Felipe da Costa De-Lorenzi

Marcelo Buttelli Ramos

“Podemos ter bom direito e mau direito. E no mau direito, nem todo, só uma ínfima parte, é que é inconstitucional.” José de Faria Costa<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
<h3 style="text-align: left;">1) O ensejo para a retomada da discussão</h3>
O instituto da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/colaboracao-premiada">colaboração premiada</a> desempenha um importante papel no sistema de Justiça Criminal brasileiro. Sua operacionalização, contudo, é objeto de grandes controvérsias. O mais atual capítulo dessa história envolve a discussão sobre a legitimidade e a autonomia dos delegados de polícia para celebrarem acordos de colaboração premiada, retomada pela notícia, amplamente veiculada, de que Mauro Cid, ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro realizou acordo de colaboração premiada com a Polícia Federal, tendo sido a avença homologada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). A Procuradoria-Geral da República (PGR) teria se manifestado contrariamente ao acordo, o que, ao que tudo indica, não obstou a sua homologação.
A <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm">Lei 12.850/2013</a> estabelece, no art. 4º, § 6º, que a negociação da colaboração premiada “ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.” O § 4º do art. 4º autoriza o delegado de polícia a, em sede de inquérito policial e com a manifestação do Ministério Público, tendo em vista a relevância da colaboração, representar ao juiz pela concessão de perdão judicial. Referências à atuação do delegado no acordo também constam nos incisos II e IV do art. 6º, que tratam de formalidades do termo de colaboração. Apesar de a lei claramente autorizar o delegado a negociar os termos da colaboração, reservando ao MP a prerrogativa de se manifestar a esse respeito, a matéria tem sido objeto de debate.
A controvérsia remonta ao ano de 2018, oportunidade em que o STF enfrentou o mérito da ADI 5.508 e, por maioria de votos, considerou constitucionais as previsões legais que autorizam delegados de polícia a realizarem acordos de colaboração premiada no curso do inquérito policial. A corte fora instada pela PGR a esclarecer se tal faculdade violava o ordenamento constitucional, que pretendia que fosse atribuída interpretação conforme a Constituição aos §§ 2º e 6º do art. 4º da Lei 12.850/2013, para que se reconhecesse a obrigatoriedade da intervenção do MP em todas as fases de negociação do acordo, bem como a força vinculante de seus pronunciamentos.
Argumentou-se que a autorização conferida aos delegados, além de extrapolar as balizas constitucionais que definem as funções da polícia judiciária, imporia restrições indevidas sobre o exercício da ação penal pública pelo MP. Subjaz à argumentação da PGR a tese de que os controvertidos dispositivos legais representariam ingerências indevidas sobre o poder privativo do MP em promover a ação penal pública.
No julgamento em plenário, sagrou-se vencedora a posição do relator da ADI, ministro Marco Aurélio, no sentido de que a propositura de acordos de colaboração premiada por delegados, em sede de inquérito policial, se insere no escopo do poder-dever que a Constituição lhes confere para conduzir investigações criminais. Já naquela ocasião foram veiculadas ponderações acerca da necessidade de condicionamento do juízo de homologação do acordo à verificação prévia da concordância do MP.
Essa posição foi revisitada e endossada pelo plenário do STF em 2021, quando do julgamento do AgR na Pet 8.482, interposto pela PGR. Neste novo caso, também por maioria de votos, a corte estabeleceu que a anuência do MP representaria, nos limites daquele caso concreto,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> condição de eficácia do acordo de colaboração negociado diretamente com a autoridade policial.
A leitura dos votos proferidos naquela assentada, a despeito da bem-posta ressalva de que a solução aplicada ao caso não teria o condão de derrogar a orientação erga omnes estabelecida no julgamento da ADI 5.508, coloca duas importantes questões: A alegada vinculatividade dos posicionamentos do MP nos acordos de colaboração negociados por iniciativa da polícia judiciária poderia ser caracterizada como consequência necessária do modelo acusatório de processo penal? Pode-se enfrentar a questão sem referência à intenção do legislador (no sentido da occasio legis<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>) na conformação dessa medida de política criminal?
