Rogério Studart

Como mostra claramente um recente <a href="https://unctad.org/system/files/official-document/tdr2021-update1_en.pdf">relatório das Nações Unidas</a>, já vínhamos de um choque gerado pela pandemia, ainda não totalmente digerido, quando explodiu mais um conflito armado, agora no coração da Europa. Iniciado por uma nação estratégica para o mercado de petróleo e gás e com poder nuclear, e outra que faz <a href="https://www.washingtonpost.com/politics/2022/03/08/whom-it-may-concern-nato-is-already-russias-border/">fronteira</a> com membros da Otan, e <a href="https://www.businessinsider.com/russia-assault-ukraine-could-lead-to-famine-in-yemen-2022-3">um dos maiores produtores de grãos no mundo</a>, a invasão russa à Ucrânia imediatamente elevou a temperatura e a pressão nos mercados internacionais.
E assim transformou em pesadelo os problemas que prevalecem desde o início da pandemia — como o desabastecimento de insumos e produtos negociados internacionalmente. O choque de preços reacendeu o dragão inflacionário adormecido, com paralelos (<a href="https://www.ft.com/content/d5d68068-d3d7-4948-a13d-b36e8c2b8339">não totalmente realistas</a>) com os anos 1970, assustando governos, que vêm reagindo com altas de juros. E em um mundo de mercados financeiros altamente alavancados, o medo de juros mais altos é receita para trancos e, especialmente, <a href="https://www.bloomberg.com/news/articles/2022-06-10/everything-in-stock-market-is-being-sped-up-including-the-crash">barrancos</a>.
Se os choques têm sido duros, não se pode ignorar que as rachaduras estavam abertas e visíveis a olhos nus há muito tempo. Por exemplo, o comércio internacional, uma das âncoras da globalização recente, cresceu com <a href="https://www.epi.org/publication/charting-wage-stagnation/">uma estagnação dos salários da maioria dos consumidores americanos</a>. Com isso, natural que o outro lado da moeda fosse um dos seus calcanhares de Aquiles: o aumento do endividamento das famílias e dos Estados Unidos, o “comprador de última instância” do mundo globalizado.
São essas fragilidades que em grande parte explicam porque a <a href="https://www.schroders.com/en/insights/economics/the-global-financial-crisis-10-years-on-six-charts-that-tell-the-story/">crise financeira de 2007-2009</a> tenha tido efeitos tão devastadores: iniciada no coração financeiro dos EUA, Wall Street, ela terminou por gerar ondas de inadimplência entre instituições financeiras, consumidores e empresas, transformando-se rapidamente em uma crise de produção e emprego.
A solução da crise não dirimiu, e acabou por ampliar, as rachaduras. Depois de um breve teste com respostas coordenadas das 20 maiores economias globais, as do G20, os Estados Unidos redescobriram que poderiam sair da crise sem ter de pedir favor a ninguém. E o fez <a href="https://www.eurasiareview.com/25052022-the-loss-of-the-exorbitant-privilege-oped/">abusando de seu “privilégio exorbitante”</a>, direcionando o Fed, seu banco central, a atuar diretamente na compra de ativos “podres” nos balanços dos bancos, inundando o mercado financeiro global de liquidez e dando novo ímpeto à recuperação dos preços de ativos financeiros.
Esta política de <a href="https://www.stlouisfed.org/publications/regional-economist/third-quarter-2017/quantitative-easing-how-well-does-this-tool-work">“quantitative easing”</a> (QE) acabou sendo adotada pela União Europeia, pelo Japão e mesmo, de uma maneira peculiar, pela China. Se o QE permitiu que o mercado de crédito e o consumo se recuperassem, teve evidentes efeitos colaterais, similares ao período que antecedeu a última crise: o perigoso <a href="https://www.weforum.org/agenda/2022/05/what-is-global-debt-why-high/">crescimento de dívidas</a> e uma expansão extraordinária da alavancagem de diversos mercados financeiros.
