Pedro Gordilho

Nada de vestigios notáveis do Império Romano do Ocidente. Mas de vestigios da Pré-História da humanidade. É este o grandioso cenário que o Périgord Noir apresenta. A região conservou maravilhosamente os traços de uma ocupação humana sem interrupção de quatrocentos e cinqüenta mil anos. Oferece um testemunho excepcional das primeiras expressões artísticas de nossos antepassados nos abrigos e grutas que se localizam no Vale do Rio Vézère. E, também, no Vale do Rio Dordogne.
O nome Périgord Noir (negro) se deve ao aspecto sombrio de suas florestas de carvalho. Em torno do Vale e das majestosas falésias se acham concentrados lugares que fazem a reputação da região.
Descendo em direção ao Vale do Rio Dordogne, chega-se ao pé da Bastide de Domme. A cidade está lá desde o longínquo 1281, ano em que o rei da França a construiu para defender seu domínio contra as pretensões do rei da Inglaterra. O panorama que se abre sobre o rio Dordogne é inexprimível.
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Outra descoberta excepcional sobre o Vale é o passeio nos jardins suspensos de Marqueyssac. A menos que se prefira um passeio de gabarre (uma espécie de saveiro), que parte da cidadezinha de La Roque-Gageac, cidade com construções tradicionais colocadas contra a falésia e que integra o clube altamente selecionado das mais belas cidades de França. Uma mesma pedra loura veste todas as casas de La Roque-Gageac, que são esculpidas na falésia. No coração da cidade, de costa para a falésia, uma residência da região que não se visita mas capta os olhares: foi o berço da família de Jean Tarde (século XVI), astrônomo de talento e amigo de Galileu.
Mais uns quilômetros e se descobre um lugar único na França: dois majestosos castelos medievais se põem face a face e se desafiam, cheios de lembranças da Guerra dos Cem Anos. Na margem direita, o castelo de Beynac, dominando um pico de setenta metros de altura. Na margem esquerda, o castelo de Castelnaud, reconstruído no século XV, abrigando um apaixonante museu da guerra na Idade Média.
A região contempla um outro castelo de espírito menos guerreiro, o castelo dos Milandes, de estilo renascença mas restaurado no século XIX e sobretudo conhecido por ter pertencido à grande cantora Josephine Baker. Uma surpresa tocante: o percurso no castelo é feito ao som de músicas cantadas pela sua antiga proprietária, e na alcova ouvia-se em sua voz tão típica, cantada em português, nada mais nada menos do que Na Baixa dos Sapateiros, a obra prima de Ary Barroso.
O verdadeiro filho do Pays de Bergerac é Michel de Montaigne, autor de uma obra monumental que exprime a tolerância, a sabedoria, a compreensão e um amor lúcido diante do próximo. Seu pensamento pode ser resumido numa frase brilhante de sua autoria: “Chaque homme porte en soi la forme entiére de son humaine condition” (“Cada homem traz em si a forma total de sua condição humana”).
Em Saint-Michel-de-Montaigne, a famosa “tour de Montaigne” justifica um tipo de pelegrinagem. Foi lá que o escritor escreveu seus Ensaios, manifestando espírito de humanismo e tolerância.
Aprecia-se, particularmente, a biblioteca, contendo paredes ornamentadas com cinqüenta e sete citações em grego e latim escolhidas pelo próprio Montaigne.
Visitar Domme é entrar numa cidade marcada pela sua História e sua arquitetura. É também descobrir uma pequena cidade de exceção, onde cada um pode se deliciar com os seus produtos gastronômicos, com trabalhos dos artesãos e artistas e, ainda, com o acolhimento caloroso de toda uma população.
Voltando ao passado remoto. Situada perto de Brantôme, a gruta de Villars apresenta um interesse duplo: a geologia e a Pré-História. É possível se surpreender com todos os tipos de concreções (que é o efeito de agregação dos sólidos contidos nos líquidos). Também as mais impressionantes modulações de calcitas, as mais finas e belas estalactites, costuras translúcidas e inumeráveis estalagmites. As pinturas pré-históricas datam de 18 mil anos. Embora ligeiramente recobertas de calcita permitem que se aprecie a arte dos antepassados. A cena O bisão e o feiticeiro é uma das raras representações humanas da arte pré-histórica.
O mesmo nas grutas do Roc de Cazelle em Eyzies, que é a capital mundial da Pré-História. Cazelle é um dos lugares mais impressionantes desse rico patrimônio do remoto passado. Suas falésias são inteiramente escavadas por grutas, refúgios e subterrâneos. Ocupada desde sempre, o conjunto foi primeiramente habitado durante a Pré-História, depois transformado em fortaleza na Idade Média e, finalmente, reutilizado e transformada, no começo do século XX, em residências privadas.
