Rogério Studart

Roberto Alvarez

O mundo passa por uma série de desafios que se sobrepõem: uma crise ambiental já em fase de emergência climática, um aumento da desigualdade e retrocessos sociais, riscos geopolíticos em meio a um retrocesso do multilateralismo, uma pandemia inacabada e novas possíveis crises sanitárias, uma tendência de reversão da globalização que pode se tornar irreversível nos próximos anos.
Estes desafios continuarão a provocar inseguranças e a aumentar a pressão por transições forçadas. Neste contexto, promover o desenvolvimento requererá entender a direção dos ventos, saber quando se deve remar a favor ou contra a maré, desenhar e implementar estratégias envolvendo distintos atores. Esta coluna pretende refletir sobre estes temas. Este primeiro texto, assinado com Roberto Alvarez, diretor do <a href="https://www.thegfcc.org/">GFCC</a>, trata sobre um inadiável tema: a transição energética.
Há um <a href="https://www.mckinsey.com/~/media/McKinsey/Industries/Oil%20and%20Gas/Our%20Insights/Global%20Energy%20Perspective%202022/Global-Energy-Perspective-2022-Executive-Summary.pdf">horizonte enorme para inovação em energia</a> e é nisso que a Europa, os Estados Unidos, a China, o Japão e outros apostam. A energia do futuro será limpa (descarbonizada), em grande parte gerada de forma distribuída e digital – isto é, habilitada pelo uso de tecnologias digitais para o controle e ajuste da demanda e oferta em tempo real nos sistemas de geração, distribuição e transmissão. A cidade do futuro será elétrica, assim como a mobilidade urbana e nacional. As matrizes energéticas serão mais plurais, combinando diferentes fontes de geração. No médio e longo prazo devemos esperar avanços até mesmo na fusão nuclear, a fonte sustentável definitiva.
Poucos países podem beneficiar-se desta transição como o Brasil. Nas últimas décadas no país, expandiu-se rapidamente a geração solar e eólica – aproveitando-se de um avanço da tecnologia <a href="https://rameznaam.com/2020/05/14/solars-future-is-insanely-cheap-2020/">para além das expectativas de muitos observadores qualificados</a>. Em 2022, a <a href="https://www.gov.br/pt-br/noticias/energia-minerais-e-combustiveis/2022/04/brasil-sobe-para-a-sexta-posicao-em-ranking-internacional-de-capacidade-de-energia-eolica">capacidade de geração eólica</a> chegou a 21 GW de potência instalada, enquanto a solar atingiu a marca de 14 GW, <a href="https://www.cnnbrasil.com.br/business/geracao-solar-no-brasil-atinge-14-gw-potencia-equivalente-a-usina-de-itaipu/">igualando a usina de Itaipu</a>.
Com uma <a href="https://www.epe.gov.br/pt/abcdenergia/matriz-energetica-e-eletrica">matriz energética sustentável</a>, uma larga experiência com energias limpas e uma história de empreendedorismo no setor, “esverdear” ainda mais e modernizar a matriz energética pode ser parte fundamental para <a href="https://www.wri.org/insights/going-low-carbon-can-help-brazil-build-back-better">um novo eixo de crescimento, de geração de emprego, e desenvolvimento para a economia brasileira</a>.
O Brasil principalmente pode e deve combinar transição energética com inovação – aliás, só poderá ter sucesso na primeira se avançar na segunda –, aproveitando os novos modelos descentralizados e digitais para energia que estão surgindo. E deve ousar na produção de novos combustíveis – como por exemplo o <a href="https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/05/17/biogas-aumenta-sua-relevancia-na-matriz-energetica-do-brasil.ghtml">biogás</a>, que já está crescendo muito no país, e o <a href="https://canaltech.com.br/inovacao/brasil-esta-mais-perto-de-comecar-a-produzir-hidrogenio-verde-215327/">hidrogênio verde</a>, que apresenta enorme potencial para a <a href="https://www.irena.org/newsroom/pressreleases/2022/Jan/Hydrogen-Economy-Hints-at-New-Global-Power-Dynamics">exportação</a> –, especialmente depois que a invasão russa à Ucrânia ampliou o desejo, sobretudo na <a href="https://www.rechargenews.com/energy-transition/eu-plan-to-import-vast-amounts-of-green-hydrogen-from-north-africa-makes-little-sense-study/2-1-1220081">Europa</a>, de aumentar sua segurança geopolítica sem reverter o esforço de descarbonização.
Para isso, o país precisa ter estratégia, planejar, desenvolver tecnologias, promover, agregar projetos, e transformá-los em parte de um programa articulado de desenvolvimento – conectando ciência e tecnologia, diplomacia econômica, inserção internacional, formação da força de trabalho, avanços na regulação e assim por diante. Precisará atacar simultaneamente dois grandes gargalos: a geração de pipelines de projetos de empreendimentos de energia e a promoção da inovação em tecnologias e modelos de negócios.
No passado, as estatais predominaram no desenvolvimento de tecnologia e soluções para energia no Brasil. Este é um novo momento. O país tem empreendedores e empresas resilientes que podem levar adiante uma nova fase de desenvolvimento do setor, com mais empreendimentos voltados para o futuro, de forma conectada com o mundo.
