STJ

Releitura da Súmula 444 do STJ à luz do princípio da presunção de inocência

Reflexões sobre a jurisdição contemporânea

XXXIII Congresso Brasileiro dos Magistrados. Crédito: arquivo pessoal

Preliminarmente, cumpre salientar que a tese ora apresentada foi debatida e aprovada na plenária do XXXIII Congresso Brasileiro de Magistrados, realizado entre os dias 24 e 26 de junho. Destaque-se, ainda, o endosso e apoio do Fórum Nacional de Juízes Criminais (FONAJUC1).

Eis a proposição:

“A concepção atual do princípio da presunção de inocência, ratificada pela recente jurisprudência do STF, bem como o direito fundamental de igualdade substancial (art. 5º, CRFB/88) e a garantia constitucional de adequada individualização da pena (art. 5º, XLVI, CRFB/88), ensejam a reinterpretação da Súmula 444 do STJ, permitindo que condenações criminais, mesmo que em 1º grau, possam ser valoradas na dosimetria de outros processos, afastando-se tão somente a utilização de inquéritos policiais e ações penais deflagradas”.

Passamos a esclarecer as razões que impelem a releitura sumular:

O Superior Tribunal de Justiça publicou, no ano de 2010, a Súmula 444: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base (Súmula 444, Terceira Seção, julgado em 28/04/2010, DJe 13/05/2010)”.

Nesse sentido, cabe trazer à baila alguns dos precedentes que deram origem a referida súmula:

“Consta da sentença […]: existência de antecedentes criminais do réu, sem, contudo, configurar reincidência, vez que sua folha de antecedentes consigna anotação relativa ao delito de tráfico ilícito de entorpecente […] fixo sua pena-base acima do mínimo legal’ Tal entendimento, todavia, está em confronto com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça segundo a qual ‘Inquéritos policiais e ações penais em andamento não constituem maus antecedentes, má conduta social nem personalidade desajustada, porquanto ainda não se tem contra o réu um título executivo penal definitivo'[…].” (HC 142241 RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 01/02/2010)

“[…], considerou-se em seu desfavor os antecedentes, em virtude da existência de um outro processo em andamento; … Entretanto, equivocou-se o ilustre sentenciante ao considerar que o réu registra outra incidência, ao que parece processo em andamento, pelo crime de receptação, circunstância que não pode ser sopesada como antecedentes. Após a Constituição da República de 1988, antecedentes devem resultar de decisão condenatória transitada em julgado, sendo que processos em andamento, ou inquéritos não podem servir para agravar a pena do réu, nem mesmo para se considerar que ele possui má conduta social, ou personalidade deformada, porquanto poderá, no final dos processos, ser absolvido. A condenação só produz qualquer efeito, em relação ao apenado, após o seu trânsito em julgado, sendo abundante a jurisprudência neste sentido, tanto do Supremo Tribunal Federal, como deste Sodalício: ‘O ato judicial de fixação da pena não poderá emprestar elevo jurídico-legal a circunstância que meramente evidencie haver sido, o réu, submetido a procedimento penal persecutório, sem que deste haja resultado, com definitivo trânsito em julgado, qualquer condenação de índole penal. A submissão de uma pessoa a meros inquéritos policiais, ou, ainda, a persecuções criminais de que não haja derivado qualquer título penal executório, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica para justificar ou legitimar a especial exacerbação da pena. Tolerar-se o contrário implicaria admitir grave lesão ao princípio constitucional consagrador da presunção de não culpabilidade dos réus ou dos indiciados (Cf.art. 5º, LVII). É inquestionável que somente a condenação penal transitada em julgado pode justificar a exacerbação da pena, pois, com ela, descaracteriza-se a presunção juris tantum de não-culpabilidade do réu, que passa, então – e a partir desse momento – a ostentar o status jurídico-penal de condenado, com todas as conseqüências daí decorrentes. Não podem repercutir contra o réu situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário especialmente naquelas hipóteses d inexistência de título penal condenatório definitivamente constituído. (STF- HC 68465-3. Rel. Ministro Celso Mello. DJU de 21.02.1992, p. 1694).’ ‘PENAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. PENA-BASE. AUMENTO. INQUÉRITOS E PROCESSOS EM ANDAMENTO. CONSIDERAÇÃO COMO MAUS ANTECEDENTES. IMPOSSIBILIDADE. PRESCRIÇÃO RETROATIVA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. Ressalvado o ponto de vista deste relator, manifestado nos autos do HC 39.515/SP, cujo acórdão foi publicado em 9/5/2005, a contrario sensu, resta assentada a jurisprudência deste Tribunal Superior no sentido de que ‘viola o princípio constitucional da presunção da inocência (art. 5º, inciso LVII, da CF) a consideração, à conta de maus antecedentes, de inquéritos e processos em andamento para a exacerbação da pena-base e do regime prisional’ (REsp 675.463/RS, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, DJ 13/12/2004, p. 454), e que, ‘Por maus antecedentes criminais, em virtude do que dispõe o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição de República, deve-se entender a condenação transitada em julgado, excluída aquela que configura reincidência (art. 64, I, CP), excluindo-se processo criminal em curso e indiciamento em inquérito policial’ (HC 31.693/MS, Rel. Min. PAULO MEDINA, DJ 6/12/2004, p. 368). … (HC 81866 DF, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), QUINTA TURMA, julgado em 25/09/2007, DJ 15/10/2007, p. 325)

