Pandemia

Whistleblower no Brasil: o informante do bem

‘Botar a boca no trombone’ pode ser fundamental em tempos de Covid-19

Crédito: Alex Pazuello/Semcom

A malfadada Lei Anticrime (13.964/19), que chegamos a nominar como um Cavalo de Troia na Justiça Criminal Brasileira em razão de certos dispositivos[i], também trouxe em seu bojo interessante e promissor instituto.

Trata-se do “Informante do Bem”, como vem sendo denominada pela doutrina brasileira a figura insculpida no art. 15 da Lei 13.964/19:

Art. 15. A Lei nº 13.608, de 10 de janeiro de 2018, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 4º-A.  A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e suas autarquias e fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista manterão unidade de ouvidoria ou correição, para assegurar a qualquer pessoa o direito de relatar informações sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público.

Parágrafo único. Considerado razoável o relato pela unidade de ouvidoria ou correição e procedido o encaminhamento para apuração, ao informante serão asseguradas proteção integral contra retaliações e isenção de responsabilização civil ou penal em relação ao relato, exceto se o informante tiver apresentado, de modo consciente, informações ou provas falsas.”

“Art. 4º-B. O informante terá direito à preservação de sua identidade, a qual apenas será revelada em caso de relevante interesse público ou interesse concreto para a apuração dos fatos.

Parágrafo único. A revelação da identidade somente será efetivada mediante comunicação prévia ao informante e com sua concordância formal.”

“Art. 4º-C. Além das medidas de proteção previstas na Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, será assegurada ao informante proteção contra ações ou omissões praticadas em retaliação ao exercício do direito de relatar, tais como demissão arbitrária, alteração injustificada de funções ou atribuições, imposição de sanções, de prejuízos remuneratórios ou materiais de qualquer espécie, retirada de benefícios, diretos ou indiretos, ou negativa de fornecimento de referências profissionais positivas.

§  1º A prática de ações ou omissões de retaliação ao informante configurará falta disciplinar grave e sujeitará o agente à demissão a bem do serviço público.

§ 2º O informante será ressarcido em dobro por eventuais danos materiais causados por ações ou omissões praticadas em retaliação, sem prejuízo de danos morais.

§ 3º Quando as informações disponibilizadas resultarem em recuperação de produto de crime contra a administração pública, poderá ser fixada recompensa em favor do informante em até 5% (cinco por cento) do valor recuperado.”

Apesar da recente introdução no ordenamento brasileiro, ela é, de certa forma tardia, uma vez que já havia menção ao instituto no artigo 33 da Convenção da Nações Unidas para o Combate da Corrupção, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 2003:

Artigo 33

Proteção aos denunciantes

Cada Estado Parte considerará a possibilidade de incorporar em seu ordenamento jurídico interno medidas apropriadas para proporcionar proteção contra todo trato injusto às pessoas que denunciem ante as autoridades competentes, de boa-fé e com motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados com os delitos qualificados de acordo com a presente Convenção[ii].

No mesmo sentido, cumpre registrar também o art. 3º, §8º da Convenção Interamericana contra a Corrupção, acolhida no Brasil por meio do Decreto nº 4.410/2002:

“Artigo III

Medidas preventivas

Para os fins estabelecidos no artigo II desta Convenção, os Estados Partes convêm em considerar a aplicabilidade de medidas, em seus próprios sistemas institucionais destinadas a criar, manter e fortalecer:…

8. Sistemas para proteger funcionários públicos e cidadãos particulares que denunciarem de boa-fé atos de corrupção, inclusive a proteção de sua identidade, sem prejuízo da Constituição do Estado e dos princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico interno”.[iii]

Inegavelmente, a ideia de “Informante do bem” encontra inspiração no Whistleblower, instituto originário dos Estados Unidos e que se espraiou pelo mundo.

