Esdras Boccato

Não se deve matar passarinhos com balas de canhão. Foi este o primeiro pensamento que veio à mente dos credores em geral quando souberam que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidira-se extinguir a prisão civil do depositário infiel do direito brasileiro (RE 466.343/SP), em julgamento que não muito tempo depois se tornaria de observância obrigatória com a Súmula Vinculante 25.
Natural que tenha sido essa a percepção, pois o precedente que deu base para a sedimentação jurisprudencial tratava da figura do devedor fiduciante que, para muitos, nem poderia ter sido equiparada a do depositário infiel. Assim, a sensação que se teve à época não foi outra: buscando corrigir a desproporcionalidade em que o art. 4º, Decreto-Lei 911/69 incorria ao estender a prisão civil a quem nunca fora realmente depositário, o STF acabou por aniquilar a própria figura da prisão do depositário infiel, modificando, inclusive, sua própria jurisprudência.
Um excesso que gerou outro excesso, e maior.
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Obviamente, a Fazenda Pública estava entre os credores perplexos, especialmente em virtude de uma peculiaridade que a marca até os dias de hoje: como litigante de massa que é nas execuções fiscais, tinha por hábito não tomar para si os bens penhorados, deixando-os sob a guarda do próprio devedor ou de seu representante legal. E isso mesmo antes da inclusão do § 1º ao art. 666 do antigo CPC pela Lei 11.382/06, que passou a expressamente autorizar o depósito de bens penhorados em poder do executado.
Assim agia porque, além de não querer privar o devedor do uso do bem – no mais das vezes, necessário ao funcionamento da atividade empresarial – a Fazenda Pública tinha a expectativa de que o bem não se perderia, justamente porque a coerção sobre o depositário seria a prisão civil, amparada na legislação até então vigente (art. 666, § 3º, c/c art. 904, par. único, CPC/73). Não é difícil perceber, portanto, os impactos desfavoráveis que a Súmula Vinculante STF 25 trouxe para si.
Por isso, era de se esperar que a infidelidade dos depositários tornar-se-ia progressivamente recorrente como consequência óbvia de o STF ter invalidado a coerção que sempre lhe foi típica e cabível.
Sem a prisão do depositário infiel, imaginava-se, nenhum devedor se preocuparia em manter em sua guarda o bem penhorado caso isso não lhe parecesse vantajoso. Logo, a ninguém surpreendeu perceber que, com o tempo, as preocupações da Fazenda Pública começaram a se confirmar, pois foi exatamente o aumento do comportamento desidioso dos depositários o que ocorreu nas execuções fiscais.
Não foram poucas as garantias que se perderam devido, entre outras razões, à sensação de impunidade que a extinção da prisão civil do depositário criara em boa parte dos devedores que tinham o ônus de manter sob guarda os bens penhorados.
Entretanto, ao contrário do que inicialmente se pensava, a Súmula Vinculante 25 não implicou um vácuo normativo. Retirou, é fato, a prisão civil do rol das consequências da infidelidade de depositário. Porém, não fez com que o dever de guarda e conservação dos bens penhorados (art. 159, CPC/15) se tornasse uma norma jurídica despida de sanção punitiva, pois não teve o condão de revogar as disposições que a legislação civil, processual e penal previam e ainda preveem como consequência para o seu desrespeito.
De certa forma, a própria Fazenda Pública demorou para notar que o fato de lhe ser vedado pedir a prisão do depositário infiel não a impedia de buscar outras maneiras para constranger o depositário a cumprir seu papel.
Na esfera penal, a bem evidenciar isso está o fato de que a infidelidade do depositário pode ser caracterizada como crime de desobediência (art. 330, CP). Intimado para apresentar o bem penhorado não localizado pelo oficial de justiça ou para restituir em juízo o correspondente valor do bem caso este tenha se perdido ou se deteriorado, o depositário se torna infiel ao não cumprir a determinação judicial, ao mesmo tempo que se sujeita ao enquadramento do tipo penal desobedecer a ordem legal de funcionário público se tiver deixado de atender à ordem da autoridade judicial com clara intenção de não a cumprir (STF, AP 663).
Em casos assim, deve a Fazenda Pública encaminhar delatio criminis diretamente à autoridade policial (art. 5º, § 3º, CPP) ou ao Ministério Público (art. 27, CPP), ou ainda, quando houver informações sigilosas, requerer ao juízo da execução fiscal que extraia cópia dos autos e os encaminhe à autoridade policial com requisição para a instauração de inquérito policial (art. 5º, inciso II, CPP), já que cabível mesmo em infrações de menor potencial ofensivo (STJ, HC 26988).