Com efeito, o entendimento foi reiterado, em dezembro de 2014, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida (RE 591.054 – 6 votos a 4)2, decorrendo da concepção hipertrofiada de presunção de inocência que prevalecia na época.

No entanto, a questão nunca foi devidamente sepultada, e o próprio Pleno do STF, durante o julgamento do HC 94.620 e HC 94.680 (realizado em 24/06/2015)3, já havia aventado a possibilidade de virada jurisprudencial e superação do entendimento fixado em repercussão geral no bojo do RE 591.054.

Compulsando a recente jurisprudência do STF4, todavia, já se mostra imperiosa a reinterpretação da Súmula 444 do STJ para considerar que apenas as ações penais em que ainda não tenha sido proferida sentença condenatória não se mostram hábeis a forjar antecedentes.

Não pode a magistratura, atenta a criminalidade profissional que assola a pátria, equiparar pessoas que nunca responderam e não respondem a nenhum processo criminal, a outros que registram condenação, ainda que em 1º grau, em sua folha de antecedentes criminais, sob pena de se vilipendiar o direito fundamental de igualdade substancial (art. 5º, CRFB/88) e a garantia constitucional de adequada individualização da pena (art. 5º, XLVI, CRFB/88)

Afinal, se igualdade é tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual, na célebre definição de Aristóteles, nada mais injusto que se considerar merecedores de uma mesma pena-base um cidadão que nunca sequer foi parar em uma Delegacia ou Juízo Criminal e outro que já tenha sofrido condenação.

Aliás, essa concepção de igualdade já é muito defendida pelo STF:

AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 213/2004, CONVERTIDA NA LEI Nº 11.096/2005. PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS – PROUNI. AÇÕES AFIRMATIVAS DO ESTADO. CUMPRIMENTO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA. 1… 7. … Com o que se homenageia a insuperável máxima aristotélica de que a verdadeira igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, máxima que Ruy Barbosa interpretou como o ideal de tratar igualmente os iguais, porém na medida em que se igualem; e tratar desigualmente os desiguais, também na medida em que se desigualem. … 10. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.379 não conhecida. ADI’s 3.314 e 3.330 julgadas improcedentes. (Processo ADI 3330 – Relator(a) AYRES BRITTO – Plenário, 03.05.2012)

MANDADO DE SEGURANÇA. CONSTITUCIONAL. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/04. AUSÊNCIA DE REGRAS DE TRANSIÇÃO DESTINADAS A SOLUCIONAR SITUAÇÕES LIMÍTROFES NÃO ABRANGIDAS PELOS NOVOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. INGRESSO NA CARREIRA. INSCRIÇÃO DEFINITIVA NO CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATA QUE, EMBORA NÃO POSSUÍSSE OS TRÊS ANOS DE ATIVIDADE JURÍDICA EXIGIDOS PELO ART. 129, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO, ERA PROMOTORA DE JUSTIÇA DE MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. SITUAÇÃO DE EXCEÇÃO. PRINCÍPIO DA UNIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO [ART. 128, I e II, DA CB/88]. PRINCÍPIO DA IGUALDADE [ART. 5º DA CB/88]. A IGUALDADE CONSISTE EM TRATAR-SE DESIGUALMENTE OS DESIGUAIS. ORDEM DEFERIDA. 1. … 5. A igualdade, desde Platão e Aristóteles, consiste em tratar-se de modo desigual os desiguais. Prestigia-se a igualdade, no sentido mencionado quando, no exame de prévia atividade jurídica em concurso público para ingresso no Ministério Público Federal, dá-se tratamento distinto àqueles que já integram o Ministério Público. Segurança concedida. (Processo MS 26690 – Relator(a) EROS GRAU – STF – Plenário, 03.09.2008)

Cumpre salientar que não se está a sustentar que o fato de determinado indivíduo já ter sido indiciado, ainda que em vários inquéritos, ou ter contra si deflagradas várias ações penais, conforme compreensão majoritária, seja usado como motivo para aumentar a pena-base a título de antecedentes, ante o princípio constitucional da não culpabilidade.