<h3>2) Norma inconstitucional ou norma ruim?</h3>
Parece-nos que os argumentos apresentados contra a legitimidade do delegado para a celebração de acordos ou em favor da necessidade de anuência do MP possuem natureza político-criminal, ou seja, tentam demonstrar qual deve ser a melhor conformação do Direito positivo. No entanto, a opinião de quem quer que seja sobre qual seria a melhor regulação jurídica da colaboração premiada não é capaz de infirmar as normas estatuídas pelos legisladores, desde que constitucionais. Nesse sentido, a disciplina legal atual só poderia ser considerada inválida em caso de contrariedade à Constituição; qualquer outro argumento que não o da inconstitucionalidade será útil apenas de lege ferenda, a fim de influenciar o processo legislativo visando à alteração do Direito positivado.
Em razão dos limites deste texto, nos debruçaremos sobre aquela que parece ser a principal razão, do ponto de vista normativo, para a defesa da impossibilidade de o delegado negociar autonomamente um acordo de colaboração premiada: a suposta violação da titularidade exclusiva da ação penal pública pelo MP, insculpida no art. 129, I, da Constituição. Esse entendimento parte, essencialmente, de dois argumentos: primeiro, que a Constituição, ao conceder ao MP poder privativo para acusar, também lhe assegurou poder privativo para dispor do poder punitivo por meio dos acordos penais; segundo, que as condições pactuadas no acordo de colaboração envolvem exclusivamente prerrogativas do Parquet.
O primeiro argumento equipara erroneamente o ius puniendi ao ius persequendi.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> O poder de punir decorre da soberania estatal e se efetiva por meio de atos de distintos entes estatais (Congresso Nacional, MP, polícias, Poder Judiciário etc.). Por ser o Direito Penal um ramo que tutela bens de elevado valor para a comunidade e por sua aplicação, em um Estado democrático de Direito, pressupor a existência de um processo penal devido, em que o julgamento é realizado por órgão jurisdicional imparcial, instituiu-se, historicamente, um ente estatal específico responsável pela acusação, providência que objetivou assegurar o interesse público tutelado pelas normas penais e diferenciar os papéis de acusador e julgador.
É nesse contexto que se insere o poder conferido ao MP pelo art. 129, I, da Constituição: trata-se do poder de acusar privativamente em ações penais públicas. Esse ius persequendi não pressupõe e nem equivale a um poder de dispor com exclusividade sobre o poder punitivo; este não é atribuído ao MP e nem poderia, já que é efetivado em diferentes níveis, por diversos órgãos estatais.
Os institutos de justiça penal negociada permitem que se disponha sobre o ius puniendi, com possibilidade de alteração, nos estritos limites legais, do conteúdo do Direito Penal e do Direito Processual Penal.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> No entanto, não há nenhuma vinculação necessária entre o poder de acusar e o de dispor sobre o conteúdo e a forma da punição, de modo que nada obsta que os legisladores outorguem essa faculdade a outros que órgãos estatais.
É justamente o que ocorre com a colaboração premiada, em que o poder de negociar o acordo é atribuído também ao delegado de polícia. Como a Constituição não traz qualquer disposição explícita sobre a legitimidade para realizar acordos em matéria penal,<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> a regulação da matéria se dá pela via infraconstitucional. Assim, na colaboração premiada, a fonte normativa do poder de negociar conferido ao delegado é exatamente a mesma do poder de negociar do MP: a Lei 12.850/2013.
