Pandemia

O médico que ‘atua no SUS’ é sempre o funcionário público para efeitos penais?

Uma reflexão necessária em tempos de COVID-19

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INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico-penal brasileiro conta com inúmeros crimes que exigem do autor a qualidade de funcionário público (delitos especiais) e que, em razão desta qualidade, apresentam assimetria punitiva (i. é., punem com severidade desproporcional em comparação com condutas objetivamente idênticas, mas praticadas por pessoas que não detêm tal qualidade)[1]. Isso torna altamente problemático o movimento de expansão jurisprudencial do conceito penal de “funcionário público” no contexto brasileiro, a demandar da doutrina esforços na redução de arbítrios na interpretação do art. 327 do CP.

Diante da pluralidade de problemas, este trabalho se concentrará no exame do seguinte ponto: o médico que atende pelo SUS deve ser considerado funcionário público para fins penais, nos termos do art. 327 do CP? A discussão não é nova. Sabe-se que o Supremo Tribunal Federal fixou o entendimento de que (i) o médico particular diretamente credenciado ao SUS deve ser considerado funcionário público à luz da expressão “função pública” do art. 327, caput, CP[2] e de que (ii) o médico que trabalha em hospital credenciado ao SUS somente deve ser assim qualificado após a Lei 9.983/00, que transformou o parágrafo único do 327 do CP em § 1º e ampliou a categoria do funcionário público por equiparação[3].

Porém, quatro razões fundamentam a retomada do debate. Primeira: a solução encontrada pelo STF não é consistente. Segunda: ao longo dos anos, houve aumento exponencial do recurso a Organizações Sociais da Saúde (OSS) no âmbito do SUS. Terceira: tramita projeto de novo Código Penal (PLS 236/2012) que altera o conceito penal de funcionário público. Quarta e última razão: o protagonismo do SUS na coordenação das ações públicas e privadas de enfrentamento ao COVID-19 trará[4], do ponto de vista penal, novos desafios no âmbito da já desaquecida discussão sobre a condição de funcionário público para efeitos penais do “médico que atende pelo SUS”.

Expressão de uso comum na jurisprudência, ela engloba, todavia, grupos de profissionais com vínculos muito distintos com o poder público, a saber: (i) há médicos que atendem pelo SUS por possuírem um vínculo direto com o Poder Público, o que pode se dar em duas hipóteses: (hipótese A) quando este é empregado de um hospital público e (hipótese B) quando o médico particular está direta e pessoalmente credenciado ao SUS; (ii) médicos que atendem pelo SUS por possuírem um vínculo indireto com o Poder Público (vínculo intermediado por uma pessoa jurídica externa ao Estado), o que pode se dar em outras duas hipóteses: (hipótese C) quando este trabalha em um hospital privado que, por sua vez, está conveniado ao SUS ou (hipótese D) quando a administração de um hospital público é delegada a uma OS da Saúde que, por sua vez, contrata médicos diretamente e sem concurso público, os quais passam a atender no respectivo hospital pelo SUS.

1. VÍNCULOS DIRETOS ENTRE O MÉDICO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (ART. 327, CAPUT, CP)

Sempre que se pretender examinar a qualidade de funcionário público de um médico que possui um vínculo direto com a Administração Pública Direta ou Indireta, deve-se recorrer ao caput do art. 327 do Código Penal, por ser esta a interpretação mais conforme à Constituição de 1988 (especialmente à luz de seus artigos 37, caput, e inc. I[5]).

Já o §1º do art. 327 do CP deve ser reservado ao exame de situação em que há apenas um vínculo indireto entre o médico e a Administração Pública. Tal separação em nada é nova: a leitura e interpretação do acórdão do RHC 90.523 do STF e das decisões subsequentes no âmbito dos Tribunais Superiores permitem inferir que estes também se valem da distinção entre vínculos diretos e indiretos do médico com o Poder Público (SUS) e lhes conferem enquadramentos autônomos no âmbito do art. 327 do CP.

1.1 HIPÓTESE A: O MÉDICO EMPREGADO EM HOSPITAL PÚBLICO COM ATENDIMENTO PELO SUS

Nesta hipótese, o vínculo entre o médico e a administração pública dependerá da forma jurídica eleita pelo poder público para descentralizar o serviço de saúde. É possível que o hospital público seja um hospital-escola e, como tal, mero órgão de uma universidade pública; que seja uma autarquia ou ainda, excepcionalmente, que seja uma empresa pública ou sociedade de economia mista.