Mas sim a possibilidade de que a partir da condenação em 1º grau, restem configurados os antecedentes, com aptidão para serem valorados na dosimetria de outro processo. Posição esta que inclusive se alinha com várias das manifestações dos ministros da Suprema Corte no julgamento do HC 152752, por meio do qual a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscava impedir a execução provisória da pena diante da confirmação pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) de sua condenação pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Ora, se é possível executar a pena a partir da condenação em segundo grau, por certo se mostra imperioso reconhecê-la em outro processo a título de antecedentes. No entanto, à luz do entendimento preconizado, já se mostra razoável e adequado que a condenação em 1º grau se mostre suficiente para tal valoração, ainda que não possibilite a execução imediata da pena.

Consoante trechos da notícia publicada no próprio site do STF:

“A maioria dos ministros seguiu o voto do relator, ministro Edson Fachin, no sentido da ausência de ilegalidade, abusividade ou teratologia na decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que aplicou ao caso a atual jurisprudência do STF, que permite o início do cumprimento a pena após confirmação da condenação em segunda instância5.

O ministro Alexandre de Moraes acompanhou o relator. Segundo seu voto, em quase 30 anos desde a edição da Constituição Federal de 1988, apenas durante sete anos, entre 2009 e 2016, o STF teve entendimento contrário à prisão em segunda instância. “Não há nenhuma ilegalidade ou abuso de poder que permitiria a concessão do habeas corpus”, afirmou. “A decisão do STJ, ao acompanhar e aplicar a decisão do Supremo, agiu com total acerto. A presunção de inocência, todos sabemos, é uma presunção relativa”.

Seguindo os fundamentos do relator, o ministro Roberto Barroso destacou os efeitos negativos trazidos pela posição contrária, adotada pelo STF entre 2009 até 2016, sobre o tema da prisão provisória, que, a seu ver, incentivou a interposição infindável de recursos protelatórios para gerar prescrição, impôs a seletividade do sistema ao dificultar a punição dos condenados mais ricos e gerou descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade. Barroso citou números segundo os quais a reversão do resultado em favor do réu em recursos interpostos nos tribunais superiores chega a pouco mais de 1% do total. “É ilógico, a meu ver, moldar o sistema com relação à exceção e não à regra”, afirmou.

Também para o ministro Luiz Fux, a presunção de inocência prevista no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal não impede a execução provisória da pena. “A presunção de inocência cessa a partir do momento em que, por decisão judicial, se considera o réu culpado”, disse. A necessidade de trânsito em julgado para que se possa efetivar uma prisão, segundo Fux, não está contemplada na Constituição. “Interpretar de forma literal o dispositivo, é negar o direito fundamental do Estado de impor a sua ordem penal”.

A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, manteve a posição que manifestou em 2009, quando o Tribunal mudou seu entendimento para adotar a necessidade de trânsito em julgado para se admitir a execução da pena. Segundo ela, o que se discute nesse tema é a chamada antecipação da execução penal quando já esgotados os recursos ordinários. “O processo penal possui fases, e o que se admite no caso é que haja também uma gradação na forma de execução”, observou.

O cumprimento da pena após o duplo grau de jurisdição não representa, no seu entendimento, ruptura ou afronta ao princípio da não culpabilidade, uma vez que atende ao desafio de não criar um déficit judicial sem prejudicar as garantias da ampla defesa. “Admitir que a não culpabilidade impossibilita qualquer atuação do Estado pode levar à impunidade”, afirmou, observando que se, por um lado, a Constituição Federal assegura direitos fundamentais, por outro garante a efetividade do direito penal e da aplicação da pena de prisão.

Assim, a nosso sentir, a existência de condenação não definitiva importa em maus antecedentes, sem que isso importe em afronta ao princípio da presunção da inocência. Com efeito, o agravamento da pena em virtude de condenação anterior é uma das mais efetivas maneiras de se aplicar o princípio constitucional da individualização das penas, consubstanciando a isonomia na dimensão material e, portanto, Justiça.

Justifica-se esta assertiva, na medida em nenhum direito fundamental é absoluto. Tampouco são absolutos os princípios constitucionais.

Na vexata quaestio posta, ao princípio da presunção da inocência se opõe o princípio da isonomia, na medida em que não se pode dedicar ao sujeito que já foi objeto de uma sentença penal condenatória, ainda que sujeita a reexame por força de recurso voluntário, o mesmo tratamento dispensado ao réu que ostenta uma FAC imaculada.

Neste ponto, impõe-se tecer breves considerações a respeito da ponderação dos valores e princípios constitucionais em colisão.

Em sede de colisão de direitos fundamentais podemo-nos deparar com duas situações:

(a) colidência entre direitos fundamentais diversos exercitados por titulares diferentes (colisão entre direitos fundamentais em sentido estrito) e;

(b) colisão entre interesses individuais tutelados como direitos fundamentais e outros valores e interesses comunitários igualmente abrigados na Constituição.

