Penal em Foco

Coronavírus: um diagnóstico jurídico-penal

Algumas reflexões sobre os tipos penais relevantes numa situação de epidemia e pontos legislativos controversos

Crédito: Luiz Silveira/Agência CNJ

Introdução

Embora não seja fácil apontar algo positivo em crises, elas servem ao menos para sabermos o quanto estamos preparados. Isso vale, é claro, para a crise que já se vivencia com a expansão do coronavírus no Brasil, que, se não contida a tempo, será um desafio para nosso sistema de saúde.

Mas o coronavírus vem também contaminar as bases já tão inseguras do Direito Penal brasileiro. Sintomas disso já começam a aparecer nas redes sociais – onde se acredita ser possível, com poucos caracteres disponíveis, discutir seriamente assuntos científicos delicados: opiniões de toda sorte sobre condutas supostamente criminosas de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção.

As notícias dos últimos dias já nos fornecem exemplos do problema: no Distrito Federal, o marido de uma paciente infectada se nega a fazer exames e permanecer em isolamento; o Presidente da República, contrariando orientação do Ministério da Saúde e com suspeita de contaminação ainda não descartada, estimula atos públicos, vai a manifestação, cumprimenta pessoas e manuseia aparelhos celulares; um empresário, após ser diagnosticado com a Covid-19, viaja para uma cidade turística, participa de festas com amigos e contrata funcionários para trabalhar em sua luxuosa residência de verão.

O que tem nosso Direito Penal a dizer sobre essas condutas? Perigo de contágio de moléstia grave (art. 131 CP)? Crime de epidemia (art. 267 CP)? Infração de medida sanitária preventiva (art. 268 CP) [1]? Crime de lesão corporal (art. 129 CP)? Crime de homicídio (art. 121 CP)? A tomar pelas opiniões publicadas, basta encontrar um desses tipos penais, e o problema estará resolvido, quem sabe antes mesmo do diagnóstico adequado.

A situação, no entanto, é muito mais complexa, e nem sempre há uma resposta tão clara e rápida quanto as redes sugerem. Este artigo, com pretensões modestas, tem como finalidade ensaiar algumas reflexões sobre os tipos penais que podem ter de fato alguma relevância numa situação de epidemia e, simultaneamente, apontar para pontos controversos e deficiências da atual legislação.

Nosso objetivo, portanto, não é dar um tratamento aprofundado a todos os problemas, senão somente apresentar diretrizes mais seguras para possíveis discussões em torno da relevância jurídico-penal daqueles comportamentos praticados durante o período da pandemia.

Para desenvolver esses objetivos, começamos deixando claro quais delitos não se aplicam à situação de epidemia (abaixo 1); depois trataremos daqueles tipos penais que podem ter alguma relevância na discussão (abaixo 2 e 3); por fim, apresentaremos as conclusões deste breve diagnóstico (abaixo 4).

1. Tipos que não se aplicam ou têm pouca relevância no atual cenário do Covid-19

1.1 Perigo de contágio de moléstia grave (art. 131 CP)

Quanto a pelo menos dois tipos penais, pode-se afirmar que eles têm pouca ou nenhuma relevância em casos envolvendo a epidemia de coronavírus. O primeiro deles é o art. 131 CP: “Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.”

Como esse é um delito de mera conduta (ou ação), a ocorrência do contágio é irrelevante para sua incidência. E duas razões concorrem para que esse crime tenha pouca relevância no atual cenário.

Em primeiro lugar, o tipo pressupõe uma moléstia grave. Não é fácil saber o que isso significa exatamente, tampouco há na jurisprudência uma definição clara ou um rol de enfermidades referido diretamente ao art. 131 CP.

A doutrina se restringe muitas vezes a oferecer exemplos: tuberculose, cólera, febre amarela, sarampo, meningite. Exemplo não é definição, razão pela qual há uma clara necessidade de maior precisão doutrinária e jurisprudencial.

No espaço que nos é concedido não seria possível tratar do problema a fundo, mas deixamos, a título de sugestão, alguns critérios para balizar a interpretação: a inexistência de cura, a possibilidade de sequelas ou o alto risco de morte são fortes candidatos.