Portanto, o vínculo direto do médico com tais hospitais se dará pelo preenchimento de um cargo público (vínculo estatutário de direito público) ou pelo preenchimento de um emprego público (vínculo celetista de direito privado), estando assim , a priori, enquadrado no caput do art. 327 do Código Penal, pois integra formalmente o aparelho estatal.

Porém, o enquadramento exige ainda a análise da natureza da atividade desenvolvida pelo órgão e o regime jurídico incidente sobre ela[6]. Em se tratando de serviço público de saúde – organizado na figura do SUS –, o regime é de direito público[7], marca própria das atividades típicas da administração pública, confirmando a condição de funcionário público.

1.2 HIPÓTESE B: O MÉDICO PESSOAL E DIRETAMENTE CREDENCIADO AO SUS

Nesta hipótese, o vínculo do médico não pode ser qualificado como próprio de um cargo ou de um emprego público, pois é mero prestador de serviço contratado pelo Poder Público (vínculo de direito privado não empregatício), que recebe por procedimento realizado, e, como tal, se mantém externo ao aparelho estatal. Segundo a interpretação do Supremo Tribunal Federal, o médico nesta situação também seria qualificado como funcionário público por exercer uma “função pública” (art. 327, caput, CP). Todavia, a resposta ao problema pressupõe, logicamente, que se defina o conteúdo da expressão “função pública”.

Os Tribunais, no âmbito penal, costumam interpretá-la de forma amplíssima, sob o argumento de que o legislador quis conferir a máxima tutela à administração pública[8]. Porém, tanto o argumento quanto a sua consequência – o vasto sentido conferido ao termo – estão equivocados. Não há elementos para presumir que o legislador assim pretendeu e, ainda que houvesse, a vontade do legislador não é um argumento de peso para fins de interpretação de uma lei penal.

Ao contrário, no âmbito penal, em essência restritivo de direitos fundamentais de liberdade, a interpretação deve obedecer aos limites semânticos do termo (sentido máximo da palavra), de modo a evitar quaisquer riscos de analogias incriminadoras. Ademais, no caso da expressão “função pública”, o legislador optou por um termo “emprestado” de outros ramos do direito – o administrativo e o constitucional – e não conferiu a ele definição própria, razão pela qual se deve empregá-lo no seu sentido tradicional e não inaugurar um novo sentido.

Partindo desta premissa, é necessário buscar o sentido do termo nos ramos de origem, sendo sua melhor compreensão alcançada a partir de dois raciocínios. Primeiro: a categoria função pública, no caput do art. 327 do CP, é residual relativamente às de cargo e emprego público e somente precisa ser acionada quando não for possível o enquadramento do sujeito nos termos anteriores. Segundo: função pública é categoria cujo sentido é mais bem alcançado a partir da sua contraposição à categoria serviço público, pois são as duas atividades típicas da administração pública, ambas submetidas a um regime de direito público[9].

Enquanto a noção de função pública se aproxima da ideia de um conjunto de competências públicas, isto é, de poderes com forte marca estatal, capazes de criar, modificar e de extinguir direitos dos cidadãos, a ideia de serviço público se aproxima da noção de prestações materiais destinadas à melhoria da qualidade de vida do cidadão[10], sendo muito rarefeita a noção de poder estatal.

Diante disso, o termo “função pública” constante do caput do art. 327 deve ser interpretado como um vínculo residual de direito público entre o Estado e uma pessoa física externa a ele, mediante o qual são delegados poderes públicos, ou seja, competências acompanhadas de coercitividade tipicamente estatal. Esta definição foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do Direito Administrativo (caso dos “serviços notariais e de registro”), ao definir a noção de delegatário de função pública, distinguindo-a – com rigor – da noção de delegatário de serviço público[11]. É esse conceito de função pública que, na esteira dos acima mencionados limites da interpretação, deve ter prevalência sobre as demais.