A solução destes conflitos pode processar-se de duas formas:

(a) através da atuação do legislador infraconstitucional, impondo previamente restrição a um dos direitos fundamentais, desde que a Lei Fundamental contemple expressa ou tacitamente autorização (reserva legal) e seja preservado o núcleo essencial do direito limitado e;

(b) uma vez ausente a restrição legislativa prévia, pela interveniência do Poder Judiciário, mediante balanceamento, no caso concreto (peso específico), dos direitos fundamentais que se apresentam em discrepância, já que estes, em regra, são outorgados por normas jurídicas com características de princípios.

Ao ponderar direitos fundamentais em colisão, o intérprete-aplicador deverá, inicialmente, atentar para o Tatbestand (âmbito de proteção)6 dos direitos envolvidos, pois pode acontecer que a forma de exercício de determinado direito fundamental se encontre fora de seus limites imanentes, hipótese em que o confronto será apenas aparente.

Superado este exame preliminar, na eventualidade de persistir o confronto, então, deverá o intérprete-aplicador lançar mão, dentre outros, dos princípios doutrinários da unidade da constituição (enfoque contextualizado das normas em discrepância, considerando que a Constituição existe como um todo), da concordância prática (harmonização dos direitos fundamentais e valores constitucionais através de um juízo de ponderação voltado para a concretização e preservação máxima dos mesmos) e da proporcionalidade (efetivação, no caso concreto, do princípio da concordância prática).

Àqueles que opõem objeções à ponderação dos valores e princípios constitucionais em colisão, alegando que se acha adstrita ao arbítrio do sujeito que a realiza, dando margem ao subjetivismo e ao decisionismo judicial, Robert Alexy7 contra-argumenta com argúcia: “uma ponderação é racional se o enunciado de preferência ao qual conduz pode ser fundamentado racionalmente”.

Assim, de fato, à luz da jurisprudência atual, quando o réu está simplesmente respondendo a outro inquérito ou processo, deve assumir um “peso” maior o princípio da presunção da inocência (presunção de não culpabilidade). É que neste caso, eventual juízo negativo dos seus antecedentes restará ancorado em elementos de convicção precários.

Contudo, emerge imperiosa convicção de que o princípio da isonomia deve prevalecer sobre o princípio da presunção da inocência na hipótese da prolação de sentença penal condenatória recorrível. Afinal, já há uma manifestação do Poder Judiciário sobre o mérito, com percuciente análise da materialidade e autoria que importa em evidente reconhecimento da culpa e, portanto, merece ser prestigiada e valorada em outros processos.

Corroborando o entendimento ora esposado, saliente-se alguns fragmentos da manifestação oral do ministro Luís Roberto Barroso8 no supramencionado HC:

“A esse propósito, como lembrou a Ministra Ellen Gracie em 2009, foi reiterado pelo saudoso Ministro Teori Zavascki em 2016, lembrado por mim e repetido pelo Ministro Gilmar Mendes aqui em plenário no mesmo julgamento, praticamente nenhum país civilizado do mundo exige isso. Em diversos países a execução da condenação se dá após o 1º grau e no restante se dá em 2º grau. Mais que isso, os principais documentos e convenções de direitos humanos do mundo tampouco exigem o trânsito em julgado9.

A presunção de inocência é um princípio, e não uma regra absoluta, que se aplique na modalidade tudo ou nada. Por ser um princípio, ela precisa ser ponderada com outros princípios e valores constitucionais. Princípios, ao contrário das regras, não descrevem condutas, mas apontam para estados ideais a serem alcançados, como justiça, dignidade humana, eficiência. São mandados de otimização dirigidos ao intérprete, que deve aplicá-los na maior extensão possível, levando em conta outros princípios e a realidade fática. Princípios, portanto, devem ser aplicados, em muitas situações, em harmonia, em concordância prática ou em ponderação com outros princípios e mandamentos constitucionais. Ponderar significa atribuir pesos, fazer concessões reciprocas e, no limite, realizar escolhas sobre qual princípio vai prevalecer numa situação concreta.

Quais os princípios em jogo na presente discussão? De um lado, o princípio da inocência ou da não culpabilidade; de outro lado, o da efetividade mínima do sistema penal, que abriga valores importantes como a realização da justiça, a proteção dos direitos fundamentais, o patrimônio público e privado, a probidade administrativa.

Quando a investigação começa, o princípio da presunção de inocência tem o seu peso máximo. Com o recebimento da denúncia, este peso diminui. Com a sentença condenatória de 1º grau, diminui ainda mais. Quando da condenação em 2º grau, o equilíbrio se inverte: os outros valores protegidos pelo sistema penal passam a ter mais peso do que a presunção de inocência e, portanto, devem prevalecer.