Quanto a Covid-19, ainda é difícil fazer uma subsunção segura, afinal pouco se sabe sobre o vírus. As reações variam bastante de caso a caso, a depender do histórico e faixa etária do paciente.

Os estudos atualmente existentes, a maioria baseados nos casos laboratorialmente confirmados na China, não permitem conclusões sobre o que seria o desenvolvimento típico da doença.[2] Na ausência de informações seguras, consideramos que a dúvida pode favorecer o réu.

Mesmo se superadas as dificuldades de determinação da elementar “moléstia grave” e a atual ausência de informações sobre o vírus, há uma segunda razão para que esse tipo penal não tenha relevância.

A cláusula “com o fim de”, que nesse caso indica um delito de intenção, expressa a necessidade de que o tipo seja realizado com a finalidade especial. Não basta que o sujeito saiba da infecção e queira realizar um ato capaz de contagiar outra pessoa.

Transmitir a doença tem de ser a razão pela qual ele realiza a conduta, o seu propósito. Concretamente: alguém que sabe estar infectado e aperta a mão de um conhecido para cumprimentá-lo não tem a intenção de transferir a enfermidade, embora aceite que o aperto de mão possa levar ao contágio[3]. Mesmo que ele tenha certeza do contágio, se agiu com outra intenção, não haverá crime. Claramente, casos dessa natureza serão muitos excepcionais, para não mencionar as dificuldades de prova que esse tipo específico de dolo implica.

1.2 Epidemia (art. 267 CP)

O segundo tipo penal, esse ainda mais improvável e irrelevante, é previsto no art. 267 CP. O artigo pune o crime de epidemia: “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos: Pena – reclusão, de dez a quinze anos.” Trata-se de um crime de resultado, isto é, a epidemia, cujo surgimento pode ser imputado ao agente.

Epidemia é a disseminação rápida de uma doença entre um grande número de indivíduos de uma população humana em determinado território. Para a realização desse tipo penal, tem de haver, além do resultado epidemia, um vínculo entre a conduta do sujeito e a existência da epidemia que, em dogmática penal, é explicitado pelos conceitos de causalidade e imputação objetiva.

De forma simplificada, o sujeito tem que, em razão de uma conduta específica, poder ser responsabilizado pelo desenvolvimento da própria epidemia. Seria o caso, por exemplo, de alguém que contamina com uma bactéria infecciosa uma fonte de água potável que abastece toda uma região.

A difusa disseminação da Covid-19 já é uma realidade em algumas regiões do país (São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo), de modo que se pode falar na já existência de uma epidemia.

Ou seja, haveria o resultado típico, mas esse resultado não pode ser imputado a um autor específico. A atribuição da epidemia a alguém que, por exemplo, estando infectado, cumprimenta várias pessoas em uma manifestação não satisfaria a exigência de causalidade, isto é, a existência de uma epidemia não dependeria exclusivamente dessas ações e existiria em uma situação hipotética, mesmo que essa conduta não houvesse ocorrido.

Trocando em miúdos: a epidemia atualmente existente, ou ao menos a que se anuncia em algumas regiões do país, não pode ser atribuída a uma pessoa, mas é o resultado de uma transmissão difusa e, alguns casos, já sustentada, ou seja, sem que se possa sequer reconstruir a cadeia de transmissão.

Com isso, chegamos a uma conclusão intermediária: apenas em situações extremamente inusitadas, se satisfeitos os critérios apontados acima, os artigos 131 e 267 CP teriam alguma importância no contexto de crimes relacionados a Covid-19.

Cumpre-nos examinar, agora, os tipos penais que não podem ser imediatamente descartados, esses são os tipos de infração de medida sanitária preventiva (art. 268 CP), um tipo de perigo abstrato, e perigo para a vida ou a saúde de outrem (art. 132 CP), de perigo concreto.

2. Tipos penais de perigo

2.1 Infração de medida sanitária preventiva (art. 268)

2.1.1 O diagnóstico

Esse é um tipo penal que de fato pode ter alguma relevância. Há, no entanto, muitos pontos a esclarecer. O tipo básico do art. 268 CP conta com a seguinte redação: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.”

Trata-se de um crime de perigo abstrato. Isso quer dizer que a sua ocorrência independe de que haja contágio ou até mesmo qualquer risco para saúde de outras pessoas. É suficiente que as determinações em questão sejam infringidas.

