Marcos Galileu Dutra

Viviane Muller Prado

Ezequiel Fajreldines dos Santos

A despeito das incertezas, os IPOs seguem o seu caminho: até meados de setembro, os EUA assistiram a 235 operações, somando 100 bilhões de dólares captados, volume que supera a onda das empresas de tecnologia no início da década de 2000.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Com alguns solavancos no percurso, no Brasil as operações também seguem seu curso, com números que chegam a ser surpreendentes quando comparados aos anos anteriores e à luz das circunstâncias atuais.  Algumas operações já foram realizadas e dezenas de outras estão na fila, na expectativa de uma melhor oportunidade.
Estas ofertas acontecem em um cenário de turbulências, que vão além dos impactos mais diretos da pandemia sobre a economia. O retrato é composto também por problemas como a instabilidade política, especialmente por conta das eleições nos EUA. No caso brasileiro, acrescente-se a preocupação com a deterioração do cenário fiscal. Isso para ficar apenas nas grandes questões.
Nessa incerteza generalizada, os ofertantes buscam janelas de oportunidade que facilitem (ou até viabilizem) as distribuições, enquanto os investidores se veem às voltas com a escolha de opções minimamente atraentes, em um ambiente de juros muito baixos. No contexto nacional, o olhar para os números de 2020 permite algumas constatações importantes e sugere reflexões sobre a proteção adequada de investidores, em especial, de varejo.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
A primeira constatação diz respeito ao lado dos ofertantes. A consulta à base de dados da Comissão de Valores Mobiliários – CVM sobre registros de distribuições de ações em 2020 indica 19 operações.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Em oito ocasiões, houve captação de um montante inferior a R$ 1 bilhão, com um caso em que a operação foi de R$ 200 milhões.
Esse perfil de lançamentos é interessante, considerando o histórico nacional. Conforme dados da B3, analisados pelo Núcleo de Mercados Financeiro e de Capitais da FGV Direito SP (MFCap), tomando as ofertas realizadas entre 2005 e 2019, relativos a 278 ofertas públicas de ações (IPOs e follow ons), temos que há apenas 41 que movimentaram menos de R$ 400 milhões. Além dessas, 153 ofertas ficaram entre R$ 400 milhões e R$ 1 bilhão. Por fim, 85 operações atingiram valores acima de R$ 1 bilhão.
Trata-se de uma amostra pequena e colhida em um período atípico, da qual não se pode extrair conclusão definitiva, mas que desperta a velha discussão sobre a viabilização de ofertas menores e o acesso das companhias de médio porte ao mercado de capitais. Os estudos que buscam identificar as causas da falta de presença de empresas de menor porte chegam a pontos já conhecidos.
Pelo lado de quem capta os recursos, frequentemente se mencionam fatores como custos para o ingresso no mercado de capitais (com a própria abertura de capital e as obrigações posteriores de informações periódicas e eventuais como companhias abertas), dificuldades na manutenção do controle acionário pelo fundador, resistências à presença de novos acionistas e administradores, falta de uma cultura de transparência e dificuldades na convivência com uma gestão profissionalizada, dentre outros.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
No caso específico das companhias mencionadas, é importante que esses aspectos tenham sido contornados. Uma outra boa notícia diz respeito aos padrões de governança das empresas que ingressam. Para as 24 novas listagens (ou mudanças de segmento de listagem) observadas na B3 em 2020, descontados os casos de duas companhias (uma que ingressou no Nível 2 e outra no Bovespa Mais), todas as demais aderiram no Novo Mercado.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Ainda assim, não há razões para um otimismo desmesurado. Especialistas apontam para potenciais problemas com algumas operações. Há relatos de casos que “merecem atenção”, com “excessos”, até mesmo com alusão a certos setores: construção civil, farmácias e empresas de tecnologia chegaram a ser mencionados, com referências a “planos de negócio inconsistentes” em algumas situações.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Outra questão que chamou a atenção foi a detecção de deficiências em controles internos da companhia responsável por uma das maiores operações do ano, conforme relatos de auditor independente.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">É curioso observar que os dados da CVM também trazem um razoável número de desistências de realização das distribuições de ações e de certificados de depósito de ações. De março a outubro de 2020, o regulador informa dezesseis ocorrências desse tipo, nove delas concentradas no mês de outubro.</blockquote>
Entre as causas para as desistências, podem ser mencionadas a presença de investidores mais seletivos, a concorrência com outras ofertas, as expectativas mais elevadas dos ofertantes e, last but no least, a já mencionada volatilidade do mercado, que obrigou muitas companhias a rever os planos. Outras quarenta e oito operações de distribuição envolvendo os mesmos valores mobiliários continuavam em análise no início de novembro de 2020, mas algumas delas já com sinalização de que haverá desistência.