Segundo os dados da Assessoria de Gestão Estratégica do STF, referente ao período de 1º.01.2009 até 19.04.2016, foram apresentados 25.707 recursos extraordinários ou agravos em recursos extraordinários em matéria criminal. Desse total, o percentual de recursos acolhidos foi de 2,93%, abrangendo tanto os recursos providos em favor da defesa quanto da acusação. Quando se vai verificar o percentual de recursos extraordinários acolhidos em favor dos réus, o número cai para 1,12%. Quando se vai examinar o percentual de absolvições, ele é de irrisórios 0,035% dos casos. Vale dizer: em mais de 25 mil recursos extraordinários, houve tão somente 9 (nove) casos de absolvição. Os outros casos de provimento se referiam à substituição da pena privativa de liberdade por medida alternativa (o que é relevante, pois afeta a liberdade), mudança de regime, progressão de regime, dosimetria e prescrição. Ao tema da prescrição se voltará mais adiante.

Veja-se, então, em resumo: aguardar-se o trânsito em julgado do recurso extraordinário produz impacto de 1,12% em favor da defesa, sendo que apenas 0,035% de absolvições. Subordinar todo o sistema de justiça a índices deprimentes de morosidade e ineficiência para produzir este resultado é uma opção que não passa em nenhum teste de razoabilidade ou de racionalidade.

Eu entendo e respeito quem tem o entendimento de que bastaria um caso de reforma para justificar a exigência do trânsito em julgado. Mas por essa lógica, deveríamos fechar todos os aeroportos, porque apesar de todos os esforços, há uma margem mínima de acidentes. O mesmo vale para a indústria automobilística, para a construção civil e quase todas as atividades produtivas. Viver envolve riscos. E tornar a vida infinitamente pior não é capaz de eliminá-los.

Segundo pesquisa desenvolvida pela Coordenadoria de Gestão da Informação do STJ, sob a coordenação do Ministro Rogerio Schietti, os números em relação aos recursos especiais perante o Superior Tribunal de Justiça também infirmam a necessidade de se tornar a mudar a jurisprudência firmada nessa matéria. A pesquisa foi realizada, a meu pedido, entre 1º.09.2015 a 31.08.2017, envolvendo as decisões das duas Turmas Criminais do Tribunal (a 5ª e a 6ª). Foram pesquisadas 68.944 decisões proferidas em recursos especiais ou em agravos em recurso especial.

Pois bem: o percentual de absolvição em todos estes processos foi de 0,62%. Em 1,02% dos casos, houve substituição da pena restritiva de liberdade por pena restritiva de direitos. Os outros percentuais foram: prescrição – 0,76%; diminuição da pena – 6,44%; diminuição da pena de multa – 2,32%; e alteração de regime prisional – 4,57%.

Veja-se, então: a soma dos percentuais de absolvição e de substituição da pena é de 1,64%, revelando o baixo número de decisões reformadas que produzem impacto sobre a liberdade dos condenados. Diante desses dados, é ilógico, com todas as vênias de quem pensa diferentemente, moldar o sistema em função da exceção, e não da regra.

Sepultando qualquer dúvida, traga-se à baila excertos do voto do ministro Luiz Fux10, também ilustre Professor Titular de Processo da gloriosa UERJ, no supracitado HC 152.752:

“O princípio da presunção de inocência encontra-se insculpido em um sistema unitário, devendo harmonizar-se com outras normas e garantias também previstas na Constituição, cujos conteúdos se delimitam mutuamente.

Cumpre, ainda, acrescentar uma análise da história de interpretação do princípio da presunção de inocência na jurisprudência do STF. Ela se divide em três períodos: de 1988 até 2009; de 2009 a 2016; desde 2016 até o momento atual. As sucessivas alterações deveram-se: 1) à influência do garantismo na interpretação ampliativa, em 2009; 2) à influência do consequencialismo na interpretação restritiva, em 2016.

Concluiu-se, a partir das citações que informaram o julgamento do HC 126.292, que para a proteção dos direitos fundamentais do homem e defesa dos valores democráticos, o princípio da presunção de inocência, ou de não-culpabilidade, demanda, tão somente, que sejam produzidas provas da culpa do acusado, como condição para sua condenação, não significando, portanto, que alguém, somente por ser presumido inocente, não possa ser submetido à privação de liberdade.

Mais ainda: verificou-se, naquele julgamento, que na maioria dos países democráticos, o título condenatório constitui fundamento suficiente para o encarceramento, dotado de força legitimadora per se, sem submetê-lo a fundamentos cautelares característicos da prisão que antecede o julgamento de mérito.

O salutar amadurecimento institucional do país recomenda a interpretação da presunção de inocência sem sobrepô-lo a todos os demais princípios e direitos fundamentais inscritos na Lei Maior.