O problema aqui, obviamente, consiste em saber o que são tais determinações do poder público. A situação é de uma norma penal que, por si só, não identifica a conduta proibida, mas atribui essa tarefa a outras normas. É o que se denomina norma penal em branco.

Esse tipo de técnica legislativa gera conhecidamente fricções com o princípio da legalidade, que impõe, dentre outras coisas, que as normas penais sejam suficientemente determinadas. No caso das normas penais em branco, para que o cidadão saiba exatamente qual conduta é proibida, não é suficiente consultar o  Código Penal, mas é preciso recorrer a outras leis, decretos, resoluções etc.

Na jurisprudência alemã, a constitucionalidade deste tipo de norma penal que, como o art. 268 CP, não faz menção explícita a outra lei, está condicionada ao seu próprio grau de determinação.[4]

Tomando esse critério por base, é difícil afirmar que o art. 268 CP satisfaz as exigências constitucionais. Afinal, fala-se apenas em “determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, sem que se saiba ao que “determinação” se refere.

A cláusula “destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa” é também excessivamente ampla: ela se aplicaria para quaisquer determinações sobre doenças contagiosas, independentemente da gravidade e velocidade de propagação?

Aplica-se também para determinações sobre resfriados ou gripes? Diante desse quadro de indeterminação, uma possível saída seria subordinar a aplicação do art. 268 CP à existência de uma lei federal, já a que o princípio da legalidade (art. 5º CF, XXXIX; art. 1º CP) exige que a condutas criminosas devem ser definidas por lei.

Não há, no entanto, como há em outros países, uma lei destinada à prevenção e enfrentamento contra doenças infecciosas, com previsão clara das condutas exigidas pelos cidadãos, as medidas que o poder público está autorizado a tomar e a previsão de sanções em casos de descumprimento.[5] A ameaça de uma onda de infecção do coronavírus veio, no entanto, denunciar esse vazio legislativo.

2.1.2 Problema resolvido?

Diante da crise que se avizinhava, foi aprovada às pressas a Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que trata especificamente da emergência do coronavírus. Assim, se poderia dizer que, pelo menos quanto a infecções por coronavírus, há uma lei federal para dar suporte legal ao art. 268 CP.

Dentre outras coisas, a lei autoriza a determinação de medidas como isolamento, quarentena e realização compulsória de exames médicos (art. 3º), bem como alguns deveres de comunicação (arts. 5º e 6º). Mas a lei não resolve tudo.

Ela foi adicionalmente regulamentada pela Portaria nº 356, de 11 de março de 2020, do Ministério da Saúde. Segundo a Portaria, por exemplo, a aplicação da medida de isolamento depende de prescrição médica ou recomendação do agente de vigilância epidemiológica (art. 3º, § 1º); a decretação de quarenta exige ato administrativo formal e devidamente motivado (art. 4º, § 1º).

A cereja do bolo, entretanto, vem com a Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março de 2020, que determina, em seus arts. 3º e 4º, que o descumprimento das medidas de isolamento e quarentena, bem como a resistência a se submeter a exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos, acarreta punição com base nos arts. 268 e 330 CP.

Com essa cascata de normas, o cidadão fica sabendo a conduta passível de punição: ele é obrigado a ficar em casa em isolamento, porque a prescrição médica (norma i) se baseia na Portaria nº 356 (norma ii), que regula a medida de isolamento definida na Lei nº 13.979 (norma iii), que, segundo a Portaria Interministerial nº 5 (norma iv), seria uma determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa e, portanto, satisfaz o tipo penal do art. 268 CP (norma v).

Considerando a premissa liberal de que o cidadão tem de saber quais condutas são puníveis pelo Estado, é fácil ver por que esse tipo de construção legislativa é problemática.

Mas se a situação é ruim com essas normas, muito pior sem elas. Deixando a questão da constitucionalidade do artigo de lado, o melhor que se pode fazer, para garantir um mínimo de segurança jurídica, como defendido acima, é vincular a aplicação do art. 268 CP estritamente às determinações previstas na Lei nº 13.979, seguindo a forma estipulada nas portarias.