Dito isso, o médico particular diretamente credenciado ao SUS não é delegatário de função pública, mas de serviço público, pois a ele não são conferidos os ditos poderes públicos, mas apenas as competências materiais necessárias à prestação do serviço público à comunidade, razão pela qual seu enquadramento no termo “função pública” é, no mínimo, altamente questionável. Ao que parece, o Poder Judiciário vem tentando enquadrar esta hipótese, com malabarismos interpretativos, nas três expressões disponíveis no caput do art. 327 do CP, quando o correto seria admitir a sua insuficiência, aceitar as lacunas de punibilidade e convocar o legislador a reorganizar o conceito à luz das dificuldades enfrentadas nos Tribunais, tal qual nos mostra a experiência dos ordenamentos penais alemão e italiano[12].

Portanto, para um correto e seguro enquadramento, seria necessário de lege ferenda agregar ao caput do art. 327 uma expressão similar à seguinte: considera-se funcionário público para os efeitos penais quem, sem exercer cargo, emprego ou função pública, está pessoalmente encarregado de prestar serviço público.

2. VÍNCULOS INDIRETOS ENTRE O MÉDICO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (ART. 327, § 1º, CP)

As situações fáticas deste grupo compreendem os “vínculos indiretos”, isto é, as relações entre médico e Administração Pública que são intermediadas por uma pessoa jurídica externa ao aparelho estatal que, esta sim, possui algum vínculo direto com Estado. Nesses casos, como já defendido, deve-se recorrer ao conceito de funcionário público por equiparação, reservado àquelas pessoas físicas que não possuem vínculos diretos com o poder públicos (§ 1º do art. 327 do CP).

2.1 HIPÓTESE C: O MÉDICO QUE ATUA EM HOSPITAL PRIVADO CONVENIADO AO SUS

Conforme esclarecido acima, partir-se-á da premissa de que o STF definiu que o médico que trabalha em hospital privado conveniado ao SUS somente pode ser considerado funcionário público por equiparação após a Lei 9.983/00, quando da inclusão da expressão “quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública” ao § 1º do 327 do CP. No entanto, um enquadramento da hipótese C, ora examinada, neste dispositivo parece inviável. Explica-se.

Há duas expressões centrais para a interpretação do parágrafo 1º: “empresa” e “atividade típica da Administração Pública”. Com relação à última delas, a dificuldade de sua interpretação provém do fato de que, originalmente, no PL 933/99 (que deu origem à Lei 9.983/00), a mudança pretendida na redação do art. 327 era bem mais modesta, pois a expressão então constante era “atividade típica da previdência social”. A redação original explicava-se pelo próprio contexto do PL 933/99, que tipificou condutas contra a Previdência Social (art. 168-A, 312-A, 337-A). Contudo, uma das emendas ao Projeto alterou a expressão para “atividade típica da administração pública”, texto esse que acabou aprovado destituído de contexto[13].

Goste-se ou não, é com a expressão “atividades típicas da administração pública” que se precisa trabalhar. Defende-se, assim, que seu sentido se liga às duas facetas da atividade estatal: a função pública e o serviço público. São elas as atividades típicas da administração pública, desde que prestadas sob um regime de direito público. Aplicando tal ideia sobre o serviço de saúde prestado pelo hospital particular conveniado ao SUS, pode-se argumentar que se trata, sim, de atividade típica da administração pública, ainda que em cooperação com privados.

Contudo, essa primeira conclusão não basta para resolver a hipótese C, pois seu enquadramento na segunda parte do § 1º do 327 do CP demanda também o exame do termo “empresa”. Ao se verificar que a legislação penal não deu a este termo sentido próprio ou específico, o intérprete deve ater-se ao sentido técnico consagrado no direito empresarial, que em regra se aproxima da ideia de “atividade econômica organizada, para a produção ou circulação de bens e de serviços”[14]. Portanto, é necessário que seja uma entidade organizada em uma forma empresária e que exerça uma atividade econômica (indissociável à ideia de lucro), daí porque não pode estar organizada sob a forma de pessoa jurídica sem fins lucrativos ou filantrópica.

Dito isto, somente será possível afirmar que o médico na hipótese C enquadra-se no conceito de funcionário público por equiparação se o hospital privado para o qual trabalha e que é conveniado ao SUS adotar alguma forma empresária, exercendo atividade econômica com fins lucrativos. Considerando que a maior parte dos hospitais privados no Brasil não adota a forma empresária, nem possui fins lucrativos, sendo entidades filantrópicas, até por preferencia constitucional para fins de convênio ao SUS (art. 199, CF), não há como justificar – sem o recurso à analogia – o seu enquadramento nos termos “empresa” conveniada para o exercício de “atividade típica da administração pública” (§ 1º, art. 327, CP).

