre os entes federados, têm encaminhado conflitos envolvendo entes federativos que lhe são apresentados para a tentativa de resolução consensual. A CCAF – Câmara de Conciliação da Administração Federal tem sido destinatária habitual desses processos pelos Ministros-Relatores.
O Poder Judiciário, portanto, já reconhece a realidade de consensualidade e de autocomposição; os Estados federados podem ser conduzidos estrategicamente a eleger a autocomposição prioritariamente e deixar de provocar o Poder Judiciário em conflitos dessa natureza, no que poderão ser influenciados pelas suas estruturas autocompositivas. A União deverá fortalecer suas ações institucionais em favor da autocomposição, para se consagrar protagonista desse modelo em toda a federação.
A autocomposição, não temos dúvida, é a mais adequada forma de resolução de conflitos estabelecidos entre entes federados capazes de se autodeterminar política, técnica e juridicamente.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> PROUDHON, Pierre-Joseph. Do princípio federativo. Trad. Francisco Trindade. São Paulo: Imaginário, 2001.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> COSTA, Luis Alberto. Da Autonomia à Participação: Breves Reflexões Sobre o Federalismo Brasileiro na Perspectivado Constitucionalismo Social-Dirigente. Revista da Faculdade Mineira de Direito - PUC Minas <a href="about:blank">v. 16 n. 31 (2013). </a>
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> PASSOS, JJ Calmon de. Direito, Poder, Justiça e Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 60/61
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[iv]</a> DABIN, Jean. Os grandes filósofos do Direito.Teoria Geral do Direito. Org. Clarence Morris, São Paulo:Martins Fontes, 2002. p. 498/499
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[v]</a> CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho Administrativo. Tomo I, 8. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2006. 56/57.

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JOTA

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