Vladimir Passos de Freitas aponta a origem da nomenclatura estrangeira:

“A palavra ‘whistleblowing’ começou a ser utilizada no século XIX e está ligada ao uso de um apito para comunicar ao público algo negativo, como um crime ou mesmo a violação de uma regra em um jogo. O uso de apito pelos árbitros nos jogos de futebol, certamente, advém deste hábito. Nos anos 1960 a palavra começou a ser usada por jornalistas e, nos anos 1970, ela substituiu, na área jurídica, a palavra delator, de conotação pejorativa[iv]”.

Por sua vez, a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), que há muito defendia a implementação do instituto no Brasil, destaca que:

“Whistleblower, em tradução literal, é o assoprador de apito. Na comunidade jurídica internacional, o termo refere-se a toda pessoa que espontaneamente leva ao conhecimento de uma autoridade informações relevantes sobre um ilícito civil ou criminal. As irregularidades relatadas podem ser atos de corrupção, fraudes públicas, grosseiro desperdício de recursos público, atos que coloquem em risco a saúde pública, os direitos dos consumidores etc.

Por ostentar conhecimento privilegiado sobre os fatos, decorrente ou não do ambiente onde trabalha, o instituto jurídico do whistleblower, ou reportante, trata-se de auxílio indispensável às autoridades públicas para deter atos ilícitos. Na grande maioria dos casos, o reportante é apenas um cidadão honesto que, não tendo participado dos fatos que relata, deseja que a autoridade pública tenha conhecimento e apure as irregularidades”.[v]

Claudia Maria Dadico, após salientar que a expressão popular mais aproximada no Brasil seja “botar a boca no trombone”, registra que:

Diversas instâncias internacionais também passaram a destacar o papel dos denunciantes como mecanismo de detecção e controle da corrupção e a necessidade da criação de mecanismos para a sua proteção, sendo oportuno citar os seguintes documentos: a Resolução 1729 de 2010 e a Recomendação 1060 de 2010, ambas do Conselho da Europa; o Ponto 7 do Plano Anticorrupção do G-20, adotado em Seoul em 2010; os Princípios Diretores Anticorrupção do G-20, de 2011 e o Repositório de Boas Práticas e Princípios Diretores da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 2011.

Cabe citar, dentre outros, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), a Convenção contra a Corrupção – Convenção de Mérida, de 2003, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 5.687/2006…

Essas diretivas do direito internacional resultaram na adoção, por diversos países em seus ordenamentos jurídicos, de legislações específicas de incentivo e proteção ao “whistleblowing”, sendo pertinente citar, os exemplos do Chile (Ley 20.205/2007), do Reino Unido (PIDA – Public Interest Disclosure Act), além dos já citados textos normativos da França e dos Estados Unidos, dos quais releva o denominado Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), de aplicação extraterritorial em determinadas hipóteses, inclusive[vi].

Em grosseira síntese, “informante do bem” é qualquer indivíduo que, tendo ciência ou informações sobre crimes contra a administração pública (podendo abarcar também ilícitos administrativos ou quaisquer condutas lesivas ao interesse público), relata tais fatos e possíveis envolvidos à autoridade competente:

  1. podendo receber até 5% (cinco por cento) do valor recuperado;
  2. ficando isento quanto à eventual responsabilização civil ou penal em relação ao relato;
  3. tendo direito à preservação de sua identidade, a qual será revelada apenas em caso de relevante interesse público ou interesse concreto para a apuração dos fatos, mediante comunicação prévia ao informante e com sua concordância formal;
  4. gozando de proteção integral contra retaliações, o que abrange o direito de ser ressarcido em dobro por eventuais danos materiais, sem prejuízo de danos morais;

Trata-se de uma possibilidade de “fazer o que é certo”, contribuindo para a superação de uma cultura de corrupção e construção de um país melhor, e, recebendo, ainda, não só proteção estatal, mas também, como forma de reconhecimento pelo serviço prestado, uma premiação.