A escolha do legislador na dicção do art. 327 do CP gerou um fenômeno de infra-inclusão de situações concretas no suporte fático da norma jurídica, pois a palavra empresa é demasiadamente específica para o fenômeno que, aparentemente, pretendeu regular. Logo, a regra jurídica da segunda parte do § 1º do art. 327 do CP está aquém da finalidade de tutela pretendida, o que explica, mas em nada justifica, o insistente recurso a analogias pelos tribunais para fins de expansão jurisprudencial do conceito penal de funcionário público. Como já referido, mais honesto seria aceitar as lacunas de punibilidade e, assim, convocar o legislador a reorganizar o conceito, utilizando termos que englobam pessoas jurídicas sem fins lucrativos.

2.2 HIPÓTESE D: O MÉDICO CONTRATADO POR OS, QUE ADMINISTRAM HOSPITAL PÚBLICO COM ATENDIMENTO PELO SUS

A última e mais controversa situação diz respeito ao médico contratado por Organização Social da Saúde que é, por sua vez, gestora da “bata branca” (isto é, dos serviços com contato direto com pacientes) de um hospital público que oferece atendimento pelo SUS. Neste caso, o médico é empregado ou prestador de serviço da OS, não do hospital público.

Para verificar se o médico nesta situação é considerado funcionário público para fins penais, é preciso, em primeiro lugar, qualificar a OS que contratou o médico e que administra o hospital à luz do art. 327 do CP. De saída, há de se excluir qualquer possibilidade de enquadrar tais entidades na segunda parte do § 1º do art. 327 do CP, pois esta trata de “empresa” e a ausência de finalidade de lucro é justamente um dos elementos constitutivos das OS, por expressa determinação legal[15].

Restando a primeira parte do §1º do art. 327 do CP (“Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal”), a subsunção depende do sentido conferido à expressão “entidade paraestatal” que, apesar de ser historicamente controvertido, pode ter dois sentidos possíveis: (i) sentido genético ou originário e (ii) sentido atual ou evolutivo.

O sentido genético ou originário do termo “paraestatal” era muito próximo à noção de “administração pública indireta” (autarquias, sociedade de economia mista, empresa pública etc.), embora já englobasse as então novas figuras do “Sistema S” (SESI, SENAI etc.)[16], e tinha como contexto principal a discussão sobre a desnecessidade das empresas públicas e sociedades de economia mista, enquanto paraestatais, de realizarem licitação[17].

A Constituição Federal de 1988 representou mudança radical na estrutura da Administração Pública e o termo “paraestatal” ganhou um sentido atual na doutrina administrativa, que o utiliza para designar as atividades do terceiro setor, isto é, aquelas pessoas jurídicas sem fins lucrativos externas à Administração Pública Direta ou Indireta, mas que com ela podem colaborar e dela podem receber recursos públicos para o desempenho de atividades de interesse público[18]. Assim, parece insustentável prosseguir utilizando o sentido originário do termo paraestatal.

Não se pode ignorar que o §1º do art. 84 da Lei n. 8.666/93 oferece um conceito legal para o termo muito próximo ao mencionado “sentido originário”[19]. Porém, a sua adoção não é capaz de refutar a conclusão de que se deve utilizar o conceito atual, pois as duas finalidades da Lei 8.666/93 ao utilizar um tal sentido para o termo paraestatal – (a) reforçar que tais entes da Administração Indireta estão, sim, submetidos às regras de licitações e (b) positivar um conceito de sujeito ativo de crimes licitatórios próximo ao conceito do Código Penal – permitem concluir que, na realidade, tal lei, apesar de ser pós CF de 1988, vale-se de um termo com um sentido pré-constitucional.

Evidente que, em se tratando de regras restritivas de direitos fundamentais (incriminadoras), o uso do argumento evolutivo na interpretação jurídica precisa ser feito com enorme parcimônia, pois pode significar uma nova, inesperada e expandida criminalização, ainda que sem mudança no texto da lei.

