Inseridos pelo PL nº 10.887/18, os parágrafos 3º, 4º e 5º do artigo 21 da Lei nº 8.429/92[1] representam iniciativa do legislador de garantir segurança jurídica nas ações de improbidade administrativa a partir dos reflexos de outras esferas sancionatórias, como a penal, à medida que buscam harmonizar os efeitos de eventuais absolvições ou sanções já aplicadas em outras instâncias com a tramitação e os resultados da ação de improbidade administrativa.
Essas previsões não se apresentam exatamente como inesperada inovação, uma vez que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), com as alterações introduzidas pela Lei nº 13.655/2018, já contempla a necessidade reclamada pelo direito sancionador de harmonização da atividade sancionatória, como corolário do postulado da racionalidade intrínseco ao Estado Democrático de Direito, em abandono à ultrapassada e questionável independência (ou verdadeiro isolamento) das instâncias, limitadora do princípio constitucional implícito do non bis in idem[2], conforme previsão do seu §3º do art. 22[3].
Também o Código Penal já trata da comunicabilidade das decisões em caso de condenação, conforme disposto nos seus artigos 91 e 92[5]. A Lei nº 8.112/1990 (estatuto jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais)[6], por sua vez, prevê que os prazos de prescrição previstos na lei penal se aplicam às infrações disciplinares capituladas também como crime. É curioso, portanto, que a comunicabilidade entre as instâncias vinha se operando de forma seletiva; permanecia o distanciamento entre elas no que se refere a alguns efeitos, como no caso da repercussão das sanções aplicadas, o que parece ter começado a mudar, notadamente após a LINDB.
Além disso, a inclusão ao artigo 21 do §3º inova ao ampliar os efeitos da absolvição por inexistência de autoria ou fato obtida na esfera cível, o que evita um cenário de instabilidade muito recorrente no controle da Administração Pública pelo Judiciário, em que é imposto ao gestor público o ônus de responder e eventualmente ser condenado por improbidade, mesmo já tendo sido absolvido em uma ação ordinária relativa ao mesmo episódio.
Embora a redação do §3º do art. 21 introduzido pelo PL não explicite que as sentenças civis e criminais que produzirão efeitos no âmbito da ação de improbidade devam se referir ao mesmo fato, o que faz o §4º de forma expressa, é certo que a interpretação do dispositivo deverá ser nesse sentido, em consonância ao previsto na LINDB. A identidade entre os fatos não significa correspondência entre os tipos. A tipificação na esfera criminal, por exemplo, não precisa ser idêntica ao tipo de improbidade administrativa, basta que os fatos e a conduta investigados em uma e outra instância sejam os mesmos.
Por sua vez, a inclusão do §4º ao mesmo artigo 21, embora em um primeiro momento possa transparecer uma certa repetição com os intentos do parágrafo anterior, já que também trata de absolvição, possui extrema relevância como condição de continuidade de uma ação de improbidade administrativa, já que o prosseguimento desta está vinculado à inexistência de absolvição criminal confirmada por órgão colegiado.
Enquanto no §3º o legislador busca abrir a possibilidade de que sentenças cíveis ou criminais produzam efeito em ações de improbidade desde que tenham concluído pela absolvição por inexistência de autoria ou conduta, o §4º é taxativo em afirmar que a absolvição criminal confirmada por colegiado impede o prosseguimento da ação disciplinada pela Lei nº 8.429/92 e não faz qualquer ressalva acerca do tipo da condenação.
É preciso lembrar que a Lei nº 8.112/1990 já contém previsão em igual sentido, embora com redação mais simplória, a qual não considera a decisão colegiada suficiente para a produção dos efeitos da absolvição[7].
O §4º é muito mais preciso e categórico em sua disposição: impedir que o agente já absolvido criminalmente em decisão colegiada responda também por improbidade administrativa em razão do mesmo fato, em uma demonstração clara de conferir segurança jurídica e evitar múltiplas e conflitantes decisões acerca da mesma conduta, obrigação essa também já contida na LINDB[8].
Exatamente por isso é que sua redação impõe que o óbice ao prosseguimento da ação de improbidade administrativa ocorra somente após a confirmação colegiada da decisão de absolvição, ao passo que o §3º refere-se apenas à sentença, tendo em vista que seu objetivo não é impedir o prosseguimento da ação, mas ressaltar que a absolvição por inexistência de conduta ou autoria deverá produzir algum efeito em seu curso, sem especificar quais.
