O direito ao silêncio, corolário central do princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), possui longa história, que remonta à Inglaterra do século 12, mais especificamente à resistência ao instituto do juramento ex officio, também aplicado a leigos pelos tribunais eclesiásticos da época.[1] No entanto, apenas séculos depois o direito ao silêncio pôde de fato efetivar-se, sobretudo devido a dois acontecimentos: a implementação do direito do réu de se fazer representar por um defensor, que se consolidou somente no século 19[2], e o reconhecimento do dever do Estado de advertir o investigado ou acusado do seu direito de permanecer em silêncio perante a autoridade policial ou judicial. Este último advento, que também reforça o primeiro, tem raiz no emblemático julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos Miranda v. Arizona, ocorrido no não tão longínquo ano de 1966.[3]

No Brasil, a jurisprudência, sobretudo a do Supremo Tribunal Federal (STF), vem concretizando os critérios de aplicação do dever de esclarecimento do Estado sobre o direito ao silêncio do imputado, especialmente nos casos dos chamados “interrogatórios informais” conduzidos pela Polícia. Antes de abordar essa questão à luz do Direito brasileiro, traçarei um ligeiro panorama sobre o tratamento do tema no contexto internacional.

Cenário internacional: origem e desenvolvimento das 'regras de Miranda'

A decisão da Suprema Corte americana em Miranda v. Arizona emerge de um contexto específico: a enorme pressão exercida, aliada a táticas das mais diversas, por policiais contra cidadãos suspeitos da prática de crimes para a obtenção de depoimentos, delações e possíveis confissões. A maioria da Corte entendeu que declarações obtidas de um suspeito, interrogado em uma atmosfera opressora, dominada pela polícia, e sem que tenha sido advertido de seu direito de permanecer em silêncio, não podem ser admitidas como prova em um processo penal. Além disso, conforme a Corte, a Acusação não pode utilizar, no julgamento, a seu favor – e em detrimento do reú – o fato de que este fez uso do seu direito previsto na Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos (“Nenhuma pessoa.... será obrigada em qualquer processo criminal a ser testemunha contra si mesma”).

O direito de se fazer acompanhar de um advogado durante o interrogatório em sede policial também foi reiteradamente repisado pela Corte. Apesar de o caráter sacrossanto das “regras de Miranda” vir sendo pontualmente posto em xeque na jurisprudência da Suprema Corte[4], o precedente continua válido, permanecendo intacta sua principal consequência de natureza processual-penal: a invalidade da confissão obtida na ausência do cumprimento do dever de esclarecimento.

A questão que emerge da jurisprudência americana deve-se à peculiar circunstância de que nos EUA não existe dispositivo legal que regule o dever de esclarecimento, de modo que este deve ser (como, de fato, foi) derivado da regra geral do direito à não autoincriminação, ou seja, diretamente da Constituição. Em outros ordenamentos jurídicos, a situação é diversa. Por exemplo, na Alemanha, o dever de esclarecimento quanto ao direito ao silêncio é previsto expressamente no Código de Processo Penal (§§ 163ª IV, 136 I StPO), embora, diversamente do que ocorre nos EUA, esse direito (ou o direito à não autoincriminação) não encontre previsão expressa na Constituição alemã.[5]

Todavia, por um longo período, da violação da regra de advertência plasmada no StPO não irradiavam maiores consequências. A jurisprudência considerava a regra como mero “dispositivo regulatório” (Ordnungsvorschrift), o que significava que sua violação não tornava inválida, do ponto de vista probatório, declarações obtidas sem a prévia advertência quanto ao direito ao silêncio.[6] Isso só veio a mudar em 1992, quando o Bundesgerichtshof (BGH, equivalente ao STJ brasileiro) decidiu que um depoimento realizado sem prévio esclarecimento não pode ser valorado enquanto prova no processo penal.[7]

O problema também foi, muito recentemente, objeto de escrutínio pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH). Por exemplo, no caso Lalik v. Poland, julgado em maio deste ano, um caso no qual o indivíduo foi informalmente interrogado durante horas, logo após sua prisão. O Tribunal declarou, de forma unânime, que o réu teve violado seu direito a um processo justo, pelo fato de não ter sido esclarecido sobre seu direito ao silêncio antes de ter sido interrogado pelos policiais sem a presença de um defensor, e de as decisões posteriores que culminaram na sua condenação terem explicitamente se apoiado nas declarações iniciais prestadas à autoridade policial.[8]

As 'regras de Miranda' no direito brasileiro, especialmente na jurisprudência do STF

