Beatriz Corrêa Camargo

Joachim Renzikowski

Dois casos de assédio sexual tomaram a mídia brasileira nos últimos meses, ambos em contexto institucional. O primeiro deles se refere às denúncias de assédio sexual por colegas de trabalho contra o diretor Marcius Melhem, na Rede Globo<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
O segundo trata do processo disciplinar instaurado contra o deputado estadual Fernando Cury, que foi filmado passando a mão na lateral direita do corpo da deputada Isa Penna em Plenário, enquanto a abraçava, de surpresa, pelas costas<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Se comprovadas verdadeiras as acusações, o caso de assédio denunciado na Assembleia Legislativa de São Paulo pode dar ensejo à punição pelo crime de importunação sexual, tipificado no art. 215-A do CP<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Já o caso da Rede Globo poderia vir a configurar, em tese, o crime de assédio sexual previsto no art. 216-A do CP, além do já mencionado crime do art. 215-A do CP<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A criminalização dessas formas de assédio sexual são exemplos da recente expansão pela qual tem passado o Direito Penal Sexual nos últimos anos. Além de controvérsias quanto ao seu conteúdo, essa expansão também gera uma série de desafios dogmáticos para a atividade do legislador, do intérprete e do aplicador da lei penal<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Sem adentrarmos em qualquer julgamento quanto ao mérito dos casos mencionados ou das pessoas envolvidas, gostaríamos apenas de analisar, brevemente, dois tipos de argumento que costumam ser invocados a favor da defesa em casos de assédio sexual.
São eles o argumento de que o ato praticado não tinha “conotação sexual” e o argumento de que o agente não teve “intenção de assediar” a vítima, muitas vezes se alegando que os atos não passaram de ações de menor importância, gestos de amizade ou simples brincadeira.
Note-se que tanto a proibição do “constrangimento” alheio no intuito de obter “vantagem ou favorecimento sexual” (art. 216-A) quanto a vedação da prática de “ato libidinoso”, “sem a anuência” da outra pessoa (art. 215-A) pressupõem a falta de consentimento da vítima como elemento central para configurar os crimes em questão.
Trata-se de uma mudança de paradigma importante no Direito Penal Sexual, que sai de um conceito de agressão baseado na violência e na coerção para uma proteção pautada no direito da vítima de dizer “não” aos atos sexuais que se desejam praticar com ela.
Além de reformas legislativas pontuais no Brasil, essa mudança de paradigma estruturou na Alemanha a última grande reforma dos crimes sexuais no ano de 2016, a qual teve avanços positivos, a despeito das inúmeras críticas que possam ser feitas ao legislador alemão<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Sob a perspectiva do interesse protegido pela lei, o argumento sobre a relevância da intenção de se assediar ou não a vítima se resolve a partir da própria estruturação da norma: há o crime de importunação ou assédio sexual quando é desrespeitado o direito da vítima de decidir sobre o seu envolvimento em atos de natureza sexual com outra pessoa.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, o ato de constranger ou submeter a vítima a um ato de natureza sexual sem o seu consentimento configura assédio e/ou importunação sexual independentemente da motivação particular pela qual o autor realize tal conduta.</blockquote>
Desta forma, cai por terra, igualmente, uma interpretação bastante difundida na Alemanha, segundo a qual o assédio dependeria de um elemento subjetivo presente não na pessoa do assediador, mas na pessoa da vítima.
De acordo com esse entendimento, o crime de importunação sexual estaria configurado na hipótese em que a vítima se sinta “sexualmente” molestada pela a conduta praticada com ela<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Um crime sexual não pode depender nem da maneira como se “sente” o autor do crime, nem do modo como se “sentiu” a vítima, pois o que está em jogo não é a proteção contra um sentimento ou mesmo a proteção de um sentimento, mas, sim, a proteção de um direito – o direito de autodeterminação sexual<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. E o escopo de um direito subjetivo é – como sempre – determinado de modo "objetivo", isto é, pelo ordenamento jurídico.
Ocorre que para a caracterização de tais delitos, como se percebe, o consentimento da outra parte apenas é exigido quando a própria conduta possa ser considerada como tendo uma natureza sexual.
Assim, a discussão que precisa ser feita diz respeito a saber quais critérios podem ser invocados a fim de delimitar a conotação sexual de determinada conduta, para fins de aplicação da lei penal. No Brasil, o conceito de ato sexual ou libidinoso é relativamente pouco explorado.
Na Alemanha, até mesmo por uma questão legislativa<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, a doutrina se debruça atualmente sobre quais seriam os critérios para uma definição adequada. Houve, nos últimos anos, uma mudança de percepção sobre o conceito de ato libidinoso.
A doutrina alemã saiu de uma antiga concepção puramente subjetiva de ato libidinoso, baseada sobretudo na motivação do agente<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> em direção a concepções ancoradas em critérios objetivos da ação<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>, ainda que não exclusivamente<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>.
Foi uma conquista do movimento feminista esclarecer que as agressões sexuais nem sempre estão relacionadas (exclusivamente) com a libido dos agressores, sendo, muitas vezes, uma maneira de expressar dominação e impor humilhações às suas vítimas<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>.