Mas é a gruta de Lascaux que produz o êxtase. A gruta de Lascaux é a Capela Sixtina da Pré-História, um dos lugares mais bem decorados do mundo, uma obra de arte completa. Muito frágil, a gruta original não é mais acessível. Foi necessário que se fizesse uma cópia, de excelente qualidade.
O estilo é inconfundível. Os animais de Lascaux têm um aspecto reconhecível: os cavalos de ventre adiposo e a cabeça reduzida e o cervo com sua concepção fantástica. Mas o critério mais importante eleito pelos artistas daquela obra gigantescas, sem dúvida, é o movimento, a animação nos gestos desses animais, que parecem ter prazer ao divertir o visitante. Um dos desenhos constantes da gruta, um cavalo ocre situado no fundo do divertículo axial, parece cair nas entranhas da terra.
Existe através da França um grande número de cidadezinhas encantadores, algumas famosas, outras desconhecidas, normalmente afastadas das grandes auto-estradas ou das principais ligações. Nessas cidades é certo que se vai encontrar uma acolhida de qualidade, um patrimônio atraente, rico e procedente, uma identidade, uma tradição gastronômica, um artesanato diversificado, uma feira popular, ou uma efeméride local.
São cidades que herdaram uma arte de viver autÊntica segundo a maneira própria de cada uma delas. Visitando-as, justifica-se o certificado que explica porque a França é composta por tantos Pays, unidades que, fazendo parte do todo, guardam cuidadosamente o seu passado, facilitando ao viajante interessado o conhecimento de sua verdadeira identidade.
<h3>OS VINHOS DA REGIÃO</h3>
A vinha de Bergerac – uma grande parte é feita da cépage sauvignon – cobre cerca de treze mil hectares. A região mais festejada está acima do Vale do Rio Dordogne, e se reparte em várias zonas que produzem diferentes crus: os Bergerac e Côtes de Bergerac, o Monbazillac, o Montravel e os Côtes de Montravel, o excelente Pécharmant, o Saussignac e o Rosette. Quanto aos brancos secos ressaltam-se os Montravels, cujo terroir, berço de Montaigne, está situado próximo à região de St-Émillion, do lado direito da região do Rio Dordogne. E os Bergeracs. Aromados, aveludados, frutados, eles acompanham perfeitamente frutos do mar e peixes. Montravel e Bergerac são ambos resultantes de uma associação de cépages sauvignon (essencialmente), sémillon e muscadelle.
O vinho branco licoroso por excelência é o Monbazillac, ocupando um lugar à parte. Dourado, perfumado, serve-se como aperitivo ou com o foie gras, carnes brancas, peixes com molho e sobremesas. Quanto aos tintos, os Bergeracs, frutados, que se consomem jovens (apenas dois ou três anos depois da colheita).
O Pêcharmant é um excelente vinho que não adquire todas as suas qualidades senão depois de um longo envelhecimento. Acompanha, idealmente, uma caça com molho ou carré de boeuf, mas, também, um foie gras.
Já a vinha da região de Cahors produz um vinho “negro”, tânico, amplo e generoso no paladar. A classificação em AOC foi atribuída em 1971. Um vinho mais velho (pelo menos um decênio), com aromas mais sutis e refinados, estará muito bem servido com carnes vermelhas com cèpes, truffes, caças e queijos.
<h1>Referências bibliográficas</h1>
SARLAT &amp; LE PÉRIGORD NOIR, 2007, L’art de vivre ça se cultive, Les Offices de Tourisme du Périgord Noir.
SARLAT &amp; LE PÉRIGORD NOIR, 2007, Hôtels, Restaurants et Fermes Auberges, Les Offices de Tourisme du Périgord Noir.
Le Journal du Périgord, Revue Mensuelle n. 149, juin 2007, 12 rue Fournier – Lacharmie, 24000 Périguent.
Route des Métiers d’Art en Périgord, ed. 2006 Dordogne / Périgord.
Périgord Decouvert, Guide Gratuit 2006, Conception / Réalisation, Asbury.
Les Plus Beaux Détours de France, 2007, Michelin.
Amaury Temporal, Bom Tempo na França, p. 137 e segs.
Guia Visual Folha de São Paulo, França, Périgord, Quercy e Gasconha, p. 419.
Périgord Quercy Dordogne Lot, Le Guide Vert, Michelin.
Périgord Berry Limousin Quercy, Guide de Tourisme, Michelin, 14ª ed.

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JOTA

Cidades que herdaram uma arte de viver autêntica segundo a maneira própria de cada uma delas

O Périgord Noir e o Vale do Rio Dordogne

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