Quanto ao segundo argumento, ele só será correto em relação às cláusulas que versam sobre matérias sobre as quais o MP claramente possui prerrogativa para decidir. Esse não é o caso na maior parte das questões que podem ser objeto de uma negociação em sede de colaboração premiada. Veja-se, p. ex., que o MP não tem a prerrogativa de decidir sobre a concessão de perdão judicial, a redução ou a substituição da pena privativa de liberdade, a concessão de medidas protetivas, entre outras questões. Todas essas matérias estão submetidas à reserva de jurisdição, cabendo ao Poder Judiciário decidir a respeito delas.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> Desse modo, a possibilidade de o delegado negociar acordo de colaboração premiada não viola, per se, nenhuma atribuição constitucional exclusiva do MP. O delegado está impedido de negociar autonomamente apenas nos casos em que se pretender a suspensão do prazo para oferecimento de denúncia ou a concessão do benefício de não oferecimento de denúncia (art. 4º, §§ 3º e 4º da Lei 12.850/2013), hipóteses que certamente avançam sobre os poderes conferidos privativamente ao MP pela Constituição.
Observamos, ainda, que o que a Lei 12.850/2013 exige é “manifestação” do MP no caso de acordo entabulado pelo delegado de polícia, o que significa que o órgão deve opinar a respeito do acordo. Essa opinião, contudo, não condiciona a validade (ou eficácia) do acordo.
Assim, sob a ótica da constitucionalidade, não nos parece haver qualquer vedação à legitimidade do delegado, nem mesmo exigência de concordância do MP. Isso não significa que a outorga desse poder à autoridade policial seja uma boa decisão político-criminal, mas apenas que ela é uma escolha legitimamente realizada pelo Congresso Nacional.
Os subscritores deste texto, inclusive, acreditam que, de fato, melhor seria que o delegado de polícia não pudesse negociar, ao menos sem a supervisão do MP, os termos do acordo de colaboração premiada. Isso porque, sendo o MP o ente responsável por levar o caso penal a juízo, lhe caberia decidir acerca das melhores estratégias de persecução, o que também traria maior segurança jurídica ao colaborador, que pode se ver desamparado se durante o processo ocorrerem manifestações do Parquet contrárias ao seu acordo. Essas opiniões, no entanto, representam considerações de natureza político-criminal sobre o que entendemos ser a melhor conformação do Direito positivo. Nossos entendimentos, contudo, não podem se sobrepor à decisão dos legisladores democraticamente eleitos.
<h3>3) O respeito às decisões do Poder Legislativo</h3>
Um risco implícito em se pretender atribuir efeitos superlativos ao quanto decidido no AgR na Pet. 8482/DF consiste em se assentir com a realização de um perigoso by-pass em uma medida de política criminal que, embora passível de crítica, foi democraticamente aprovada pelo Congresso Nacional.
Analisando o processo legislativo que culminou na promulgação da Lei 12.850/2013, vemos que a redação original do PLS 150/2006 não tratou do tema dos legitimados para a propositura do acordo de colaboração premiada. O ponto apenas começou a ser desenvolvido no curso do processo de revisão da proposição pela Câmara dos Deputados, após a apresentação de projeto substitutivo pelo relator da matéria na Comissão de Constituição Justiça e Cidadania (CCJC).
A primeira redação do substitutivo já antecipou o texto que hoje estampa o § 6º do art. 4º da Lei 12.850/2013. O mesmo não se pode ser dito em relação à redação do § 2º do art. 4º, já que a representação policial pela concessão do perdão judicial foi originalmente atrelada à “concordância” do MP;<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> essa condicionante, no entanto, não sobreviveu ao processo legislativo, já que a versão ulterior (e aprovada) do mesmo substitutivo foi apresentada com uma importante alteração: o termo “concordância” deu lugar à expressão “manifestação”.
Em razão do consenso formado em torno do texto, a proposição foi aprovada em votação simbólica pelo plenário da Câmara dos Deputados. Devolvida a matéria à Casa Iniciadora, foi apresentado novo parecer pela CCJC que versou apenas sobre os pontos modificados pela Câmara. Ao exaltar o consenso alcançado pelo Congresso Nacional, o relator da matéria encaminhou voto pela aprovação do substitutivo da Câmara, com apenas uma emenda de redação, estranha à matéria em discussão.