Cada cultura estabelece limites e padrões sociais de comportamento que definem os parâmetros a partir dos quais se pode interpretar o significado social de uma ação. Esses paradigmas, bem como os limites para as interações no trato social, existem na realidade e não são apenas o produto da imaginação do ator ou mesmo da vítima.<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>
Isso não implica que as razões pelas quais uma pessoa atua sejam de todo irrelevantes para concluir sobre a existência uma ação de natureza sexual. Porém, nenhuma ação pode ser interpretada de maneira despregada da realidade social em que é executada.
Retomando o exemplo do caso ocorrido na Assembleia legislativa. Supondo verídica a gravação e as acusações da vítima, uma questão a ser colocada diz respeito a saber qual motivo poderia haver para abraçar uma colega de trabalho em plena atividade laboral do modo como foi feito: de surpresa, pelas costas, em contato com regiões consideradas íntimas e adstritas à interação sexual (no caso, a mão deslizando na lateral do corpo, tocando o seio, além do pênis em contato com as nádegas). Ao menos em um ambiente formal de trabalho, nem mesmo os casais costumam se tocar dessa maneira em público.
Muito provavelmente, um marido não consideraria simples gesto de amizade ou simpatia se uma pessoa desconhecida tocasse deste modo a sua esposa que aguarda na fila da padaria. É igualmente provável que o deputado Cury ficasse bastante irritado se um completo estranho se aproximasse dele da maneira como ele se aproximou de sua colega. Este experimento mental demonstra que o conceito de assédio sexual não é de forma alguma tão difícil de entender como alguns acreditam.
Por trás disso está um antigo princípio moral: "Faça aos outros o que você gostaria que eles fizessem a você"<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15] </a>– Reciprocidade, também conhecida como princípio da mutualidade. Qualquer um que desconsidere esse princípio afirma, com o seu comportamento, que a outra pessoa não tem o mesmo valor ou os mesmos direitos. É disso que se trata a agressão sexual, nada mais!
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Com maiores detalhes sobre as denúncias, veja-se a reportagem de João Batista Jr., O que mais você quer, filha, para calar a boca?, publicada em dezembro de 2019 na Revista Piauí. Disponível em: &lt;https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-que-mais-voce-quer-filha-para-calar-boca/&gt;. Acesso em 10 de fevereiro de 2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> O vídeo divulgado se encontra disponível no YouTube, em várias versões: &lt;https://www.youtube.com/watch?v=Fzds3PkzsBY&gt;. Acesso em 10 de fevereiro de 2021.
Veja-se a reportagem de Carolina Linhares, Deputado que apalpou colega em SP registra defesa, nega toque em seio e pede que PSOL deixe comissão, publicada na Folha de São Paulo em 08 fev. 2021. Disponível em: &lt;https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/02/deputado-que-apalpou-colega-em-sp-registra-defesa-nega-toque-em-seio-e-pede-que-psol-deixe-comissao.shtml&gt;. Acesso em 10 de fevereiro de 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Importunação sexual 
Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a>  Assédio sexual
Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.               
Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001)
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> CAMARGO, Beatriz Corrêa. Die Strafbarkeit der sexuellen Belästigung durch körperliche Berührung, Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, vol. 131, 2019, p. 605 e ss.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> RENZIKOWSKI, Joachim. Kommentare zum StGB. In: Wolfgang JOECKS/Klaus MIEBACH (org.). Münchener Kommentar zum Strafgesetzbuch, Band 3, 4ª Ed., 2021, § 177 nm. 30 ff.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Cf. FISCHER, Thomas. Strafgesetzbuch: StGB mit Nebengesetzen, 67ª Ed., 2020, § 184i nm. 7.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> A respeito, veja-se HÖRNLE, Tatjana. Sexuelle Selbstbestimmung: Bedeutung, Voraussetzungen und kriminalpolitische Forderungen. Zeitschrift für die Gesamte Strafrechtswissenschaft, vol. 127, 2015, p. 859 et passin; SICK, Brigitte/RENZIKOWSKI, Joachim. Der Schutz der sexuellen Selbstbestimmung. In: HOYER et. al. (org.). Festschrift für Friedrich-Christian Schroeder zum 70. Geburtstag, 2006, p. 603 (p. 604 e ss.).
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Segundo o § 184h do Código Penal alemão, são puníveis apenas os atos sexuais que possuem alguma relevância para os fins de proteção do bem jurídico.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a>  Cf. MEZGER, Edmund. Kommentare zum StGB. In: Ludwig EBERMAYER et al. (org.). Leipziger Kommentar zum Strafgesetzbuch. 8ª Ed., 1958, Vor §§173 e ss. nm. 2.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Assim, e.g. HÖRNLE, Tatjana. Kommentare zum StGB. In: Wolfgang JOECKS/Klaus MIEBACH (org.). Münchener Kommentar zum Strafgesetzbuch, Band 3, 3ª Ed. 2017, § 184h nm. 3 e ss.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Provavelmente, a opinião predominante na Alemanha. Compare-se EISELE, Jörg. Kommentare zum StGB. In: Adolf SCHÖNKE/Horst SCHRÖDER et al.  Kommentar zum Strafgesetzbuch, 30ª Ed. 2019, § 184h nm. 6, com mais referências.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> A esse respeito, KRATZER-CEYLAN, Isabel. Finalität, Widerstand, “Bescholtenheit”. Zur Revision der Schlüsselbegriffe des § 177 StGB. Duncker &amp; Humblot, 2015, p. 38 ss.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Cf. RENZIKOWSKI, supra, § 184i seção 11, com fontes adicionais; diferentemente: FISCHER, supra, § 184i nm. 9 ss.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Veja-se o Livro de Tobias 4,15.

assédio

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JOTA

Dois casos de assédio sexual tomaram a mídia brasileira nos últimos meses, ambos em contexto institucional

Depende o assédio sexual da motivação do agente?

Dois casos de assédio sexual tomaram a mídia brasileira nos últimos meses, ambos em contexto institucional