Afora o crime de desobediência, o depositário também pode incorrer no crime de alienação fraudulenta de coisa própria (art. 171, § 2º, inciso II, CP) com pena aumentada em 1/3 (um terço) por ter vitimado a Fazenda Pública (art. 171, § 3, CP) se, enquanto proprietário do bem penhorado, deixar de apresenta-lo em juízo por tê-lo alienado a terceiro, omitindo deste o fato de recair penhora sobre o bem.
Assim ocorre porque, ao menos em relação à Fazenda Nacional, a penhora torna indisponível o bem (art. 53, § 1º, Lei nº. 8.212/91) de maneira que o ato de o alienar acaba por se enquadrar na conduta de vende(r) coisa própria inalienável mediante pagamento em prestações, silenciando sobre qualquer dessas circunstâncias, que, além de não ser infração de menor potencial ofensivo (art. 171, § 2º, CP c/c art. 61, Lei nº. 9.099/95) e inadmitir transação penal (art. 76, Lei nº. 9.099/95), também não admite a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei nº. 9.099/95) em razão da pré fixação da causa de aumento (STJ, AgRg no REsp 1.349.728).
Mas não só: a infidelidade também pode ser enquadrada no crime de peculato-desvio (art. 312, CP) se, no caso de penhora de faturamento (art. 866, § 2º, CPC/15), o administrador-depositário deixar de proceder aos depósitos do percentual do faturamento penhorado e der outra destinação às quantias que deveriam garantir a execução fiscal. A conduta típica é a de apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio, sendo que quando o devedor pessoa física ou o representante legal da pessoa jurídica executada é nomeado como depositário (art. 838, inciso IV c/c art. 840, § 2º, CPC/15), é tido como funcionário público para fins penais (art. 327, CP).
Deste modo, considerando que tipo penal só exige que o bem desviado esteja em posse do depositário por causa da função pública que exerce – e não que seja bem público – inevitavelmente o depositário incorrerá nas penas do peculato se deixar de depositar em juízo os valores em dinheiro correspondentes à constrição do faturamento e lhes utilizar para outra finalidade, ainda que em proveito da própria pessoa jurídica devedora de que é representante.
Na esfera cível as soluções que podem ser dadas para o combate à infidelidade do depositário concernem à sua responsabilização pessoal pelos prejuízos causados à Fazenda Pública. Mesmo na sistemática do antigo Código de Processo Civil, o depositário era passível de ser responsabilizado pelos danos causados às partes por mal exercer os deveres de guarda e conservação do bem penhorado (art. 150, CPC/73).
Com o advento do novo Código de Processo Civil, foi introduzida expressa previsão legal (art. 161, par. único, CPC/15) a estabelecer que o depositário infiel responde civilmente pelos prejuízos causados, sem prejuízo de sua responsabilidade penal e da imposição de sanção por ato atentatório à dignidade da justiça. Mais: com a possibilidade de que a indenização pelos prejuízos seja apurada e cobrada nos próprios autos da execução fiscal, analogamente ao que ocorre com as multas e indenizações decorrentes de litigância de má-fé (art. 777, CPC/15).
Obviamente, a responsabilização do depositário não o torna codevedor dos créditos tributários, justamente porque deve ter como referência quantitativa o valor do bem penhorado, e não o dos créditos tributários. Porém, os atos de constrição do patrimônio do depositário infiel devem ser voltados à satisfação da dívida executada, tal como aconteceria se os bens penhorados não tivessem se perdido.
Como se vê, portanto, existem outros meios para coibir a desídia do depositário que não a prisão civil, alguns dos quais mais eficazes para a recuperação dos créditos tributários – porque implicam a sujeição de outro patrimônio pessoal para a quitação das dívidas – ou para a repressão à infidelidade – porque podem levar à prisão por prazo superior àquela de 1 (um) ano prevista para a prisão civil (art. 652, Código Civil e art. 902, § 1º, CPC/73).
Passado o susto inicial com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, foi possível perceber que existem sim alternativas, e que o estado calamitoso que se esperava pode ser combatido. A bem da verdade, a Súmula Vinculante STF 25 teve a virtude de provocar na Fazenda Pública e nos credores em geral o exercício da busca por soluções mais elaboradas, tal como ensina a sabedoria popular: se a vida te der limões, faça uma limonada.

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JOTA

As consequências cíveis e penais de sua infidelidade  

O depositário nas execuções fiscais

As consequências cíveis e penais de sua infidelidade