Até o momento, os resultados das companhias que foram a mercado têm sido muito variados. Segundo matéria do Valor Econômico de 15 de outubro de 2020, enquanto companhias como Localweb apresentavam desempenho invejável (alta de +290,9% desde o IPO para um Ibovespa no mesmo período de -14,3%), outras tinham resultados bem menos atrativos. Vide alguns exemplos como Moura Dubeux (queda de -40,7% contra um Ibovespa de -14,1%), D1000VFarma (-33,94% na ação contra -3,62% no índice) e Mitre Realty (-21,81% para as ações versus -13,59% do Ibovespa), resultados que certamente não deixaram os investidores satisfeitos.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Em função desse frustrante desempenho, é preciso olhar para a outra ponta dessas operações, o lado do adquirente ou subscritor das ações, particularmente o investidor de varejo. Na mesma amostra de 19 operações, a partir dos cinco avisos de encerramento de distribuição disponíveis, é possível observar uma presença considerável de pessoas físicas: sua participação relativa variou entre 6,8% e 36,3% do total de ações distribuídas.
Ainda que essa participação apresente sensíveis variações a depender da companhia, os resultados estão acima dos percentuais históricos. Por exemplo, nos anos de 2014 a 2017 a participação relativa do público de varejo nas ofertas evoluiu de uma média de 1% para ainda modestos 4%. Mas essa média subiu para 9% em 2020, com picos como nos casos da Priner (38%), D1000VFarma (32%), grupo Soma (13%) e Petz (13%).<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
Ao mesmo tempo, a participação histórica de investidores estrangeiros em IPOs – que chegou a girar em torno de 70% do total no passado, em alguns casos mais recentes se reduziu de forma significativa, cedendo lugar para os investidores locais. Há mais de uma oferta com participação de investidores estrangeiros abaixo de 10%, como Priner (3%), Estapar (6%) e a D1000VFarma (7%).
A entrada como acionista em uma companhia que é menos conhecida e realiza o IPO traz seus riscos. O primeiro e mais evidente diz respeito aos riscos das atividades propriamente ditas, em especial em empreendimentos de menor porte. Mas há outros aspectos. A companhia precisa se adaptar à nova condição de companhia aberta, com sensíveis mudanças em termos de disclosure, governança e monitoramento interno e externo. Pode haver ainda baixa liquidez no mercado secundário após o lançamento, sendo que o mercado brasileiro é marcado pela iliquidez de muitas ações, e nem sempre há market maker para possa colaborar no processo.
A opção regulatória para a proteção dos investidores presume que existam decisões informadas de investimentos. A assunção de riscos é parte do jogo. Mas para um investidor de varejo, em regra não especializado, os percalços no processo de análise das centenas de páginas de um prospecto são imensos. Desnecessário dizer que praticamente nenhum deles se aventura a analisá-lo.
E não faz parte do pacote as oportunidades afeitas aos investidores institucionais, como reuniões com a própria companhia e com os bancos que dão suporte à operação (e possuem responsabilidades como dever de diligência acerca das informações da oferta).
<blockquote class="jota-article__eye">Essas ações seriam inviáveis do ponto de vista operacional, e os próprios investidores provavelmente não dedicariam tempo a isso. A realidade é que o prospecto pode não atingir a sua função de informar a tomada de decisão de pequenos investidores.</blockquote>
Outras fontes podem dar suporte para a decisão de investimento, em especial a instituição em que o investidor mantém seus recursos. Esses intermediários possuem áreas de análise, participam dos consórcios de distribuição e fazem recomendações aos clientes com perfil condizente (em termos de objetivos, situação financeira e conhecimento necessários para o entendimento dos riscos assumidos), atendendo ao dever de suitability.
Nesse sentido, para a maior parte dos investidores de varejo, um maior detalhamento de informações no prospecto não chega a ser decisivo e é de pouca valia, uma vez que não é um documento utilizado pela esmagadora maioria. Assim, presume-se que muito mais relevante é o papel exercido pelos prestadores de serviços que se interpõem entre o emissor e o investidor, como é o caso nos analistas, dos bancos e das corretoras que atuam na distribuição.
De forma a existir uma adequada proteção a esses investidores, é fundamental que esses agentes exerçam adequadamente seus papéis, considerando inclusive que a suitability é uma proteção importante e necessária, mas não suficiente para que os interesses dos clientes sejam adequadamente protegidos. Uma operação pode passar pelo teste de adequação, mas não ser uma boa opção em termos de relação risco-retorno.