Por possuírem objetivos distintos, ambos os dispositivos não são mera repetição, buscam, cada um com suas características, conferir segurança jurídica em matéria de improbidade administrativa, à medida que não cabe falar nesse instituto de maneira isolada, sem desconsiderar decisões anteriores sobre o mesmo fato que já tenham sido proferidas em outras esferas.
Todavia, não obstante seja uma disposição alvissareira, ela traz consigo uma polêmica: a força conferida à decisão colegiada antes do trânsito em julgado, o qual, para os efeitos do PL, passaria a ser o acórdão proferido pela instância superior. Nos debates na Câmara dos Deputados houve certa atenção para essa questão, mas decidiu-se pela manutenção da redação na forma como posta. Ocorre que, na prática, a aplicação do dispositivo poderá acarretar problemas. Basta imaginarmos eventual reforma da absolvição em terceira instância, o que não é impossível de acontecer. Sobre a questão, em outra perspectiva, mutatis mutandis, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou algumas vezes e na última decisão, proferida nas ADCs 43, 44 e 54, fixou o entendimento de que é necessário o esgotamento de todas as possibilidades de recurso (trânsito em julgado da condenação) para o início do cumprimento da pena. Caminharia melhor a previsão do PL se considerasse a suspensão da ação de improbidade em caso de absolvição na esfera criminal, até o trânsito em julgado desta ação, quando então a ação de improbidade se encaminharia para a extinção caso confirmada a absolvição ou transitada em julgado a decisão criminal sem interposição de recurso.
A improbidade administrativa, quando possuir conexões com a esfera penal e outras formas de controle, não pode ser processada e julgada como se fosse um elemento estranho e desconsideradas eventuais atenuantes ou absolvições que possam ter sido reconhecidas em outras esferas. É justamente a necessidade de se admitir essa conexão e interlocução que os §§3º e 4º do artigo 21 buscam assegurar e evitar o acúmulo de apurações, e assim o conflito de decisões sobre o mesmo fato[9]. De certo modo o legislador, tal como no direito espanhol, confere maior medida e intensidade às decisões criminais, o que seria uma tentativa de conferir coerência ao sistema sancionatório[10].
Não só da redação dos §§3º e 4º do artigo 21 se extrai preocupação maior com a segurança jurídica e com a necessidade de se preservar a racionalidade de decisões proferidas anteriormente sobre os mesmos fatos, o §5º do mesmo artigo também busca assegurar que sanções já aplicadas em outras esferas sejam consideradas quando do julgamento da improbidade administrativa.
Diversamente do §4º, o §5º não visa impedir o prosseguimento da ação de improbidade administrativa ou determinar que sentenças de absolvição surtam efeitos no mesmo tipo de ação, mas sim que sanções já aplicadas por outras esferas sejam compensadas em uma nova condenação, dessa vez por improbidade administrativa.
Por mais que o agente tenha sido sancionado em outros âmbitos e ainda esteja sujeito à condenação por improbidade administrativa, o princípio do non bis idem impede que a aplicação de uma sanção se repita em uma segunda esfera, e é isso que o legislador busca reforçar ao positivar a figura da compensação, em uma disposição similar ao §3º do artigo 22 da LINDB. Teoricamente, não pode a conduta de um sujeito ser considerada correta em uma esfera e ao mesmo tempo ilícita em outra esfera. Também não dialoga com a racionalidade do sistema sancionador a aplicação de sanção em uma esfera pelo mesmo fato e a repetição da mesma sanção ou a aplicação de sanção distinta em outra esfera sem considerar a repercussão de outro processo sancionatório.
Ainda que a proposta também tenha buscado conferir estabilidade e previsibilidade ao pretender evitar que uma mesma sanção, para o mesmo fato, se acumule em mais de uma esfera, a ausência de detalhamento acerca das formas com que a comunicabilidade pretendida será feita, notadamente se poderá haver compensação entre sanções distintas, compromete, em um primeiro momento, a aplicabilidade da iniciativa, de modo que esse ponto específico do Projeto de Lei nº 10.887/18 poderia ser melhor detalhado e trabalhado a fim de tornar claro o funcionamento da compensação idealizada e atingir o seu objetivo de garantir a segurança jurídica nas ações por atos de improbidade administrativa.