Mas não param por aqui as rachaduras que, devido à solução inadequada para a crise, o mundo globalizado vem ampliando. Na última década, a <a href="https://www.newyorker.com/news/john-cassidy/pikettys-inequality-story-in-six-charts">desigualdade, outra enorme vulnerabilidade, já vinha crescendo de forma assustadora</a>. Tornou-se assim mais que um problema moral, mas também um grave problema econômico. Enquanto isso, outra emergência era relegada a um segundo plano, <a href="https://www.unep.org/explore-topics/climate-action/facts-about-climate-emergency">a climática</a>. Além de uma ameaça ao futuro de toda vida, trouxe crescentes números de eventos extremos — como incêndios florestais, enchentes, secas, e variações abruptas de temperatura — que afetam produção, ameaçam o valor de ativos no mundo inteiro. E, mais dramaticamente, a mudança do clima expõe o mundo a mais <a href="https://foreignpolicy.com/2022/05/19/climate-change-food-insecurity-hunger-drought/">insegurança alimentar</a> e agrava a demonização política de uma integração comercial que, até pouco tempo, era vista com a fonte de prosperidade global. Esses resultados, creio, são parte do caldo que produz um aumento dos movimentos nacionalistas e antiglobalistas, em geral politicamente extremos.
A solução para todas essas mazelas deveria vir de <a href="https://www.lse.ac.uk/granthaminstitute/wp-content/uploads/2022/05/Financing-the-big-investment-push-in-emerging-markets-and-developing-economies-for-sustainable-resilient-and-inclusive-recovery-and-growth-1.pdf">investimentos maciços</a> em “resiliência e segurança”. Mas o estrondo dos ruídos políticos e a ilusão dos ganhos financeiros impediram uma conversa séria e a coordenação de fluxos de recursos para os destinos apropriados. Neste contexto, frente aos novos choques da pandemia e agora da guerra russa contra a Ucrânia, parece natural que chegamos aonde estamos, num mundo de tempestade perfeita. Difícil neste momento não pensar: e o Brasil, que pode fazer frente a esta tempestade perfeita? Por incrível que pareça, apesar do <a href="https://www.ft.com/content/f56081d7-91f6-4efb-b147-0afcbd9e4019">péssimo momento</a>, nosso país pode e deve navegar esta crise, com pelo menos três mudanças de rumo.
É preciso, antes de qualquer coisa, uma nova visão coletiva sobre o seu futuro, que articule a ação pública e anime os produtores e investidores, ao mesmo tempo que afaste o Brasil de crises alimentar, sanitária e tecnológica. Por exemplo, como ressaltado <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/e-o-brasil-com-isto/transicao-energetica-oportunidades-para-o-brasil-01062022">nesta coluna na semana passada</a>, poucos países têm melhores condições de se beneficiar de investimentos que aumentam sua segurança energética e sua resiliência a mudanças climáticas como o Brasil. Portanto, projetos como um <a href="https://www.gnd-brasil.com/_files/ugd/912c86_601753a18e8a47049a1031111a1d5599.pdf">Green New Deal</a> brasileiro podem – e deveriam – ser seriamente analisados como uma bússola para a recuperação do emprego, da produção e do desenvolvimento nos próximos anos.
Em segundo lugar, é preciso ir para além do <a href="https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/04/23/andre-lara-resende-obsessao-em-atar-as-maos-do-estado-paralisa-o-brasil-ha-tres-decadas.ghtml">debate, polarizado e desatualizado,</a> sobre o papel das políticas públicas em momentos de tempestade como este. Com isso, abre-se espaço para, em torno deste novo eixo, realinhar as prioridades de políticas, de gastos e dos seus instrumentos (o BNDES, por exemplo).
Por fim, urge repensar a inserção internacional do país em um momento que a <a href="https://hbr.org/2022/04/the-state-of-globalization-in-2022">globalização passa por mudanças de rumo</a>. É a hora, por exemplo, de diversificar não só nossa pauta de exportações, como também as parcerias comerciais. E é tempo de repensar nossa integração financeira para atrair mais investimentos e financiamento que se aliem à bússola escolhida para o futuro.

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JOTA

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