O problema é que a nova ordem constitucional parece, de fato, ter esvaziado o sentido anterior do termo paraestatal, o que exige a atualização do seu significado para abarcar as entidades do Terceiro Setor, sobretudo o “Sistema S”, as Organizações Sociais e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, tal qual fez o STF no julgamento do caso “Instituto Candango de Solidariedade”. Neste caso paradigma, o STF definiu que uma Organização Social seria, sim, ente paraestatal, com sua consequente subsunção na primeira parte do § 1º do art. 327 do CP.[20].

No entanto, a atualização do termo paraestatal para compreender as OS não conduz automaticamente à conclusão de que o médico por elas contratado que atende pelo SUS deve ser considerado funcionário público. Isso porque a decisão do STF no “caso Candango” foi proferida no contexto de uma acusação de peculato, na medida em que tal OS teria supostamente desviado verbas provenientes de contratos de gestão com o governo do Distrito Federal.

Logo, se pode deduzir que não é a condição de atuar em paraestatal em si que torna alguém funcionário público para efeitos penais, mas algo mais[21]. E é justamente esse “algo mais” que ainda precisa ser devidamente elucidado pelo Poder Judiciário. Seria (i) o manejo e a gestão de verbas com origem pública ou seria (ii) o exercício de alguma espécie de poder de natureza pública? Fato é que o médico nas circunstâncias da hipótese D não cumpre, em princípio, nenhum desses elementos, pois é apenas alguém encarregado de serviço público.

3. O CONCEITO PENAL DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO PROPOSTO NO PLS 236/2012 E O ENQUADRAMENTO DO MÉDICO QUE ATENDE PELO SUS

Diante das dificuldades de qualificação, à luz da atual redação do art. 327 do CP, das hipóteses acima elencadas (sobretudo as situações B, C e D), importante verificar se a nova redação para o conceito penal de funcionário público apresentada pelo PLS 236/2012 (Projeto de Novo Código Penal) viria a superá-las. Após emendas, o PLS define funcionário público para fins penais da seguinte forma:

Art. 292. Considera-se servidor público quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego, função pública ou mandato eletivo.

1º Equipara-se a servidor público quem exerce cargo, emprego ou função em autarquia, empresa pública e sociedade de economia mista e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada, conveniada ou por qualquer outro meio responsável pela execução de atividade típica da administração pública ou dos poderes legislativo e judiciário.

2º Equipara-se também a servidor público o responsável de organização da sociedade civil ou não-governamental, no manejo de recursos públicos.

3º O conceito de servidor público aplica-se tanto ao sujeito ativo quanto ao sujeito passivo dos crimes.

A proposta de nova redação não resolve os principais problemas enfrentados pelos tribunais no tocante às hipóteses B, C, e D deste trabalho. Em primeiro lugar, o caput segue ignorando a situação daquele que, sem exercer função pública, está pessoalmente encarregado de realizar um serviço público (problema de enquadramento da hipótese B).

Em segundo lugar, a expressão “paraestatal” é apenas substituída por termos que remetem ao seu sentido genético, o que torna a primeira parte do §1º supérflua, abarcando situações já qualificadas no caput. Em terceiro lugar, a nova redação mantém exclusivamente a palavra empresa para mencionar a situação de contrato ou convênio com o Poder Público para realização de atividade típica da Administração Pública, não solucionando o problema da hipótese C.

Em quarto lugar, a proposta explicita que o “responsável de organização da sociedade civil ou não-governamental”, no manejo de recursos públicos, seria funcionário público por equiparação (§2º, art. 292, PLS 236/12, Substitutivo), o que excluiria o médico na hipótese D do conceito, pois a regra parece conferir a qualidade apenas aos “responsáveis” pelas referidas entidades e na hipótese de manejo de recursos públicos. Certeza, todavia, não há, pois o termo “responsáveis” é vago e ambíguo.

Por fim, em quinto lugar, a proposta perde uma excelente oportunidade de contribuir para uma maior segurança jurídica no tocante às hipóteses de equiparação, suprindo a evidente incapacidade do atual conceito de funcionário público de orientar condutas, de modo a possibilitar que as pessoas afetadas possam prever a intensidade de sua potencial responsabilização penal.