No entanto, a partir do momento em que alguém tem ciência da prática de um ilícito, idealmente deveríamos esperar que este buscasse as autoridades para pôr fim a tal, como bom cidadão.

Contudo, “botar a boca no trombone” não é fácil. Laços profissionais e sociais, bem como uma cultura institucional que fomenta a lealdade à empresa, além do medo de retaliações, podem obstar que isso ocorra. De fato, um dos principais temores dos whistleblower consiste em ter a carreira destruída.

Assim, o compromisso com a realidade torna imperioso admitir que devemos fornecer incentivos para que tais denúncias sejam efetivamente realizadas.

O raciocínio é análogo àquele que fundamentou a colaboração premiada no Brasil, sendo de cunho pragmático e lastreado na análise econômica do Direito. Nesse sentido, cumpre trazer à baila excertos do paradigmático voto do Ministro Luiz Fux na Ação Penal 470[vii]:

“Por óbvio, revelando-se árdua a identificação dos responsáveis pelos crimes e a sua materialidade, tem lugar um ambiente profícuo para a fixação e profusão das quadrilhas especializadas nos crimes de colarinho branco. A certeza da impunidade é o maior combustível da criminalidade…

Ceifar a ponta do iceberg, deixando acobertada sob o oceano a maior parte das condutas socialmente nocivas, faz da persecução penal um mecanismo inócuo, inapto à pacificação social. Há que se concluir, ainda com recurso ao metaforismo, que é preferível deixar intacta a ponta do iceberg e dar cabo da sua imensa magnitude oculta, do que o inverso, assumindo-se necessário optar entre uma solução e outra….

Robert Cooter e Thomas Ulen, na clássica obra Law and Economics (3ª ed. Addison Wesley Longman, 2000. p. 34 e ss.), explicam que a economia pode ajudar a encontrar a solução mais otimizada em situações nas quais se façam presentes diversos atores, detentores do poder de escolha entre várias alternativas possíveis, e onde a escolha de um influa diretamente na melhor saída para os interesses do outro…

A mera previsão legal da delação premiada é suficiente para instaurar a mútua desconfiança entre os membros da organização – ou até mesmo para evitar que elas se formem. A potencial traição de um comparsa é fator que desestimula a associatividade entre os que delinquem e fragiliza as quadrilhas existentes. E, ao contrário do que sustentam alguns críticos do instituto, nada há de imoral em trair o crime para ser leal ao direito”.

De fato, a despeito do “informante do bem” e a “colaboração premiada” não se confundirem, o utilitarismo inerente a ambos é um traço comum, assim como o fato de configurarem ferramentas imprescindíveis na luta contra a corrupção e a criminalidade organizada.

Dessa vez, contudo, o protagonista é o cidadão, ora empoderado pelo instituto, e não um dos delinquentes.

E no ponto, fundamental ressaltar que se trata de mecanismo passível de carrear provas e deflagrar investigações de inúmeros esquemas delituosos que remanesceriam incólumes, se não fossem denunciados por um cidadão. Reconhece-se, portanto, um importante papel de cunho repressivo, que pode corroborar para elucidação de crimes já cometidos ou em curso.

Contudo, além dessa relevante função, assim como apontou o ministro com a perspicácia habitual no tocante à colaboração premiada, a instituição do “informante do bem” também traz notável função dissuasória, uma vez que a sua simples existência já redundará em maior temor para os envolvidos em crimes contra a administração pública de serem denunciados por um terceiro.

Gize-se que consistindo a recompensa em percentual do produto do crime, quanto maior o desvio realizado maior será o incentivo para que “alguém bote a boca no trombone”, o que maximizará também o medo do criminoso de ser denunciado por alguém.

Apenas a título de exemplo, a operação lava-jato, que só se tornou possível graças as colaborações premiadas realizadas por participantes dos esquemas criminosos, redundou na devolução de R$ 4.000.000.000,00 (4 bilhões de reais), com a previsão de se alcançar um total de R$ 14.300.000.000,00 (14,3 bilhões de reais)[viii].