De acordo com as lições de PATRÍCIA PERRONE CAMPOS MELLO (Precedentes: O Desenvolvimento Judicial do Direito no Constitucionalismo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 233 e seguintes), o abandono de precedentes jurisprudenciais nos sistemas de common law se dá, basicamente, em virtude de incongruência sistêmica ou social. Nesta última hipótese, a possibilidade de overruling pode advir de obsolescência decorrente de mutações sociais. In verbis:

“[…] A incongruência social alude a uma relação de incompatibilidade entre as normas jurídicas e os standards sociais; corresponde a um vínculo negativo entre as decisões judiciais e as expectativas dos cidadãos. Ela é um dado relevante na revogação de um precedente porque a preservação de um julgado errado, injusto, obsoleto até pode atender aos anseios de estabilidade, regularidade e previsibilidade dos técnicos do direito, mas aviltará o sentimento de segurança do cidadão comum. Este será surpreendido sempre que não houver uma convergência plausível entre determinada solução e aquilo que seu bom senso e seus padrões morais indicam como justo, correto, ou, ao menos, aceitável, à luz de determinados argumentos, porque são tais elementos que ele utiliza, de boa-fé, na decisão sobre suas condutas. Para o leigo, a certeza e a previsibilidade do direito dependem de uma correspondência razoável entre as normas jurídicas e as normas da vida real. Em virtude disso, embora para os operadores do Direito, justiça e segurança jurídica possam constituir valores em tensão, para os jurisdicionados em geral, devem ser minimamente convergentes”.

A mesma lógica é aplicável à ordem jurídica brasileira e, com ainda maior razão, ao presente caso. Permissa venia, impõe-se considerar que o acórdão prolatado no julgamento do HC 84.079 reproduziu compreensão que, embora adequada aos albores da redemocratização, tornou-se um excesso neste momento histórico de instituições politicamente amadurecidas e submetidas ao filtro constitucional em suas ações, procedimentos e decisões.

Já é possível, portanto, revolver temas antes intocáveis, sem que se incorra na pecha de atentar contra uma democracia que – louve-se isto sempre e sempre – já está solidamente instalada. A presunção de inocência não deve ser tida como absoluta, cedendo ante requisitos qualificados como os exigidos para a condenação em segundo grau de jurisdição.

Demais disso, é de meridiana clareza que as cobranças da sociedade civil de ética no manejo da coisa pública se acentuaram gravemente. Para o cidadão, hoje é certo que a probidade é condição inafastável para a boa administração pública e, mais do que isso, que a corrupção e a desonestidade são as maiores travas ao desenvolvimento do país.

Em outras palavras, ou bem se alinha a interpretação da presunção de inocência com a unidade da Constituição e do âmbito normativo vigente, ou se anulará a força normativa do sistema jurídico, mediante análise puramente formalista, divorciada da realidade social que pretende regular.

Não atualizar a compreensão do indigitado princípio, data máxima venia, é desrespeitar a sua própria construção histórica, expondo-o ao vilipêndio dos críticos de pouca memória.

A verdade é que a jurisprudência do STF nesta matéria gera fenômeno similar ao que os juristas norteamericanos ROBERT POST e REVA SIEGEL (Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash, disponível no sítio papers.ssrn.com/abstract=990968) identificam como backlash, expressão que se traduz como um forte sentimento de um grupo de pessoas em reação a eventos sociais ou políticos. É crescente e consideravelmente disseminada a crítica, no seio da sociedade civil, à resistência do Poder Judiciário na compreensão da presunção de inocência em aparente descaso com a realidade subjacente, de elevada criminalidade, em todas as camadas sociais e, especialmente, nas altas esferas do Poder político.

Obviamente, o Supremo Tribunal Federal não pode renunciar à sua condição de instância contramajoritária de proteção dos direitos fundamentais e do regime democrático. No entanto, a própria legitimidade democrática da Constituição e da jurisdição constitucional depende, em alguma medida, de sua responsividade à opinião popular.

POST e SIEGEL, debruçados sobre a experiência dos EUA – mas tecendo considerações aplicáveis à realidade brasileira –, sugerem a adesão a um constitucionalismo democrático, em que a Corte Constitucional esteja atenta à divergência e à contestação que exsurgem do contexto social quanto às suas decisões.

A toda evidência, não se está a defender uma obediência ou submissão irracional às demandas populares ou midiáticas. O que se propõe é um movimento da Corte em direção a compreensões juridicamente fundamentadas na Constituição, voltadas à concretização do que PABLO LUCAS VERDÚ chamara de sentimento constitucional, de maneira a fortalecer a própria legitimidade democrática do constitucionalismo.

Qual seria, então, o alcance do princípio da presunção de inocência? O que a Constituição garante ao indivíduo, ao afirmar que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória?

Juridicamente, o conceito de “presunção” está associado ao de prova. Cuida-se de dispensar a prova de determinado fato, que se presume verdadeiro com base na sua aparência. A presunção de inocência, portanto, significa que não se exige que alguém prove que é inocente. O acusado, portanto, não pode ser obrigado a provar que é inocente, porque a inocência se presume. Cuida-se, porém, diante da unidade do Direito, de presunção juris tantum, ou seja: presume-se que o réu é inocente, mas admite-se prova em contrário.