No Brasil, o dever de advertência quanto ao direito ao silêncio é expressamente previsto tanto na Constituição Federal (art. 5º, LXIII) quanto no Código de Processo Penal (art. 186, caput). Tal qual a Suprema Corte norte-americana e o Tribunal Federal alemão, o STF vem reconhecendo que a consequência da violação do dever de advertência é a inadmissibilidade do depoimento como prova no processo penal. O impulso fundamental foi dado no HC 80.949/RJ, relatado pelo Min. Sepúlveda Pertence, no ano de 2001, em que se afirma: “A falta de advertência – e, como é óbvio, da sua documentação formal – faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o acusado, ainda quando observadas as formalidades procedimentais do interrogatório”.[9]

Há, contudo, controvérsia ainda aberta na jurisprudência dos Tribunais Superiores a respeito da obrigatoriedade do dever de advertência em situações diversas do interrogatório formal, como no momento da abordagem policial, em situação de flagrante delito ou no momento do cumprimento de mandado de busca e apreensão. Nesse contexto, é disputada a questão a respeito do valor probatório do depoimento colhido nessas circunstâncias, a chamada “confissão informal”[10].

Enquanto – sobretudo – a Segunda Turma do STF vem afirmando a ilicitude da prova colhida em “entrevista informal” conduzida por policiais (por exemplo na Reclamação 33.711, de 11/06/2019 e no RHC 192.798, de 24/02/2021, ambos de relatoria do Min. Gilmar Mendes), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ainda vê a questão com reservas. Por exemplo, em acórdão da Sexta Turma, a relatora Min. Laurita Vaz afirmou que a “ausência de informação quanto ao direito ao silêncio constitui nulidade relativa, dependendo da comprovação de efetivo prejuízo”.[11] Por essa razão, a questão ainda será decidida pelo STF, que, no final de 2021, a reconheceu como digna de repercussão geral no bojo do RE 1.177.984 (Tema nº 1.185), sob relatoria do Min. Edson Fachin.

Enquanto a querela ainda resta pendente, o STF reafirmou, recentemente e em algumas oportunidades, a ilicitude probatória do interrogatório informal realizado sem prévio esclarecimento quanto ao direito ao silêncio do investigado. No HC 223.286-GO, de 18 de dezembro de 2022, o Min. Edson Fachin, em caso em que o paciente fora pronunciado mediante provas obtidas por meio de “confissão verbal não documentada”, concedeu a ordem para “reconhecer a nulidade do interrogatório extrajudicial do paciente e suas menções em juízo, bem como para determinar a sua retirada dos autos mediante o desentranhamento do interrogatório e a aposição de tarjas sobre as suas menções nos autos, inclusive nos depoimentos colhidos ao longo da instrução judicial".

O mesmo entendimento prevaleceu em recentíssimo acórdão da Segunda Turma, relatado pelo Min. Gilmar Mendes (RHC 207.459-SP, 25/04/2023). No caso, a recorrente estava na via pública quando foi abordada por policiais que foram supostamente informados por denunciantes anônimos de que ela guardava droga em sua residência. Ela foi interrogada, ainda na via pública, e teria, sem ter sido advertida quanto ao direito ao silêncio, confessado aos policiais que, de fato, recebera R$ 500 para guardar cinco quilos de cocaína a pedido do chefe de uma organização criminosa. Gilmar Mendes repisou seu entendimento anterior: “Penso que qualquer suposta confissão firmada pelo réu, no momento da abordagem, sem observação ao direito ao silêncio, é inteiramente imprestável para fins de condenação e, ainda, invalida demais provas obtidas em decorrência de tal elemento".

Merecem destaque e convidam à reflexão, todavia, os argumentos expedidos no voto divergente do ministro André Mendonça[12], que afirmou entender “que a falta dessa advertência não conduz à anulação automática do interrogatório, sendo imprescindível que sejam observadas as demais circunstâncias do caso concreto para se verificar se houve, ou não, constrangimento ilegal". Primeiro, Mendonça chamou a atenção para o fato de que a abordagem e a entrevista não foram levadas a cabo pelos responsáveis da prisão (em flagrante), como nos casos anteriormente julgados, ou seja, “não havia pessoa presa, o que veio a ocorrer apenas após confirmação do que narrado por ela”.