O PL pode aproveitar a oportunidade para aprimorar a comunicabilidade entre as instâncias e para positivar com racionalidade a proibição do non bis in idem, de forma a sepultar finalmente a resistência brasileira ao princípio, sempre sob o amparo da justificativa da independência das instâncias. O próprio ordenamento já prevê a interdependência entre as instâncias, como os já citados dispositivos do Código Civil, do Código Penal e da Lei nº 8.112/1990. No caso da ação de improbidade seria o momento de o legislador estabelecer procedimentos para serem adotados quanto à comunicação entre as decisões, sobretudo no que se refere à dosimetria de sanções idênticas, mediante a previsão de critérios para o abatimento de uma com a outra ou até mesmo a priorização de uma esfera em face da outra. Poderia fazê-lo igualmente quanto às repercussões das decisões de outras esferas, que não sejam absolvições, inclusive nos acordos de não persecução cível. O regramento previsto no PL a respeito desses acordos nada diz a respeito dos efeitos dessas decisões no âmbito da consensualização.
Também seria importante disciplina a respeito da repercussão das medidas expropriatórias aplicadas em outras esferas no tocante ao dano ao erário. Em certa medida o Código Penal já trata do tema, todavia, não prevê a comunicabilidade[11]. Considerando as peculiaridades da relação dano ao erário e improbidade administrativa, inclusive a eliminação, pelo PL na sua redação atual, da modalidade de culpa grave no caso do tipo que cause dano ao erário, bem como as questões relativas à imprescritibilidade, além do próprio acordo de não persecução cível, do acordo de leniência e de outras atividades dos órgãos de controle, incluído o Tribunal de Contas, em cuja atuação se pode obter o ressarcimento do dano, a matéria apresenta relevância a reclamar previsão legislativa e garantir segurança jurídica.
De qualquer forma, os parágrafos acrescentados ao artigo 21 da Lei nº 8.429/92 possuem aspectos consideravelmente positivos na tentativa de implementar mais segurança jurídica à ação de improbidade administrativa, de maneira que suas disposições representam um avanço na matéria e devem ser mantidas e eventualmente aprimoradas ao longo da tramitação no Congresso Nacional.
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[1]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2032787&filename=Tramitacao-PL+10887/2018
[2] Fábio Medina Osório explica que o princípio da proibição do bis in iden está constitucionalmente conectado às garantias de legalidade, proporcionalidade e devido processo legal, implicitamente presente, portanto, no texto da Constituição Federal (Direito administrativo sancionador. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, pp. 305-306).
[3] §3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.
[4] Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.
[5] Art. 91 – São efeitos da condenação: I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito; b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso. § 1º Poderá ser decretada a perda de bens ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime quando estes não forem encontrados ou quando se localizarem no exterior. § 2º Na hipótese do § 1o, as medidas assecuratórias previstas na legislação processual poderão abranger bens ou valores equivalentes do investigado ou acusado para posterior decretação de perda. Art. 92 – São também efeitos da condenação: I – a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos. II – a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, contra filho, filha ou outro descendente ou contra tutelado ou curatelado; III – a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso. Parágrafo único – Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença.
[6] Art. 142. § 2º Os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime.
[7] Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.
[8] Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas.
[9] Sobre a conexão entre ações penais e por atos de improbidade administrativa, veja-se a decisão monocrática proferia nos autos da Reclamação 41.557 de relatoria do ministro Gilmar Mendes, que sobrestou a tramitação de ação de improbidade administrativa em virtude do trancamento de ação penal sobre o mesmo fato: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343654221&ext=.pdf
[10] O princípio da vedação do bis in idem não está expressamente previsto no direito espanhol. Após a Constituição Espanhola de 1978 a jurisprudência reconheceu a incidência do non bis in idem na relação entre as vias penal e administrativa, excluídas as relações disciplinares (NIETO GARCÍA, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. 4. ed. Madrid: Tecnos, 2005, p. 215).
[11] Art. 91-A. Na hipótese de condenação por infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão, poderá ser decretada a perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito. § 1º Para efeito da perda prevista no caput deste artigo, entende-se por patrimônio do condenado todos os bens: I – de sua titularidade, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício direto ou indireto, na data da infração penal ou recebidos posteriormente; e II – transferidos a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir do início da atividade criminal. § 2º O condenado poderá demonstrar a inexistência da incompatibilidade ou a procedência lícita do patrimônio. § 3º A perda prevista neste artigo deverá ser requerida expressamente pelo Ministério Público, por ocasião do oferecimento da denúncia, com indicação da diferença apurada. § 4º Na sentença condenatória, o juiz deve declarar o valor da diferença apurada e especificar os bens cuja perda for decretada. § 5º Os instrumentos utilizados para a prática de crimes por organizações criminosas e milícias deverão ser declarados perdidos em favor da União ou do Estado, dependendo da Justiça onde tramita a ação penal, ainda que não ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, nem ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos crimes.