Daí porque parte da significação do princípio em análise liga-o à sua eficácia como regra processual, voltada a “garantir que o ônus da prova cabe à acusação e não à defesa” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 12ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 46. Ou seja: “para quebrar tal regra [da presunção de inocência], torna-se indispensável que o Estado-acusação evidencie, com provas suficientes, ao Estado-juiz a culpa do réu” (NUCCI, 2012, p. 46).

Considera-se a presunção de inocência um “desdobramento do princípio do devido processo legal, no qual são assegurados o contraditório, a ampla defesa e que ninguém seja privado de sua liberdade sem o devido processo legal (artigo 5º, LIV e LV, da CF/88)” (SCHMITT, Ricardo Augusto. Prisões provisórias: espécies, natureza e alcance. In: MOREIRA, Rômulo (Org.). Leituras complementares de processo penal. Salvador: Editora Jus Podium, 2008, p. 327/342).

Por fim, cumpre pontuar argumentos associados à análise econômica do direito, em especial sob o prisma dos incentivos e desestímulos aos comportamentos dos indivíduos.

São vários os casos em que a interpretação ampliativa do princípio da presunção de inocência incentivou o comportamento hostil da defesa relativamente ao princípio da razoável duração dos processos e da prestação jurisdicional em tempo oportuno.

Essa jurisprudência, somada a uma compreensão também benevolente no que tange à restrição da incidência do princípio da boa-fé processual na seara penal, conduz à injustiça, à ineficácia das normas penais, quando não à ineficiência do ordenamento jurídico como um todo e ao reforço de uma cultura de desrespeito às normas em geral, numa sociedade de absoluta anomia, que deve ser evitada pelo Poder Judiciário, em seu papel de pacificação social.”

Ante o exposto, imperioso constatar a necessidade de releitura da Súmula 444 do STJ, permitindo que condenações criminais, mesmo que em 1º grau, possam ser valoradas na dosimetria de outros processos. Tal conclusão encontra alicerces na atual concepção do princípio da presunção de inocência, consagrada na recente jurisprudência do STF, bem como nos princípios da isonomia na vertente substancial e da efetiva individualização da pena. Assim, a exasperação da pena não pode se lastrear em inquéritos policiais e ações penais em andamento, isto é, que ainda estejam na fase de instrução e sem o reconhecimento jurisdicional de culpa.

 

 

 

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2 RE 591.054. Na ocasião, por 6 votos a 4, o plenário do STF entendeu que “[…] ante o princípio constitucional da não culpabilidade, inquéritos e processos criminais em curso são neutros na definição dos antecedentes criminais”.

3 Conforme publicado no Informativo 791 do STF: “Princípio da não-culpabilidade: processos em curso e maus antecedentes. O Plenário, em conclusão de julgamento e por maioria, concedeu, em parte, a ordem em dois “habeas corpus” para determinar ao juízo das execuções penais que proceda ao novo cálculo da pena imposta aos pacientes, devendo considerar como circunstâncias negativas, na primeira fase da dosimetria, somente a culpabilidade e as consequências do crime. Em ambos os casos, discutia-se a possibilidade de inquéritos policiais e ações penais sem trânsito em julgado poderem ser considerados como elementos caracterizadores de maus antecedentes — v. Informativo 538. Prevaleceu o voto do Ministro Teori Zavascki. Salientou recente posicionamento do STF a respeito do tema, firmado no julgamento do RE 591.054/SC (DJe de 25.2.2015), com repercussão geral, no sentido da impossibilidade de se considerar esses elementos como maus antecedentes para fins de dosimetria da pena. Salientou, ainda, que no HC 94.620/MS, também haveria outra discussão, a respeito da admissibilidade de alegações genéricas — de que o agente possuiria conduta inadaptada ao convívio social e personalidade voltada para o crime, e de que as circunstâncias e motivos seriam deploráveis — embasarem a reprimenda do paciente. Reputou que essa fundamentação genérica também não poderia ser considerada para esse fim. Os Ministros Ricardo Lewandowski (Presidente e relator) — que reajustou seu voto —, Teori Zavascki, Edson Fachin e Rosa Weber, embora ressalvassem seu entendimento pessoal, acompanharam a orientação firmada no recurso com repercussão geral, em respeito ao princípio da colegialidade. Vencidos a Ministra Cármen Lúcia e o Ministro Luiz Fux, que denegavam a ordem em ambos os casos. Por fim, o Tribunal, tendo em conta as manifestações proferidas e o fato de se tratar de “habeas corpus”, pronunciou-se no sentido da possibilidade de rever a tese firmada no precedente em repercussão geral, em recurso extraordinário a ser oportunamente submetido à apreciação da Corte. HC 94620/MS rel. Min. Ricardo Lewandowski, 24.6.2015. (HC-94620); HC 94680/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 24.6.2015. (HC-94680)”.