Assim, a hipótese fática seria distinta daquela que subjaz ao debate a ser travado em sede de repercussão geral no RE 1.177.984. Segundo, argumentou que, na linha da supramencionada jurisprudência do STJ, não teria havido demonstração de prejuízo e que a defesa só teria suscitado a nulidade nas razões do HC formalizado no STF, deixando de fazê-lo nas oportunidades anteriores. Terceiro e sobretudo, Mendonça aduziu que a acusada teria abdicado do direito de permanecer em silêncio, pois na fase de interrogatório formal teria apresentado sua versão dos fatos, embora tivesse sido formalmente advertida do direito de permanecer em silêncio.

Na minha visão, razão assiste à maioria da Segunda Turma. Dois aspectos abordados no voto divergente de Mendonça, contudo, merecem destaque e revelam-se oportunos para esclarecer o âmbito de incidência e o escopo do dever de advertência quanto ao direito ao silêncio.

Primeiro, não é apenas o preso ou o cidadão na iminência da prisão, tampouco apenas o réu, que tem o direto de ser advertido a respeito do direito de permanecer calado diante dos órgãos de persecução penal. A partir do momento em que o cidadão passa a ser expressa ou implicitamente investigado, toca-lhe o direito ao silêncio e o de ser advertido. Crucial, portanto, é determinar o conceito de investigado (ou arguido, como em Portugal, ou ainda: imputado[13]), tema pouco estudado no Brasil e que não pode ser aprofundado nesta sede.[14]

Basta, aqui, dizer que o cidadão “ganha” o status de investigado não apenas quando do indiciamento formal pela autoridade policial, mas já quando se concretiza uma suspeita contra ele. [15] No caso do mencionado no HC, não parece haver dúvidas que a impetrante já ostentava o status (material ou implícito) de investigada quando abordada pelos policiais, eis que recaia sobre ela uma suspeita concretizada após a denúncia anônima.

Em relação ao segundo argumento, o fato de a acusada ter decidido falar em juízo após a (inadvertida) confissão informal não significa que ela tenha renunciado (retroativamente) ao direito ao silêncio. Essa hipótese, na verdade, conduz à discussão sobre o chamado “direito qualificado” ao esclarecimento: trata-se de determinar se ao imputado, nas subsequentes oportunidades em que for entrevistado ou interrogado, deve ser esclarecido não só que tem o direito de ficar calado, mas também que seu depoimento anterior (colhido sem prévia advertência) não poderá ser admitido como prova no processo penal. Como já sustentou Roxin, esse dever qualificado de advertência se impõe porque o imputado, não sabendo que suas declarações anteriores não podem ser valoradas, se verá na obrigação de dar sua versão dos fatos, para tentar “consertar” o que já fora dito; em suma, seu direito ao silêncio será faticamente prejudicado.[16]

Como se percebe, há ainda muito o que discutir, avançar. De todo modo, a linha seguida pela Segunda Turma do STF afigura-se promissora. Cabe à ciência jurídico-penal e à própria jurisprudência aprofundar a discussão, de modo a desenvolver e amadurecer as soluções.

[1] Wigmore, Nemo Tenetur Seipsum Prodere, Harvard Law Review 5 (1891), 71, 72 ss.; Levy, Origins of the Fifth Amendment: The Right against Self-Incrimination, 1968 (reimpressão Ivan Dee, Chicago, 1999), ix, passim; Queijo, O direito de não produzir prova contra si mesmo, São Paulo, 2003, p. 12 ss.

[2] Moglen, in: Helmholz et al. (Org.), The Privilege against Self-Incrimination: Its Origins and Development, Chicago, 1997, p. 114

[3] Minuciosamente, sobre o tema, Dias Neto, O direito ao silêncio: tratamento nos Direitos alemão e norte-americano, Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 19, 1997, p. 179 ss.

[4] Sobretudo no recente caso Tekoh v. Vega. No caso, Terence Tekoh, suspeito de ter abusado sexualmente de uma paciente, foi interrogado ainda na clínica médica pelo xerife Carlos Vega, que não lhe advertiu quanto ao direito de não responder às indagações. Tekoh acabou por emitir uma declaração por escrito admitindo o abuso, o que foi usado como prova contra ele em um processo criminal, no qual, ao final, ele foi inocentado pelo júri. Posteriormente, Tekoh processou Vega civilmente a fim de obter reparação pecuniária pelo dano sofrido, com base no 42 U.S. Code § 1983 (Civil action for deprivation of rights). O Nono Circuito entendeu que o uso de um depoimento “não-mirandizado” contra um acusado viola a Quinta Emenda e constitui base para a pretensão indenizatória. Contudo, a Suprema Corte julgou de modo diverso, entendendo que a violação das “regras de Miranda” não é suficiente para sustentar uma ação de indenização. Segundo a Corte, a violação das “regras de Miranda”, ou seja, não esclarecer ao imputado seu direito de permanecer em silêncio, não constitui uma violação da Quinta Emenda. Tais regras possuiriam apenas natureza profilática, destinadas a proteger o direito à não-autoincriminação previsto na Quinta Emenda. O precedente “Miranda” basear-se-ia, conforme a Corte, em um juízo pragmático acerca de como evitar autoincriminações compulsórias. A respeito cf. Salditt, Miranda – set in constitutional stone?, Strafverteidiger, 2022, p. 747, 748.