Aqui consignamos a pergunta: Será que se já tivéssemos o instituto do “informante do bem” na legislação, teríamos de ter recorrido a colaboração dos criminosos envolvidos? Gize-se que a recompensa a um cidadão que “botasse a boca no trombone” poderia alcançar, com base nesses números, R$ 715.000.000,00 (715 milhões de reais).

Com efeito, um dos grandes desafios contemporâneos que o Brasil enfrenta, se não o maior, certamente é o combate a corrupção, cujos custos e nocividade social já foram salientados pelo Ministro do STF Luís Roberto Barroso em célebre artigo[ix]:

O fenômeno vem em processo acumulativo desde muito longe e se disseminou, nos últimos tempos, em níveis espantosos e endêmicos. Não foram falhas pontuais, individuais. Foi um fenômeno generalizado, sistêmico e plural, que envolveu empresas estatais, empresas privadas, agentes públicos, agentes privados, partidos políticos, membros do Executivo e do Legislativo. Havia esquemas profissionais de arrecadação e distribuição de dinheiros desviados mediante superfaturamento e outros esquemas. Tornou-se o modo natural de se fazerem negócios e de se fazer política no país. A corrupção é fruto de um pacto oligárquico celebrado entre boa parte da classe política, do empresariado e da burocracia estatal para saque do Estado brasileiro.

Alguém poderia supor que há uma conspiração geral contra tudo e contra todos! O problema com esta versão são os fatos: os áudios, os vídeos, as malas de dinheiro, os apartamentos repletos, assim como as provas que saltam de cada compartimento que se abra…

A corrupção tem custos elevados para o país. De acordo com a Transparência Internacional, em 2016 o Brasil foi o 96º colocado no ranking sobre percepção da corrupção no mundo, entre 168 países analisados. Em 2015, havíamos ocupado o 79º lugar. Em 2014, o 69º. Ou seja: pioramos 32.

Estatísticas como essas comprometem a imagem do país, o nível de investimento, a credibilidade das instituições e, em escala sutil e imensurável, a autoestima das pessoas. A corrupção acarreta custos financeiros, sociais e morais.

No tocante aos custos financeiros, apesar das dificuldades de levantamento de dados – subornos e propinas geralmente não vêm a público –, noticiou-se que apenas na Petrobras e empresas estatais investigadas na Operação Lava Jato os pagamentos de propina chegaram a 20 bilhões de reais. Levantamento feito pela Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP) projeta que até 2,3% do PIB são perdidos a cada ano com práticas corruptas, o que chegaria a 100 bilhões de reais por ano. Os custos sociais também são elevadíssimos.

Como intuitivo, a corrupção é regressiva, pois só circula nas altas esferas e ali se encontram os seus grandes beneficiários. Porém, e muito mais grave, ela compromete a qualidade dos serviços públicos, em áreas de grande relevância como saúde, educação, segurança pública, estradas, transporte urbano etc. Nos anos de 2015 e 2016, ecoando escândalos de corrupção, o PIB brasileiro caiu 7,2%33.

O pior custo, todavia, é provavelmente o custo moral, com a criação de uma cultura de desonestidade e esperteza, que contamina as pessoas ou espalha letargia. O modo de fazer política e de fazer negócios no país passou a funcionar mais ou menos assim: (i) o agente político relevante indica o dirigente do órgão ou da empresa estatal, com metas de desvio de dinheiro; (ii) o dirigente indicado frauda a licitação para contratar empresa que seja parte no esquema; (iii) a empresa contratada superfatura o contrato para gerar o excedente do dinheiro que vai ser destinado ao agente político que fez a indicação, ao partido e aos correligionários.

