
O candidato tem muitos bens? Ele se enriqueceu durante o tempo em que é político? São perguntas que se repetem a cada eleição. Assim que os partidos registram seus candidatos, jornalistas, ativistas e adversários analisam as informações patrimoniais tornadas públicas. Esses dados, antes disponíveis apenas no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), estão agora organizados pela plataforma Siga o Dinheiro, projeto da Base dos Dados em parceria com o JOTA para trazer mais transparência e acessibilidade à prestação de contas das eleições.
Nas eleições 2022, porém, esse padrão de transparência do processo eleitoral brasileiro foi temporariamente alterado por decisão do TSE. O tribunal inicialmente entendeu, por decisão administrativa, que era necessária a restrição de parte das informações sobre os bens dos candidatos como forma de sustentar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A decisão, inclusive, incidiu retroativamente sobre os dados de candidaturas em eleições anteriores.
No dia 18 de agosto, a maioria dos ministros deu nova orientação ao TSE e decidiu autorizar a divulgação dos dados patrimoniais mais detalhados dos candidatos. Houve ainda um pequeno e razoável ajuste em relação ao padrão anterior de divulgação de dados pessoais e patrimoniais de candidatos. As declarações de bens continuam disponíveis na plataforma DivulgaCand, mas agora são suprimidos parte do endereço, como número do imóvel, além de dados sem relevância para o interesse público, como telefone e email pessoais.
A correção de rumos do TSE foi importante por duas razões. Primeiro por reforçar um entendimento em favor da transparência, e que parece ser o mais correto sobre a aplicação da LGPD, justamente quando autoridades públicas vêm adotando interpretações equivocadas segundo as quais a lei autorizaria a imposição do sigilo máximo de 100 anos para informações essencialmente públicas, pelo simples fato de que contêm dados pessoais.
Por erro de interpretação ou má-fé interessada, a LGPD vem sendo instrumentalizada para bloquear o acesso à informação sempre que há suposto conflito entre divulgação de dados pessoais e obrigatoriedade de transparência de atos que contenham tais dados pessoais. No mais das vezes, são falsas colisões de direitos. A própria Lei de Acesso à Informação não deixa nenhuma dúvida de que “o tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas” mas, ainda assim, permite sua divulgação se houver previsão legal – como é o caso da lei eleitoral específica no caso da divulgação patrimonial. Mesmo em casos nos quais haja dúvida sobre a existência de previsão legal que autorize o acesso à dados pessoais, a lei dispensa o consentimento individual e afasta a possibilidade de sigilo sempre que “as informações forem necessárias à proteção do interesse público e geral preponderante”.
Além de contribuir com a consolidação de interpretações da LGPD pró-transparência pública e da possível influência em outros casos que aguardam julgamentos em diferentes tribunais, a decisão do TSE reconhece a informação sobre patrimônio pessoal como elemento biográfico necessário para a boa formação de posicionamento político e escolha de candidatos nas eleições. Assim como para muitos o gênero, a idade, a cor da pele, a escolaridade são elementos decisivos na escolha do voto, para tantos outros o patrimônio – e, portanto, a condição socioeconômica – é crucial para entender valores e possíveis prioridades de quem busca se eleger.
Mas a informação patrimonial permite mais do que a composição do perfil do candidato. Declarações de bens são importantes instrumentos no combate à corrupção e na promoção da transparência. São mecanismos para combater dois fenômenos diversos, porém relacionados: 1) enriquecimento ilícito – capturam informações sobre bens de maneira a monitorar mudanças no patrimônio, além de apresentar indícios prematuros de comportamentos irregulares, assistindo na prevenção, detecção, investigação e processamento de atos de corrupção e correlatos; 2) conflitos de interesse – capturam informações sobre fontes de renda, ações e interesses financeiros, além de auxiliar na identificação de situações que apresentam maior risco de conflitos de interesse, aparentes ou reais.
A divulgação da declaração de bens de candidatos apenas no ano da disputa eleitoral é insuficiente para atingir aos propósitos de transparência e alerta de enriquecimento ilícito de representantes eleitos, mas permite estabelecer um panorama evolutivo, ao menos em relação àqueles que voltaram a se candidatar e, portanto, apresentaram novas declaração de bens. É, afinal, um instrumento válido de controle social que permite que a sociedade faça perguntas pertinentes e receba respostas de quem postula cargo eletivo.
Por exemplo, uma pesquisa mostrou que dentre os deputados federais eleitos em 2006 e 2010, de 11% a 14% tiveram evolução patrimonial maior que o acúmulo de 100% da remuneração pela função de legislador. Ainda que cause surpresa, podemos concluir pouco sobre se houve enriquecimento ilícito. Além do salário, os parlamentares podem ter outras fontes legais de rendimento e, por isso, seria precipitado afirmar que são fontes de renda ilícitas. Mas, afinal, quais são essas atividades econômicas paralelas ao mandato? Há conflitos de interesse entre elas e o dia a dia parlamentar?
O acesso a tais dados impõe ao candidato não uma obrigação jurídica, mas um dever democrático de esclarecimento de contexto que levanta suspeitas. Para aceitar como legítimo o incremento patrimonial, é fundamental trazer a público a origem dos recursos que provocaram a elevação de patrimônio em desconformidade com a remuneração pela função pública. A dúvida que paira sobre a trajetória dos patrimônios de detentores de mandatos eletivos é prejudicial à democracia. Coloca em questão suas atividades, seus interesses e suas prioridades. Põe em risco a confiança pública nos seus governantes e, principalmente, nas instituições públicas.
Tome-se como exemplo as revelações sobre acúmulo patrimonial da família Bolsonaro. Muita atenção foi dada ao fato suspeito de que 51 imóveis da família foram quitados total ou parcialmente por meio de dinheiro vivo. Há, também, a necessidade de devida investigação sobre eventual enriquecimento ilícito pelo acúmulo de 107 imóveis, mesmo que parte deles tenha sido quitada por meios tradicionais e idôneos.
Declarações de bens são instrumentos relevantes para a identificação de sinais de corrupção e para o controle de conflitos de interesse. Felizmente não houve retrocesso nesse instrumento de transparência eleitoral, como se viu em outras áreas. Mas o nível de transparência disponível atualmente, apesar de possibilitar questionamentos necessários, é insuficiente para detectar enriquecimento ilícito e conflitos de interesse. É necessário adequar a declaração de bens dos eleitos para que seja feita em períodos mais frequentes, com mais informações sobre bens relevantes, e a criação de incentivos para o correto preenchimento da declaração no momento da candidatura.