Considerações finais

Ante o exposto, conclui-se: (i) na hipótese A, é seguro o reconhecimento do médico como funcionário público à luz do art. 327 do CP; (ii) nas hipóteses B e C, a subsunção dos fatos ao art. 327 do CP exige o recurso à analogia incriminadora, gerando inválida expansão do conceito penal de funcionário público pela via jurisprudencial; (iii) na hipótese D, a subsunção dos fatos ao art. 327 do CP depende do sentido atribuído ao termo paraestatal e da sua conjugação a critérios materiais ainda parcamente definidos pelos tribunais, pairando forte incerteza jurídica; (iv) é preciso esclarecer os pontos obscuros da discussão, sob pena de metaforicamente a intensidade dos riscos da responsabilização penal de tais profissionais ser por eles mais desconhecidos do que a intensidade dos riscos no enfrentamento à pandemia.

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[1] A título de exemplo, compare-se as penas do art. 168 e 312 do Código Penal.

[2] STF, RHC 90.523, 2ª Turma, Rel. Ministro Ayres Britto, por maioria, public. no DJe em 19/10/2011. No mesmo sentido, mas no âmbito do STJ, AgRg no AREsp 694.293/RS, Rel. Ministro Néfi Cordeiro, 6ª Turma, public. no em DJe 25/10/2016.

[3] STF, HC 83.330-8, 1ª Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio Mello, public. no DJ em 30/04/2004; STF, HC 87.227, 2ª Turma, Rel. Ministra Ellen Gracie, public. no DJ em 20/04/2006; STF, HC 97710, 2ª Turma, Relator Min. Eros Grau, public. no DJe em 30/04/2010 e STF, ED no HC 97710, 1ª Turma, Rel. Ministro Barroso, public. no DJe em 23/10/2013.

[4] São muitos os sujeitos que ora atuam a serviço do SUS, inclusive com vínculos emergenciais e temporários, bem como não são poucas as requisições de bens e até de serviços de pessoas naturais ou jurídicas já feitas pelo Poder Público para enfrentar a atual crise de saúde. Inclusive, a requisição integral de bens e serviços de pessoas privadas já é objeto de ação no STF por ocasião da pandemia, a saber, na ADPF 671.

[5] No contexto da atual ordem constitucional, quando se fala em cargo, emprego ou função pública, fala-se em Administração Direta e Indireta (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 250 ss). Em sentido contrário, ou seja, considerando que vínculos com a administração pública indireta devem ser enquadrados na primeira parte do §1º do art. 327, CP, cf. GALVÃO, Fernando. Direito Penal. Crimes contra a Administração Pública. Belo Horizonte: D’Plácido, 2015, p. 29 ss; RASSI, João Daniel. Administração Pública na acepção orgânica e o conceito penal de funcionário público – Contributo ao estudo do artigo 327 do Código Penal brasileiro. In: CRESPO, Marcelo Xavier de Freitas. Crimes contra a administração pública: aspectos polêmicos. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 20 ss.

[6] Ver SCALCON, Raquel. O conceito penal de funcionário público no direito brasileiro e alemão: uma proposta de interpretação restritiva do termo emprego público em empresas estatais (artigo 327, caput, do CP). In: Revista de Estudos Criminais, São Paulo, n. 72, 2019, p. 120 ss) e RASSI, João Daniel. Administração Pública na acepção orgânica e o conceito penal de funcionário público, op. cit., p. 24.

[7] Sobre o regime jurídico-administrativo ou de direito público, ver. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, op. cit., p. 69 ss e JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, op. cit., p. 56 ss.

[8] Tal ideia foi reafirmada recentemente pelo STF no HC 125086 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, public. no DJe em 27/11/2018, p. 3.

[9] Em similar sentido, referem Pagliaro e Costa Júnior que “existem serviços públicos que não são funções públicas” (PAGLIARO, Antonio; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Dos crimes contra a administração pública, op. cit., 1997, p. 23). A doutrina administrativista alemã diferencia a administração de intervenção da administração de prestação (Eingriffs- und Leistungverwaltung), ou seja, poder estatal versus serviço público (EHLERS, Dirk; PÜNDER, Hermann (Org.). Allgemeines Verwaltungsrecht. 15. ed. Berlim: De Gruyter, 2016. p. 39 ss). A mesma distinção aparece na doutrina italiana em MANES, Vittorio. Servizi Pubblici e Diritto Penale. L’impatto delle liberalizzazioni sullo statuto penale della pubblica amministrazione. Torino: G. Giappichelli Editore, 2010, p. 16 ss e SESSA, Antonino. Infedeltà e Oggetto della tutela nei reati contro la pubblica amministrazione. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2006, p. 102 ss.

