coronavírus

Como o Brasil politizou a pandemia?

A esquerda e o centro preocupam-se muito com a Covid-19 — já a direita, nem tanto

Panelaço contra o presidente Jair Bolsonaro na Avenida Paulista, São Paulo | Foto: Roberto Parizotti

Desde a confirmação do primeiro caso da Covid-19 no Brasil, em 26 de março, as declarações públicas de Bolsonaro seguiram uma crescente. A propagação do vírus foi chamada por ele de “fantasia”, de “gripezinha” e de “resfriadinho”, e não foram poucas as vezes nas quais suas atitudes foram de encontro às recomendações do seu Ministro da Saúde, Henrique Mandetta, para combater a pandemia.

Os números são alarmantes. Enquanto as mortes contam-se aos milhares na Europa e nos Estados Unidos, em cerca de 30 dias chegamos à casa dos 100 óbitos no Brasil. Especialistas projetam cenários catastróficos: sem ação governamental rápida e intensa, poderemos ter mais de 1 milhão de mortes ao longo da pandemia.

Para o Presidente, entretanto, esses alertas seriam exageros da mídia. E ele não está sozinho ao defender isso. Parte considerável de quem se identifica como de direita também acredita que a mídia exagera acerca dos perigos do novo coronavírus.

Isso é o que mostra os dados da quarta rodada da pesquisa nacional que realizamos na Quaest para entender a conjuntura política do Brasil. Com uma amostra de 1000 entrevistas realizadas por painel digital entre 19 e 23 de março, perguntamos aos brasileiros o que pensam sobre Bolsonaro e sobre a Covid-19. Importante considerar que  os dados coletados foram pós-estratificados para corrigir eventuais distorções na representação dos diversos grupos demográficos que compõem o país.

O cenário revelado pela nossa pesquisa é de aguda polarização política. Enquanto apenas 10% dos eleitores que se consideram de esquerda aprovam a gestão Bolsonaro, a proporção é de 69% para os eleitores que se classificam de direita. Para 71% da esquerda, o Brasil está piorando, e só 5% acha que o país está melhorando. Para 44% da direita, o país está melhorando.

Em certa medida, a polarização de opiniões quando o assunto é política é algo considerado normal – e até mesmo benéfica para a saúde da democracia. Em países nos quais partidos organizam e apresentam propostas ideologicamente distintas, o eleitorado tem melhores condições de distingui-las na hora de votar. Mais ainda, há alguma evidência de que, na dose certa, a polarização ajuda partidos a se enraizarem no eleitorado, promovendo estabilidade ao jogo democrático no longo prazo.

Ocorre que a polarização no Brasil de hoje vai um passo além. Conforme detectamos, eleitores de ideologias diferentes têm opiniões distintas até mesmo sobre a crise do novo coronavírus, uma questão de saúde pública. Politizamos a doença, algo que pode ter consequências graves.

Quando questionada se a mídia está exagerando acerca dos efeitos do vírus, a maioria da população pensa que não. Quando analisamos esse resultado por ideologia, no entanto, o cenário mostra nuances importantes: 34% dos entrevistados de direita acham que sim, a mídia exagera a crise do coronavírus; no centro e na esquerda, apenas 13% têm a mesma visão. Em outras palavras, 1 em cada 3 brasileiros de direita acham que a mídia amplia os riscos da Covid-19.

As diferenças persistem em relação a outras opiniões e atitudes. Em particular, pessoas de direita são 52% mais propensas a achar que o surto do novo coronavírus é pouco ou nada grave; e 21% são mais propensas a estarem pouco ou nada preocupadas que alguém próximo contraia o vírus. Esses resultados, estimados com modelos de avaliação de impacto, não são explicados pelas diferenças demográficas dos entrevistados.

Uma variável relevante para entender as diferentes percepções sobre a Covid-19 é a forma como se consome notícias. Entre os brasileiros que se informam preferencialmente por meio de redes sociais, como Facebook, Twitter e WhatsApp – proporção que é de 13% na direita, contra 5% e 3% na esquerda e centro, respectivamente –, 55% acreditam que a mídia exagera os efeitos do corona. Apenas 16% de quem tem a TV como fonte principal de informações pensa da mesma forma.

Os nexos entre direita, rejeição à mídia tradicional e avaliação positiva de Jair Bolsonaro já são conhecidos, a novidade é que agora aparecem relacionados a posições reticentes em relação ao novo coronavírus. Ao politizar a pandemia, Bolsonaro estimulou a população a agir na contramão das políticas de enfrentamento da própria Organização Mundial da Saúde. Por outro lado, boa parte da direita já estava propensa a fazer isso em meados de março, especialmente ao rejeitar a imprensa tradicional e ao confiar em notícias difundidas pelas redes sociais, terreno por onde circulam fake news como a do borracheiro com obituário falso.

Uma das consequências da polarização do debate sobre a Covid-19 é a dificuldade de se alterar as visões de quem, movido pelo debate político, acredita que a pandemia não será grave. Ideologias são construções arraigadas, dificilmente alteráveis no curto prazo. Isso obviamente cria uma enorme dificuldade para as autoridades, que precisam convencer a população a permanecer em casa para evitar uma explosão de novos casos e evitar que o sistema de saúde seja sobrecarregado.

Como saímos dessa? Uma alternativa seria o Presidente voltar atrás e pedir para que seus apoiadores na direita levem mais a sério a pandemia, seguindo a prática de outros líderes mundiais. Nos Estados Unidos, depois que Donald Trump fez exatamente isso, parte dos eleitores republicanos alterou sua visão sobre a pandemia, despolarizando o debate sobre a Covid-19. Como é bem documentado na Ciência Política, lideranças ideológicas podem exercer esse papel, influenciando as crenças da população. No nosso caso, a maior dificuldade talvez não seja mudar a opinião do eleitorado de Bolsonaro, mas fazê-lo mudar de ideia em relação à pandemia.