Concretamente: a medida de isolamento só existe juridicamente se for determinada por médico ou agente de vigilância epidemiológica e observar as demais exigências previstas no art. 3º da Portaria nº 356.

Além disso, a pessoa tem de ter sido comunicada previamente sobre a compulsoriedade da medida (Portaria Interministerial nº 5, art. 4º, § 1º). Exclusivamente nesse caso, a infração à determinação de permanecer em isolamento será um crime.

O mesmo vale para a quarentena: sua validade depende de ato administrativo formal e devidamente motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de gestão, publicada no Diário Oficial e amplamente divulgada pelos meios de comunicação (art. 4º, § 1º).

Um outro ponto importante é considerar o que significa cada medida. O isolamento, segundo a definição legal (Lei nº 13.979, art. 2º, § 1º), somente é aplicável a pessoas doentes ou contaminadas, e não pode ser determinada para pessoas com suspeita de contaminação.

A quarentena, por outro lado, pode ser aplicada a pessoas com suspeita de contaminação, mas exige ato administrativo de autoridade pública, e não pode ser determinada por ato médico, como exposto acima[6]. Há na mídia muita confusão entre as duas medidas.

Somente se satisfeitos esses requisitos, pode-se falar em infração de medida sanitária preventiva nos termos do art. 268 CP. Não satisfeitos os requisitos para determinação das medidas, não há que se falar mesmo em punição por tentativa, pois o sujeito suporia estar cometendo um delito que não existe (delito putativo).

Em suma, a tomar pelas portarias emitidas pelo governo federal, as condutas cobertas pelo art. 268 CP são as seguintes: descumprimento de determinações de isolamento e quarentena, bem como a resistência a se submeter a exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos.

Em todos esses casos, é fundamental que se respeitem as exigências formais para decretação de tais medidas. Para compreender o que se deduz da cascata de normas mencionada acima, sugerimos o seguinte quadro sinóptico:

Medida sanitária Requisitos Conduta penalmente relevante (art. 268 CP)
Isolamento: separação de pessoas contaminadas – Prescrição médica ou por recomendação do agente de vigilância epidemiológica, com prazo máximo de 14 dias prorrogáveis por igual período (Portaria nº 356 art. 3º, § 1º)

– Comunicação prévia à pessoa afetada sobre a compulsoriedade da medida (Portaria Interministerial nº 5, art. 4º, § 1º)

Infringir o isolamento domiciliar ou hospitalar
Quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes Ato administrativo formal e devidamente motivado, publicada no Diário Oficial e amplamente divulgada pelos meios de comunicação. (Portaria nº 356 art. 4º, § 1º) Desrespeitar a restrição de atividades determinadas em ato administrativo
Realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos – Indicação mediante ato médico ou por profissional de saúde (Portaria nº 356, 6º)

– Comunicação prévia à pessoa afetada sobre a compulsoriedade da medida (Portaria Interministerial nº 5, art. 4º, § 1º)

 

Resistir à realização de exames, testes e tratamentos indicados.

 

A Lei nº 13.979 prevê, além disso, deveres de comunicação por parte de cidadãos e órgãos públicos. Em tese, essas determinações não estariam excluídas do âmbito do art. 268 CP. A Portaria Interministerial nº 5 não menciona esses casos, mas não é razoável supor que uma portaria possa determinar se uma conduta é ou não criminosa, quando esses deveres de comunicação são estabelecidos claramente por lei.

2.1.3 Uma observação final: o concurso de normas

Por fim, um comentário sobre o art. 330 CP, o crime de desobediência. Em boa parte dos casos de infração de medida sanitária preventiva (art. 268), o tipo penal do art. 330 CP também será realizado caso a ordem advenha de funcionário público. Inversamente, no contexto de crimes envolvendo a epidemia, todos os casos de desobediência implicam necessariamente a infração prevista pelo art. 268 CP.

Entre os dois tipos existe o que se denomina concurso aparente de normas (na modalidade de consunção), pois o conteúdo de ilícito do art. 330 CP é consumido pelo do art. 268 CP. O agente só será punido, portanto, pelo crime de infração do art. 268 CP. A menção ao 330 CP na Portaria Interministerial nº 5 é desnecessária.