Note-se bem: este não foi um esquema isolado! Este é o modelo padrão. A ele se somam a cobrança de propinas em empréstimos públicos, a venda de dispositivos em medidas provisórias, leis ou decretos; e os achaques em comissões parlamentares de inquérito, para citar alguns exemplos mais visíveis. Nesse ambiente, faz pouca diferença saber se o dinheiro vai para a campanha, para o bolso ou um pouco para cada um. Porque o problema maior não é para onde o dinheiro vai, e sim de onde ele vem: de uma cultura de desonestidade que foi naturalizada e passou a ser a regra geral.

Outra não é a posição do Ministro do STF Luiz Fux, que ao defender a prisão após condenação em segunda instância, enfatizou não só que o combate a corrupção deve ser uma prioridade nacional, mas também ressaltou a relevância de cada cidadão nesse processo:

“A agenda prioritária no Brasil para sermos respeitados como nação é combatermos constantemente a corrupção. Os senhores podem confiar que o combate à corrupção é irreversível. O trabalho que a sociedade vem fazendo está dando resultado, não pode parar”.[x]

Imperioso citar outra assertiva do Ministro, pela lucidez que lhe é peculiar, desta feita durante sessão de julgamento do processo do mensalão, no qual reconheceu desvios de recursos públicos na Câmara dos Deputados e no Banco do Brasil[xi]:

“A cada desvio do dinheiro público, mais uma criança passa fome, mais uma localidade fica sem saneamento, mais um hospital fica sem leito. Estamos falando de dinheiro público. O dinheiro público é destinado à ciência, saúde e educação”

Nesse diapasão, a figura do “informante do bem” certamente configurará eficiente arma posta à disposição de cada brasileiro que desejar fazer parte desta luta por um país melhor!

Por certo, a previsão legislativa do instituto demanda aprimoramentos diversos e suscitará muitas dúvidas em sua aplicação, carecendo ainda de adequada regulamentação.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a SEC (Comissão de Valores Imobiliários) está autorizada a conceder recompensas que podem atingir até entre 10% e 30% do dinheiro arrecadado[xii], enquanto no Brasil o teto foi fixado em 5% apenas, sendo esse um dos muitos pontos nos quais pugnamos por alteração.

Ademais, lamentavelmente, não há maiores notícias ou publicidade envolvendo as unidades de ouvidoria ou correição cuja criação e manutenção a Lei 13.964/19 instou. Com efeito, há imposição legal nesse sentido tanto aos entes federativos quanto às autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, mas não foi fixado qualquer prazo.

Sem prejuízo da adequada regulamentação e fomento por estes, é crucial assentar que o instituto do “informante do bem” já é integralmente aplicável e qualquer cidadão pode fazer os relatos de crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer condutas lesivas ao interesse público diretamente ao Ministério Público, gozando, desde o início da vigência da Lei, das proteções conferidas e da possibilidade da recompensa.

No ponto, apesar da importância que as ouvidorias teriam para o desenvolvimento do whistleblower brasileiro, vale lembrar que nos termos do art. 127 e 129, I e III, da CRFB/88, incumbe ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, sendo sua função institucional promover, privativamente, a ação penal pública, bem como promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social.

Assim, ainda que não tenham sido adequadamente estruturadas as unidades de ouvidoria ou correição, bem como devidamente regulamentados os programas de “informantes do bem”, remanesce possível o relato diretamente ao Ministério Público e que a recompensa seja jurisdicionalmente conferida.

A despeito de todas as críticas passíveis de serem feitas à configuração inicial do “informante do bem” e suas eventuais lacunas, inegavelmente a positivação do whistleblower no Direito brasileiro foi um valoroso passo rumo a um ordenamento mais efetivo, eficiente e pragmático.