Paradoxalmente, para que o setor privado brasileiro prospere neste processo, são fundamentais avanços na regulação e na ação pública. Há que se reconhecer que, no primeiro caso, esses avanços foram promovidos, por exemplo, com a <a href="https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=342518">Resolução Normativa 482/2012 da Aneel</a> que regulamentou a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/geracao-distribuida">geração distribuída</a>, permitindo a criação de novos mercados e o surgimento de novos empreendimentos focados em energias renováveis.
Mas há mais por fazer, como o aprimoramento e expansão da <a href="https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/tarifas/tarifa-branca/perguntas-frequentes-sobre-tarifa-branca">tarifa branca</a>, habilitando a tarifação horária no futuro, que pode deslanchar uma nova era de inovação, dar mais liberdade aos consumidores e produtores, criar mercados e apontar para a digitalização da energia.
É especialmente importante evitar retrocessos, com escolhas que não obedecem a racionalidade econômica – como por exemplo a lei recente que <a href="https://apublica.org/2022/02/dinheiro-publico-financia-poluicao-por-carvao-e-destruicao-ambiental-no-sul-do-pais/">mantém os incentivos à compra e geração de energia a partir do carvão</a>. Evidente que o Estado deve atentar para o desenvolvimento e o futuro das economias locais – principal justificativa para a lei. Essa preocupação deveria, contudo, ser voltada para a construção de futuro, com foco na inovação, na transição dessas economias, no desenvolvimento de novas competências e na requalificação da força de trabalho.
Ainda é preciso aprimorar outro tipo de ação pública, voltada a mobilizar os empreendedores, nacionais e estrangeiros. E ela requer uma nova “conversa”, superando a verdadeira <a href="https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/04/23/andre-lara-resende-obsessao-em-atar-as-maos-do-estado-paralisa-o-brasil-ha-tres-decadas.ghtml">obsessão em atar as mãos do Estado</a>. Parte dela se associa ao financiamento dos investimentos necessários. Aqui há desafios antigos e, mais especialmente, novos.
Por exemplo, <a href="http://www.gesel.ie.ufrj.br/app/webroot/files/publications/36_tdse_104.pdf">investimentos </a>no setor de energia historicamente se ligam à criação ou expansão de ativos capital-intensivos, com altos custos afundados (sunk costs) e de longo prazo de maturação dos investimentos e de retorno. A estes “velhos” desafios se somam os de financiar <a href="https://www.strategyand.pwc.com/br/pt/relatorios/os-desafios-do-setor-el-25c3-25a9trico-brasileiro.pdf">o setor de energia do futuro</a>. Nele, grande parte dos investimentos necessários estão associados a projetos de menor escala, mas com enorme potencial de inovação <a href="https://www.forbes.com/sites/energyinnovation/2019/04/22/renewable-energy-job-boom-creating-economic-opportunity-as-coal-industry-slumps/?sh=5de3de3a3665">e criação de empregos verdes</a>. É o caso dos investimentos associados à energia limpa decentralizada, mas também nas áreas de digitação e conectividade, e inovação em tecnologias e processos.
Mesmo em países com sistemas financeiros sofisticados e integrados, é escassa a oferta de financiamento com prazos e custos apropriados. Os instrumentos de política, como os bancos públicos, e especialmente os de desenvolvimento, podem ajudar muito, como um <a href="https://global.oup.com/academic/product/the-future-of-national-development-banks-9780198827948">estudo recente</a> demonstra. Mesmo em economias desenvolvidas, estes bancos apoiam a originação e agregação de projetos em pipelines, e criam pontes para a captação de capital especializado, no mercado nacional e internacional. Mas também ajudam <a href="https://valor.globo.com/opiniao/coluna/recuperacao-com-uma-infraestrutura-sustentavel.ghtml">desenvolvendo instrumentos e mercados, pilotando modelos, e acelerando o crescimento do setor de finanças verdes</a>. É preciso que tenham a capacidade (e o mandato) para entrar rápido quando as oportunidades se oferecerem e – o que é importantíssimo! – saírem quando os agentes e mercados privados começarem a suprir estas necessidades.
São em momentos de crises globais que muitos projetos individuais e nacionais foram lançados, e deles advieram caminhos de prosperidade depois admirados. Foi o caso dos Estados Unidos no começo do século passado, da Europa e do Japão no pós-Segunda Guerra, das novas economias emergentes asiáticas nos turbulentos anos 1980 e 1990. O Brasil já perdeu muitas oportunidades, mas agora tem mais uma chance de redefinir sua estratégia de crescimento e investimentos, e deslanchar um novo modelo de desenvolvimento. Em um momento de crise social e econômica sem precedentes, esta redefinição nunca foi tão imprescindível e urgente. Será preciso fazer escolhas. Escolher o futuro frente ao passado deveria estar no topo da lista.

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JOTA

Para que o setor privado prospere neste processo, são fundamentais avanços na regulação e ação pública

Transição energética: oportunidades para o Brasil?

País já perdeu muitas oportunidades, mas ganha uma nova chance de redefinir estratégia de crescimento com a transição energética