2.2 Perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132 CP)

Um tipo de perigo que merece ser verdadeiramente levado a sério é aquele previsto no art. 132, CP, cuja redação é a seguinte: “Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave”.

Se dedicarmos um olhar superficial, e consideramos os casos que estamos analisando, não há, a rigor, obstáculo à subsunção. Isso porque o tipo penal admite que o perigo, que é individual[7], tenha a saúde (e não somente a vida)[8] como objeto de referência – embora seja possível cogitar uma redução teleológica do tipo.

No que aqui nos interessa da perspectiva do tipo objetivo, basta que o agente exponha a vítima a uma situação de perigo direto e iminente à saúde. Vamos submeter essa intuição à inspeção dogmática para verificar se, realmente, os casos apresentados (acima 1) podem ser subsumidos ao art. 132 CP.

O perigo, conforme redação do dispositivo, deve ser direto e iminente. No espaço que dispomos não conseguiríamos desenvolver melhor argumento para tentar explicar essas elementares.

Cremos, entretanto, que a ideia que subjaz ao tipo objetivo pode ser acessada por meio do conceito de perigo concreto. Segundo definição largamente admitida, o perigo concreto é um estado em que a lesão ao bem jurídico é de tal forma imediata e provável que sua ocorrência dependerá somente do acaso[9]; a valoração dessa casualidade é feita segundo um exame de prognose póstuma objetiva (julgamento ex ante), isto é, o terceiro julgador deve verificar se o comportamento tinha uma real possibilidade de causar perigo de lesão ao bem jurídico no momento de sua execução[10].

O perigo também deve ser abrangido pelo dolo, direto ou eventual, do autor – talvez seja bastante óbvio, mas às vezes o óbvio precisa ser dito. Isso significa que a imputação subjetiva será aperfeiçoada tanto na hipótese do comportamento realizado com o propósito de criar o perigo como na hipótese em que, apesar de prever a probabilidade do dano, não se abstém de realizar o comportamento[11].

Considerando o que foi dito até aqui, e tentando racionalizar o tipo à luz do grupo de casos que apresentamos, sugerimos o seguinte: primeiro, o tipo depende da prova de que o autor está contaminado: se não há Covid-19, então não se pode cogitar dessa imputação; e isso porque se não há perigo de resultado, então – ainda que exista uma colocação em perigo – não será possível imputar o tipo[12] (i).

Segundo, é preciso haver prova de que o indivíduo tinha consciência de que ele se encontra contaminado (ii).

Terceiro, se nas circunstâncias concretas o autor pudesse esperar (ou confiar racionalmente) que o risco não se realizaria, então não será possível imputar esse tipo penal (iii)[13].

Quarto, o agente consciente da contaminação que expõe uma pessoa a perigo realiza o art. 132 CP, isso não afasta, de acordo com o caso concreto, o possível concurso com o 268 CP, desde que observadas as diretrizes de aplicação desse dispositivo (acima 2.1.2).

Cumpre ressaltar, adicionalmente, o seguinte: imagine-se que o indivíduo – que sabe estar contaminado ou tem fundada suspeita da contaminação – cumprimenta a um amigo.

Como vimos, é possível cogitar a realização do tipo de perigo do art. 132 CP. Na hipótese em que o amigo é de fato contaminado, o tipo penal do art. 132 CP também restaria formalmente realizado.

No entanto, como há um resultado danoso à saúde, o delito de lesão corporal não pode ser ignorado. Havendo de fato uma lesão corporal no sentido do art. 129 CP, o sujeito seria punido apenas por este delito, já que o art. 132 CP é subsidiário ao art. 129 CP (concurso de leis).

Dito isso, chegamos ao último delito que merece consideração, mas que é aparentemente ignorado pelas manifestações que até o momento temos conhecimento: o crime de lesão corporal.

3. Lesão corporal

O último tipo penal que merece consideração é o de lesão corporal. É possível que a consideração desse tipo penal tenha causado alguma estranheza em nosso leitor. E isso porque quando se fala em lesão corporal intuitivamente associamos o comportamento à lesão corpórea.

Entretanto, não podemos esquecer que o núcleo o tipo, a ofensa, tanto pode ser à integridade corporal como à saúde. E é exatamente nessa segunda elementar que o atual quadro de pandemia adquire significado.