[5] Cf. com mais detalhes, Dias Neto, cit., p. 179 ss; Salditt, cit., p. 747.

[6] Rogall, in: Wolter (org.), SK-StPO Systematischer Kommentar zur Strafprozessordnung, B. II, 5. Ed., vor § 133 Nm. 167.

[7] BGHSt 38, 214.

[8] TEDH, Lalik v. Poland - 47834/19, 11/05/2023.

[9] STF HC 80949/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 30/10/2001. Nesse sentido, na doutrina, Queijo, cit., p. 396 s; Feldens, Direito de Defesa: A tutela jurídica da liberdade na perspectiva da defesa penal efetiva, 2ª ed., Porto Alegre, 2021, p. 98 ss; Idem, O direito do cidadão de ser informado sobre os seus direitos, Conjur, 22/10/2020.

[10] Sobre esse problema à luz do direito ao silêncio, com ulteriores referências, Saad, O direito de defesa no inquérito policial, São Paulo, 2004, p. 293.

[11] AgRg no HC 608.751/SP , Sexta Turma, Rel. Ministra Laurita, 23/03/2021. Cf. também STJ RHC 95.963/SC, Quinta Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 16/05/2019. Veja-se, não obstante, STJ RHC 131.030/SP, Quinta Turma, Rel. Min Reynaldo Soares da Fonseca, 03/11/2020, em que se manteve a tese da nulidade relativa, porém se afirmou o prejuízo, pois o paciente, na hipótese, foi denunciado com base na confissão inadvertida que anteriormente fizera em depoimento fornecido na condição de testemunha.

[12] O Min. Nunes Marques também votou pela denegação da ordem, porém sob o argumento de índole formal-processual da supressão de instância.

[13] Assim Greco, O inviolável e o intocável no direito processual penal: considerações introdutórias sobre o processo penal alemão (e suas relações com o direito constitucional, o direito de polícia e o direito dos serviços de inteligência)”, in: Wolter, O inviolável e o intocável no direito processual penal: reflexões sobre dignidade humana, proibições de prova, proteção de dados (e separação informacional de poderes) diante da persecução penal, São Paulo, 2018, p. 59 s. Não confundir, porém, com o conceito italiano de “imputato”, designação que o indivíduo recebe ao final da investigação quando a acusação é enviada ao juízo e que perdura durante todo o processo (art. 60, Codigo de Procedura Penale); o investigado, ainda não formalmente acusado perante o poder judicial, seria o “indagato” ou, no termo técnico da lei “persona sottoposta alle indagini” (arts. 64, 65 CPP), cf. Tonini, Manuale di Proceduta Penale, 20a ed., Milão, 2019, p. 131ss.

[14] Extensamente sobre o tema Gerson, Das Recht auf Beschuldigung, Berlim, 2016, p. 779 ss.; Rösinger, Die Freiheit des Beschuldigten vom Zwang zur Selbstbelastung, Tübingen, 2019, p. 277 ss.

[15] Nesse sentido Greco, Strafprozesstheorie und materielle Rechtskraft. Grundlagen und Dogmatik des Tatbegriffs, des Strafklageverbrauchs und der Wiederaufnahme im Strafverfahrensrecht, Berlim, 2015, p. 767; Frister, Helmut. Polizeihandeln im Strafverfahren, in: Lisken/Denninger (org.), Handbuch des Polizeirechts, 7a ed., Munique, 2021, Nm. 33.

[16] Roxin, Por uma proibição de valorar a prova nos casos de omissão do dever de informação qualificada, trad. Alaor Leite, in: Roxin, Novos estudos de Direito Penal, Alaor Leite (org.), São Paulo, 2014, p. 214 e ss. A respeito dessa questão, profundamente, Rogall, Grund und Grenze der “qualifizierten” Belehrung im Strafprozess, in Geisler et al (org.): Festschrift für Klaus Geppert, Berlim, 2011, p. 519.

A concretização das 'regras de Miranda' na jurisprudência do STF

Breves notas sobre o valor probatório do 'interrogatório informal'