O texto final apresentado pelo relator também foi aprovado por meio de votação simbólica pelo plenário do Senado, sendo destacada e elogiada, durante os discursos proferidos na respectiva sessão, a participação do MP, da PF e do Poder Judiciário na construção do texto. Ato contínuo, a proposição foi sancionada, sem vetos, pela Presidência da República.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
<h3>4) Apontamento final</h3>
Não obstante nossa opinião sobre a questão de fundo, causa também certo espanto a oscilação da jurisprudência do STF, em um intervalo de poucos anos, a respeito de uma matéria tão sensível e já apreciada, inclusive, em sede de ADI. Resulta desse intrincado cenário uma insustentável incerteza. É preciso que haja clareza sobre a posição da corte a respeito do tema. Decidir-se distintamente a cada caso, relativizando-se, inclusive, posições firmadas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, vulnera o primado da segurança jurídica, pois torna incerta e instável a interpretação sobre o conteúdo das normas jurídicas, impedindo, ademais, que os cidadãos prevejam as consequências de seus atos.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Entrevista publicada em: <a href="https://eco.sapo.pt/entrevista/no-mau-direito-so-uma-infima-parte-e-que-e-inconstitucional/">https://eco.sapo.pt/entrevista/no-mau-direito-so-uma-infima-parte-e-que-e-inconstitucional/</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A ressalva é extraída do voto do relator, ministro Edson Fachin: “[a]inda que despido de eficácia erga omnes, o feito ora em escrutínio veicula matéria (...) apta a suscitar, somente nos limites do caso concreto, revisita à tese vencida, ainda que ali em controle concentrado de constitucionalidade, por imperativo de coerência.”.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A respeito, NASCIMENTO, R. S. O argumento da intenção do legislador: anotações teóricas sobre uso e significado. Revista de Informação Legislativa, v. 58, n. 232, p. 167-193, out./dez. 2021, p. 188.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Essa confusão pode ser identificada no voto do ministro Edson Fachin, no AgR na Pet 8482: “[P]ara presentar isoladamente o Estado na celebração do negócio jurídico, teria o Delegado de Polícia de dispor de direito que se associa ao exercício, integral ou parcial, da pretensão punitiva que, como visto, na hipótese de ação penal pública, é titularizada pelo Ministério Público.” Para crítica profunda a essa equiparação, ver HILLEN, G. O controle judicial de validade do acordo de colaboração premiada. Dissertação (Mestrado em Direito Penal Econômico). FGV/SP. São Paulo, 2023, p. 85 e ss., a quem seguimos na sequência.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Sobre o respeito à legalidade em acordos penais, ver: DE-LORENZI, F. C. Justiça penal negociada e fundamentos do direito penal. São Paulo: Marcial Pons, 2020, p. 156 e ss.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> A única disposição sobre justiça penal negociada na Constituição é o art. 98, I, que indica a possibilidade de “transação” nos juizados especiais, em relação a infrações penais de menor potencial ofensivo.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Esse foi um dos argumentos do ministro Marco Aurélio em seu voto na ADI 5.508: “A norma legal prevê, em bom português, que, na prolação da sentença, serão estipulados os benefícios. Não se confunde essa definição, que só cabe a órgão julgador, com a propositura ou não da ação penal. No campo, é soberano o Ministério Público. Mas, quanto ao julgamento e à observância do que se contém na legislação em termos de vantagens, surge o Primado do Judiciário.”
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Íntegra do texto disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1027084&amp;filename=PRL+1+CCJC+%3D%3E+PL+6578/2009
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Sobre a importância de investigar as razões que impulsionam o processo legislativo em matéria penal, cf. RAMOS, M. B. Política legislativa penal no Brasil: fundamentos e limites juspolíticos para a criminalização de condutas. São Paulo: Marcial Pons (no prelo).

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JOTA

Entre exame de constitucionalidade e opção político-criminal

O caso Mauro Cid e a legitimidade do delegado para negociar colaboração premiada

Assim, na colaboração premiada, a fonte normativa do poder de negociar conferido ao delegado é exatamente a mesma do poder de negociar do MP