Essa primeira consideração pode ter provocado reflexões do gênero: bem, se o tipo penal alcança lesão à saúde, então, por que não se pune pela lesão corporal o colega de faculdade que, severamente gripado, insiste em assistir as aulas e transmite o vírus para o restante da sala?

A resposta, aqui, é quase intuitiva, razão pela qual nos cabe dar somente um fundamento para essa intuição. O direito penal somente se ocupa daqueles riscos socialmente intoleráveis.[14]

Comportamentos socialmente adequados fundamentam a permissão dos riscos[15] que a sociedade já tolera e o fundamento dessa aceitação, em regra, ou decorre de um juízo de ponderação que se faz, isto é, o risco será socialmente tolerável quando as vantagens com a realização do comportamento superam as desvantagens da sua não realização[16] ou decorre de um risco inerente ao curso da vida.

No último caso estamos diante, na elaboração de Wolter, de insignificantes riscos reais (unbeachtlich geringen realen Risikos)[17]. Voltando para o caso do nosso estudante gripado: nesse caso, é evidente que existe um risco de transmissão do vírus, mas esse risco é inerente ao curso da vida, razão pela qual, mesmo numa eventual transmissão do vírus – o que, naturalmente, representa uma ofensa à saúde[18] – o estudante não terá realizado objetivamente o art. 129 CP.

Convertendo a resposta em uma fórmula: a imputação do tipo objetivo deve ser negada porque o estudante gripado não ultrapassa o limite dos riscos permitidos e, por isso mesmo, não cria um perigo juridicamente relevante.

Visto que um comportamento que implica transmissão da Covid-19 não tem suportabilidade social (soziale Tragbarkeit[19]), dificilmente alguém sustentaria que esse é um caso que expressa um risco permitido.

A própria Lei 13.979/20 corrobora esse ponto ao estabelecer, como dever de todo cidadão, a comunicação imediata às autoridades sanitárias em caso de possíveis contatos com os agentes infecciosos ou de circulação em áreas consideradas contaminadas (art. 5º).

Esse pequeno cenário sobre a lesão corporal nos permite concluir, com alguma facilidade, o seguinte: o indivíduo que sabe estar contaminado pela Covid-19, e transmite o vírus a um terceiro, realiza objetivamente o art. 129 CP, que pode ser qualificado pelo perigo de vida (art. 129, § 1o, II CP) ou pelo resultado morte (art. 129, § 3o CP).

Do ponto de vista subjetivo, essa imputação pode ser dolosa ou culposa. Doutro lado, a realização desse tipo não afasta o concurso de crime com o 268 CP, desde que observadas as diretrizes de aplicação desse dispositivo (acima 2.1.2).

Somos obrigados, entretanto, a registar um problema adicional para a atribuição desse tipo penal: estamos diante de um quadro de pandemia que, por definição, é caracterizado pela sua fácil, difusa e incontrolável transmissibilidade.

Como a imputação dos crimes de resultado, que é o caso da lesão corporal, requer a demonstração da relação de causalidade (art. 13 CP), a dificuldade de reconstruir a cadeia causal coloca sérios, e possivelmente insuperáveis, problemas para a imputação do tipo e para o processamento do caso em juízo.

4. Resultados

Retomando, em resumo, as considerações feitas neste artigo, apresentamos nosso diagnóstico jurídico-penal da situação:

  1. É muito improvável que os delitos dos artigos 131 e 267 CP adquiram relevância no contexto de pandemia de Covid-19;
  2. O tipo de infração de medida sanitária preventiva (art. 268 CP) pode de fato ter um papel relevante na situação em curso. Há, no entanto, dúvidas quanto à constitucionalidade da norma. Em todo caso, uma aplicação do art. 268 CP teria de, no mínimo, atentar estritamente os preceitos da Lei 13.979 e das portarias referidas ao surto de coronavírus.
  3. O tipo de perigo para vida ou para a saúde de outrem (art. 132 CP) poderá adquirir relevância, nos casos em que alguém, consciente da contaminação, exponha outro a perigo concreto.
  4. Na hipótese de dano efetivo, também assumirá relevância o delito de lesão corporal (art. 129 CP) e suas formas qualificadas, como o resultado morte.