4 “CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado” (HC 126.292, Tribunal Pleno, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 17/02/2016).

“MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. ART. 283 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. EXECUÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE APÓS O ESGOTAMENTO DO PRONUNCIAMENTO JUDICIAL EM SEGUNDO GRAU. COMPATIBILIDADE COM O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. ALTERAÇÃO DE ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO DO HC 126.292. EFEITO MERAMENTE DEVOLUTIVO DOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS E ESPECIAL. REGRA ESPECIAL ASSOCIADA À DISPOSIÇÃO GERAL DO ART. 283 DO CPP QUE CONDICIONA A EFICÁCIA DOS PROVIMENTOS JURISDICIONAIS CONDENATÓRIOS AO TRÂNSITO EM JULGADO. IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS GRAVOSA. INAPLICABILIDADE AOS PRECEDENTES JUDICIAIS. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 283 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. MEDIDA CAUTELAR INDEFERIDA. 1. No julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP, a composição plenária do Supremo Tribunal Federal retomou orientação antes predominante na Corte e assentou a tese segundo a qual “A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal”. 2. No âmbito criminal, a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo aos recursos extraordinário e especial detém caráter excepcional (art. 995 e art. 1.029, § 5º, ambos do CPC c/c art. 3º e 637 do CPP), normativa compatível com a regra do art. 5º, LVII, da Constituição da República. Efetivamente, o acesso individual às instâncias extraordinárias visa a propiciar a esta Suprema Corte e ao Superior Tribunal de Justiça exercer seus papéis de estabilizadores, uniformizadores e pacificadores da interpretação das normas constitucionais e do direito infraconstitucional. 3. Inexiste antinomia entre a especial regra que confere eficácia imediata aos acórdãos somente atacáveis pela via dos recursos excepcionais e a disposição geral que exige o trânsito em julgado como pressuposto para a produção de efeitos da prisão decorrente de sentença condenatória a que alude o art. 283 do CPP. 4. O retorno à compreensão emanada anteriormente pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de conferir efeito paralisante a absolutamente todas decisões colegiadas prolatadas em segundo grau de jurisdição, investindo os Tribunais Superiores em terceiro e quarto graus, revela-se inapropriado com as competências atribuídas constitucionalmente às Cortes de cúpula. 5. A irretroatividade figura como matéria atrelada à aplicação da lei penal no tempo, ato normativo idôneo a inovar a ordem jurídica, descabendo atribuir ultratividade a compreensões jurisprudenciais cujo objeto não tenha reflexo na compreensão da ilicitude das condutas. Na espécie, o debate cinge-se ao plano processual, sem reflexo, direto, na existência ou intensidade do direito de punir, mas, tão somente, no momento de punir. 6. Declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, com interpretação conforme à Constituição, assentando que é coerente com a Constituição o principiar de execução criminal quando houver condenação assentada em segundo grau de jurisdição, salvo atribuição expressa de efeito suspensivo ao recurso cabível. 7. Medida cautelar indeferida” (ADC 43-MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Edson Fachin, j. 05/10/2016).

“CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). ACÓRDÃO PENAL CONDENATÓRIO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. JURISPRUDÊNCIA REAFIRMADA. 1. Em regime de repercussão geral, fica reafirmada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. 2. Recurso extraordinário a que se nega provimento, com o reconhecimento da repercussão geral do tema e a reafirmação da jurisprudência sobre a matéria” (ARE 964.246, Tribunal Pleno, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 10/11/2016).

6 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 136.

7 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. 3.ª Ed. Madrid: Centro de estúdios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 159.

8 Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/anotacoes-manifestacao-oral-barroso.pdf e http://luisrobertobarroso.com.br/votos-e-decisoes/, último acesso em 14/04/2018.

9 Declaração Universal dos Direitos Humanos (Art. 11° – 1. Toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas); Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Art. 6° – Direito a um processo equitativo – 2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada); Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Art. 48 – Presunção de inocência e direitos de defesa – 1. Todo o arguido se presume inocente enquanto não tiver sido legalmente provada a sua culpa); Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (Art. 7.º – 1. Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja apreciada. Esse direito compreende: b) O direito de presunção de inocência, até que a sua culpabilidade seja estabelecida por um tribunal competente); Declaração Islâmica dos Direitos Humanos (V – Direito a Julgamento Justo – Ninguém será considerado culpado de ofensa e sujeito à punição, exceto após a prova de sua culpa perante um tribunal jurídico independente); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Art.14 – §2. Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa); Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica ( Art. 8º – Garantias judiciais – 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa).

10 Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=374738, último acesso em 14/04/2018.