[10] Sobre o conceito de poderes públicos/estatais, ver SESSA, Antonino. Infedeltà e Oggetto della tutela nei reati contro la pubblica amministrazione, op. cit., p. 106, nota 95). No direito brasileiro, Bandeira de Mello refere que a legitimidade passiva em mandado de segurança (autoridade coatora) é sintoma de exercício de poderes públicos e, por isso, de função pública (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, op. cit., p. 245).

[11] STF, ADI 2415, Plenário, Rel. Ministro Ayres Britto, por maioria, public. no DJe em 22/09/2011, às fls. 4-6 do Voto.

[12] O Código Penal alemão (StGB), por exemplo, percebeu a diferença entre exercer função pública e estar encarregado de/designado a prestar um serviço público e criou uma cláusula residual no § 11 Abs. 1 Nr. 2 Buchst. c StGB. Também o Código Penal italiano diferencia aquele que exerce função pública (pubblica funzione – art. 357) daquele que está encarregado de um serviço público (persona incaricata di un pubblico servizio – art. 358).

[13] Regressando-se ao PL 933/99, que resultou na Lei 9.983/00, verifica-se que a mudança pretendida na redação do art. 327 era bem mais modesta, pois a expressão então constante era “atividade típica da previdência social”. A redação original explicava-se pelo próprio contexto do PL 933/99, que tipificou condutas contra a Previdência Social (art. 168-A, 312-A, 337-A). Contudo, uma das emendas ao Projeto alterou a expressão para “atividade típica da administração pública”.

[14] WARDE JÚNIOR, Walfrido Jorge. Teoria geral da empresa. 2. ed. São Paulo: RT, 2018, p. 144 e COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 25. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 34 ss.

[15] Ver art. 1º da Lei 9.637/98 (Lei das OS).

[16] Ilustrativamente, ver RE 35242, Rel. Min. Luiz Gallotti, 1ª Turma, public. no DJ em 29/05/1958; HC 44729, Rel.  Min. Aliomar Baleeiro, 2ª Turma, public. no DJ 20/12/1967 e CJ 3498, Rel.  Min. Adaucto Cardoso, 2ª Turma, public. no DJ 13/09/1968. Tal compreensão perdurou por um tempo no STF, mesmo no contexto da nova ordem constitucional, conforme se observa no RE 159228, Rel.  Min. Celso de Mello, 1ª Turma, public. no DJ 27/10/1994.

[17] Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. A licitação nas entidades paraestatais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 132, p. 32-40, jan./jun. 1978, p. 35 ss.; MEIRELLES, Hely Lopes. Autarquias e entidades paraestatais. In: SUNDFELD, Carlos Ari; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Org.). Doutrinas essenciais do direito administrativo. Administração Pública indireta e regulação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 159 ss. Texto publicado originalmente em 1962.

[18] Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 1058 ss. e DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Das entidades paraestatais e das entidades de colaboração. In: MODESTO, Paulo (Coord.). Nova organização administrativa brasileira: estudos sobre a proposta da Comissão de Especialistas constituída pelo Governo Federal para reforma da organização administrativa brasileira. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 227 ss.

[19] Art. 84, §1º. “Equipara-se a servidor púbico, para os fins desta Lei, quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, assim consideradas, além das fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, as demais entidades sob controle, direto ou indireto, do Poder Público”.

[20] Destacam-se as seguintes decisões do STF no “caso Candango”: HC 131672 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, 1ª Turma, public. no DJe em 16/10/2018 e STF, HC 125086 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, public. no DJe em 27/11/2018. Ver ainda, no âmbito do STJ, o paradigmático AgRg no HC 447.053/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, public. no DJe em 01/06/2018.

[21] Sob o ponto, ver SCALCON, Raquel Lima. Entidades do terceiro setor e o crime de peculato. Reflexões à luz do caso “Candango” (Brasil) e do caso “Regina Pacis” (Itália). JOTA, 28. ago. 2019 (Disponível em <https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/entidades-do-terceiro-setor-e-o-crime-de-peculato-28082019>).