 

Agradecimentos

Agradecemos ao nosso professor, Luís Greco, bem assim colegas Orlandino Gleizer, Gustavo Quandt e Heloisa Estellita pela leitura, comentários e sugestões feitas à versão original.

 


[1] Segundo notícia divulgada pelo Estadão no dia 16 de março de 2020, o art. 268 subsidiará o pedido de impeachment do deputado federal Alexandre Frota contra o presidente da república. Cf. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pedido-de-impeachment-de-frota-contra-bolsonaro-vai-alegar-crimes-contra-saude-publica,70003235731.

[2] Nesse sentido, o informe do Robert-Koch-Institut. Acessível em: https://www.rki.de/DE/Content/InfAZ/N/Neuartiges_Coronavirus/Steckbrief.html

[3] Caso esse conhecido também saiba da contaminação, também deve ser considerado a impossibilidade de imputação objetiva da conduta em razão do comportamento autorresponsável da vítima.

[4] BVerfGE 22, 1, 18.

[5] A Alemanha, por exemplo, tem uma lei de proteção a infecções (Gesetz zur Verhütung und Bekämpfung von Infektionskrankheiten beim Menschen).

[6] Isolamento e quarentena podem ser determinados também a objetos, como de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas. A infração às respectivas determinações em relação a esses objetos também configuraria crime nos termos do art. 268 CP.

[7] O perigo comum poderá configurar crime contra a incolumidade pública (Título VII); naquilo que se aplica ao nosso problema, o crime de epidemia (acima 1.2).

[8] Não discutiremos, porque não é o objetivo do artigo, as questões referentes à legitimidade e melhor redação para o dispositivo. Limitamos a informar que o seu espelho foi o anteprojeto de Código Penal Suíço de 1908. A versão final desse código, entretanto, optou por uma redação restritiva, limitando a criminalização à exposição a perigo iminente de morte.

[9] Cf. Roxin/Greco, AT5 §10, Rn. 124; Wessels/Beulke/Satzger, AT I48, nm. 43; Otto, § 4, Rn. 11; NK5Kargl, StGB, Vor §§ 306, Rn. 19 e ss; NK5Zieschang, § 315, nm. 30 e ss.

[10] Fischer66, § 315c, nm. 15a; Roxin/Greco, AT5 §11, nm. 147; Zimmermann JR 2018, 25.

[11] Cf. Hungria, p. 418

[12] Sobre os problemas de comprovação e configuração do resultado de perigo concreto, cf. Roxin/Greco, AT5 §11, nm. 148 e ss.

[13] Cf. BGH NJW 95, 3131; Renzikowski JR 1997, 115.

[14] Decidimos discutir esse problema no âmbito da lesão corporal, porque, na doutrina penal, ele é normalmente discutido nos delitos de resultado, no âmbito da imputação objetiva. No entanto, o problema da adequação social do risco poder ser um parâmetro de intepretação geral para a tipicidade, de modo que também seria aplicado a delitos de mera atividade, cf. Roxin/Greco, AT5 §10, nm. 33 ss. Assim, a mesma discussão vale para o delito perigo para a vida ou saúde de outrem apresentado anteriormente (art. 132 CP).

[15] Não é desconhecido o fato de que alguns autores fazem uma clara distinção entre “risco permitido” e “ação socialmente adequada”. Aqui, essa distinção não tem necessidade de ser realizada. Sobre isso, cf. Roxin/Greco, AT5 § 10, nm. 33 e ss.

[16] Cf. Roxin/Greco, AT5 §11, nm. 55.

[17] Wolter, Objektive Zurechnung und modernes Strafrechtssystem, in: Gimbernat/Schünemann/Wolter, Internationale Dogmatik der objektiven Zurechnung und der Unterlassungsdelikte, 1995, p. 3 e ss.

[18] Ofensa à saúde é a causação ou o incremento – significante – de uma condição patológica na vítima. Entende-se como tal aquela que desvia o estado normal das funções físicas ou psíquicas da vítima. Cf. BGHSt 36, 1, 6; Fischer66, § 223, nm. 8 e 13 e ss;

[19] Roxin/Greco, AT5 § 10, nm. 39.