Compartilhamos da visão esperançosa e confiante do Ministro do STF Luís Roberto Barroso em artigo supracitado acerca da mudança paradigmática e cultural que vem ocorrendo na nossa pátria[xiii]:

“É impossível não sentir vergonha pelo que aconteceu no Brasil. Por outro lado, poucos países no mundo tiveram a coragem de abrir as suas entranhas e enfrentar o mal atávico da corrupção com a determinação que boa parte da sociedade brasileira e uma parte do Poder Judiciário têm demonstrado. Para isso têm contribuído mudanças de atitude das pessoas e das instituições, assim como alterações na legislação e na jurisprudência” …

“A cidadania, no Brasil, vive um momento de tristeza e de angústia. Uma fotografia do momento atual pode dar a impressão de que o crime compensa e o mal venceu. Mas seria uma imagem enganosa. O país já mudou e nada será como antes” …

“Há uma imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo na sociedade brasileira, e esta é a energia que muda paradigmas e empurra a história.” … “Uma semente foi plantada. O trem já saiu da estação”.

A desventurada pandemia que vem nos afligindo (Covid-19) pode, inclusive, revelar-se um campo fértil para uma estreia triunfante do instituto.

Lamentavelmente, muitas tragédias já foram palco de escândalos de corrupção como revelam algumas manchetes que tivemos o desgosto de ler no passado:

Ajuda da Cruz Vermelha a cidades da serra do RJ foi desviada, diz auditoria – Segundo secretário geral no país, desvio foi de cerca de R$ 17 milhões. Vítimas da fome na Somália e terremoto no Japão também foram afetadas[xiv]

MP investiga desvio de verba destinada a tragédia[xv]

Mais um político é preso por tentar golpe das indenizações da tragédia de Brumadinho[xvi]

Brumadinho: MP denuncia 16 pessoas por homicídio doloso e crimes ambientais[xvii]

Fantástico mostra como é feita fraude em licitações de saúde pública[xviii]

Com efeito, a crise gerada pela disseminação do coronavirus, além do desafio da conjugação de esforços entre as administrações municipais, estaduais e federal, para uma adequada e eficiente administração dos recursos públicos, tem ensejado a destinação de vultuosos valores, na casa dos bilhões, para vários setores da economia brasileira, além de milhares de licitações com dispensa ou inexigibilidade, contexto no qual a figura do “informante do bem” pode se revelar um instrumento efetivo para o exercício de uma cidadania participativa.

Cumpre destacar, no ponto, que a solidariedade do povo brasileiro e postura frente à adversidade mais uma vez chamam a atenção, e outra não é a razão pela qual me orgulho em ter nascido nesse solo, sendo incontáveis os exemplos positivos, tanto por parte do cidadão, empresário ou administrador público. Nos três Poderes temos admiráveis atuações que nos fazem renovar a esperança em um futuro melhor. E aqui consignamos nossos aplausos, de pé.

No entanto, as notícias dos últimos dias demonstram que a nossa preocupação não é desarrazoada e que, ainda temos entre nós aqueles que tentam se aproveitar de uma tragédia para auferir proveito criminoso, muitas vezes lesando a Administração Pública e, em última instância, a sociedade:

Golpe sobre falso cadastro no auxílio de R$ 600 já fez 6,7 milhões de vítimas; saiba como se proteger[xix]

‘Auxílio coronavírus’ e outros golpes no WhatsApp atingem 2 milhões – Textos falsos prometem “auxílio coronavírus” e álcool em gel no WhatsApp[xx]

Ação conjunta fecha fábrica clandestina de álcool gel em Porto Alegre[xxi]

Polícia Civil do Rio monta força-tarefa para investigar fraudes e desvios de dinheiro durante pandemia[xxii]

Conhecida citação atribuída a Edmund Burke, assenta que “tudo que é preciso para o triunfo do mal é que os bons homens não façam nada[xxiii]“. Nesse passo, rogamos pela ascensão da figura do “informante do bem” como forma de revolucionar o combate aos crimes contra a administração pública e a outras condutas lesivas ao interesse público, clamando, dessa forma, que muitos cidadãos efetivamente “botem a boca no trombone”.

Assim, poderemos emergir dessa sombria crise não só com a certeza de que o brasileiro não compactuará mais com qualquer forma de corrupção, mas também de que um futuro melhor para nosso país e para as próximas gerações se avizinha.