Nesse ponto, é preciso cuidado com a posição de maior vulnerabilidade dos investidores de varejo. Não se trata de advogar por um “paternalismo regulatório”, mas de reconhecer e tratar adequadamente a presença de potenciais conflitos na atuação das instituições que atuam na distribuição. A discussão sobre a ocorrência de misselling ganhou impulso após a crise do subprime e as operações no mercado primário não são exceção a esses problemas.
Diversos órgãos internacionais dedicam espaço para o tema. Nos EUA, entrou em vigor a Regulation Best Interest (Reg. BI), tentativa da Securities and Exchange Commission (SEC) de endereçar alguns dos problemas que envolvem a defesa dos interesses dos clientes, vis-à-vis os interesses dos intermediários.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> E desde 2018 a Organização Internacional das Comissões de Valores (IOSCO) editou nada menos que dois relatórios voltados para os conflitos de interesses nas operações de captação via equity e dívida.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Assim, as mudanças observadas nas operações mais recentes podem ser vistas com otimismo. Superadas as grandes dificuldades atuais que a realidade nos reserva, é interessante que continuem ocorrendo ofertas menores, bem como a entrada de investidores individuais no mercado. Porém, isso deve ocorrer de forma que as empresas ofertantes e os investidores sejam os reais beneficiados com as operações de mercado de capitais. Nas ofertas de menor porte, com a participação de pequenos investidores, não são pequenos os desafios da regulação.
***Este artigo e as opiniões nele contidas não refletem necessariamente as posições da Fundação Getúlio Vargas, da Comissão de Valores Mobiliários e de outras instituições com as quais os pesquisadores tenham vínculos atuais ou passados.
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Episódio desta semana do ‘<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sem-precedentes" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Sem Precedentes</a>‘, podcast sobre STF e Constituição, analisa a judicialização precoce da vacinação contra a Covid-19 no STF. Ouça:
https://youtu.be/DQSxD_nC9uc
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> LEAL, R.A. Onda de IPOs requer análise criteriosa das operações. Capital Aberto, disponível em https://capitalaberto.com.br/secoes/reportagens/onda-de-ipos-requer-analise-criteriosa-das-operacoes/
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Consulta realizada em 2 de novembro de 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a>GOES, G. A. Obstáculos ao financiamento de pequenas e médias empresas por meio do mercado de ações no Brasil, 2018, disponível em <a href="https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/24013">https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/24013</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> http://www.b3.com.br/data/files/C7/A6/37/6F/44843710DB551337AC094EA8/Adesoes%20-%20Relacao%20de%20troca.xlsx
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> BOMPAN, F.e CAMPOS, A. Um terço dos IPOs neste ano podem resultar em problemas, Valor Econômico, 09/10/2020, disponível em https://valor.globo.com/financas/noticia/2020/10/09/um-terco-dos-ipos-neste-ano-pode-resultar-em-problemas.ghtml
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> MATTOS, A. Auditoria vê deficiência nos controles do Grupo Mateus, Valor Econômico, 18/10/2020, disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/10/18/auditoria-ve-deficiencias-nos-controles-do-grupo-mateus.ghtml
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> HIRATA, L. e GUTIERREZ, M. Metade das ações que estrearam neste ano acumula perda, Valor Econômico, 15/10/2020, disponível em https://valor.globo.com/financas/noticia/2020/10/15/metade-das-acoes-que-estrearam-neste-ano-acumula-perda.ghtml
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> GODOY, D. ESTIGARRIBIA, J., MAMONA, K., GUILHERME, G. e VALENTI, G. Febre de IPOs: os empreendedores que dão nova cara à bolsa brasileira, Exame, 24/09/2020, disponível em  <a href="https://exame.com/revista-exame/as-novas-caras-da-bolsa/">https://exame.com/revista-exame/as-novas-caras-da-bolsa/</a>.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> SECURITIES AND EXCHANGE COMMISSION. Regulation Best Interest: The Broker-Dealer Standard of Conduct. 17 CFR Part 240 - [Release No. 34-86031]. Washington, D.C.: SEC, 2019.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> IOSCO. Conflicts of interest and associated conduct risks during the debt capital raising process: final report. Report n.º FR08/2020. Madrid: IOSCO, 2020. Disponível em: https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD661.pdf. Acesso em: 16 out. 2020. IOSCO. Conflicts of interest and associated conduct risks during the equity capital raising process. Report n.º FR16/2018. Madrid: IOSCO, 2018. Disponível em: https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD612.pdf. Acesso em: 28 out. 2020.

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JOTA

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