 


[i] Conforme publicamos anteriormente na Coluna do Juiz Hermes, no JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/juiz-hermes/presente-de-grego-garantias-27122019, último acesso em 30/03/2020.

[ii] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5687.htm, último acesso em 08/04/2020. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_corruption/Publicacoes/2007_UNCAC_Port.pdf, último acesso em 04/04/2020

[iii] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4410.htm, último acesso em 08/04/2020.

[iv] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-nov-03/whistleblower-informante-bem-ordem-juridica-brasileira, último acesso em 08/04/2020.

[v] Disponível em: http://enccla.camara.leg.br/noticias/o-que-e-o-whistleblower, último acesso em 08/04/2020.

[vi] Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/legislacao-penal-e-processual-penal/documentos/audiencias-publicas/NotaTecnica.pdf, último acesso em 08/04/2020.

[vii] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=220033, último acesso em 08/04/2020.

[viii] Disponível em: http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/lava-jato/resultados, último acesso em 08/04/2020.

[ix] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-out-06/barroso-30-anos-constituicao-republica-ainda-nao-foi, último acesso em 08/04/2020.

[x] Disponível em: https://www.infomoney.com.br/politica/o-combate-a-corrupcao-no-brasil-e-irreversivel-afirma-luiz-fux/, último acesso em 08/04/2020.

[xi] Disponível em: http://g1.globo.com/politica/mensalao/noticia/2012/08/luiz-fux-vota-por-condenacao-de-5-reus-por-desvios-na-camara-e-bb.html, último acesso em 08/04/2020.

[xii] Disponível em: https://www.sec.gov/whistleblower, último acesso em 08/04/2020.

[xiii] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-out-06/barroso-30-anos-constituicao-republica-ainda-nao-foi, último acesso em 08/04/2020.

[xiv] Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/07/ajuda-da-cruz-vermelha-cidades-da-serra-do-rj-foi-desviado-diz-auditoria.html, último acesso em 08/04/2020.

[xv] Disponível em https://veja.abril.com.br/politica/mp-investiga-desvio-de-verba-destinada-a-tragedia/, último acesso em 08/04/2020.

[xvi] Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/08/08/interna_gerais,1075879/politico-preso-golpe-indenizacoes-da-tragedia-de-brumadinho-vereador.shtml, último acesso em 08/04/2020.

[xvii] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/01/21/brumadinho-mp-denuncia-16-pessoas-por-homicidio-doloso-e-crimes-ambientais.htm, último acesso em 08/04/2020.

[xviii] Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/03/fantastico-mostra-como-e-desvio-de-dinheiro-em-um-hospital-publico.html, último acesso em 08/04/2020.

[xix] Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/golpe-sobre-falso-cadastro-no-auxilio-de-600-ja-fez-67-milhoes-de-vitimas-saiba-como-se-proteger-24356996, último acesso em 08/04/2020.

[xx] Disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2020/03/auxilio-coronavirus-e-outros-golpes-no-whatsapp-atingem-2-milhoes.ghtml, último acesso em 08/04/2020.

[xxi] Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2020/04/acao-conjunta-fecha-fabrica-clandestina-de-alcool-gel-em-porto-alegre-ck8j4f5vw00yv01o55ax4t7rd.html, último acesso em 08/04/2020.

[xxii] Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/policia-civil-do-rio-monta-forca-tarefa-para-investigar-fraudes-desvios-de-dinheiro-durante-pandemia-24356761, último acesso em 08/04/2020.

[xxiii] “The Yale Book of Quotations” – página 116, nota 28, Por Fred R. Shapiro, Joseph Epstein, Colaborador Joseph Epstein, Publicado por Yale University Press, 2006 ISBN 0300107986, 9780300107982 1067 páginas, esta citação foi atribuída em “Wash. Post, 22 Jan. 1950”. Frequentemente atribuída a Burke mas nunca encontrada em seus escritos.