Esdras Boccato

Difícil imaginar quem nunca tenha ouvido a frase às vezes, é preciso dar um passo à trás para dar dois à frente. Qualquer um que, em seu dia a dia, lide com escolhas sabe que, em certas situações, é melhor recuar naquilo que se quer para, com isto e então, chegar-se a uma opção mais vantajosa que aquela a princípio vislumbrada. Seja como estratégia em negociações empresariais de alta complexidade, seja como modo de resolver até mesmo desinteligências familiares, fato é que, por vezes, aceitar desvantagens iniciais é o caminho para otimizar a solução de problemas.
Na advocacia pública, não é diferente. Apesar de seu exercício ter de se pautar pela defesa da legalidade (art. 182, CPC/15), os advogados públicos podem e devem atuar estrategicamente quando a lei a ser aplicada contém termos vagos ou ambíguos. Em ocasiões em que da legislação se possam extrair diversas opções para a solução de um mesmo conflito, compete à advocacia pública sustentar e defender a intepretação que leve à prestação de tutela jurisdicional que melhor se coadune com o interesse público subjacente à finalidade buscada.
Porém, as vantagens que uma determinada interpretação assegura nem sempre são percebidas com facilidade, especialmente se, num primeiro momento, parece desfavorecer a quem a sustenta. Um bom exemplo disto é o incidente de desconsideração da personalidade jurídica que, como se sabe, foi introduzido ao sistema jurídico brasileiro pelo atual Código de Processo Civil de forma a obrigar que o juiz submeta os pedidos de desconsideração a prévio contraditório da parte que potencialmente será afetada caso sejam deferidos (art. 135, CPC/15).
Como sói acontecer nas inovações legais, o dever de ter de se citar o sócio antes de autorizar providências constritivas sobre seu patrimônio foi visto com muitas ressalvas por parte daqueles que, até então, tinham por certo que o próximo passo após o pleito de redirecionamento era o de vê-lo decidido. Credores e – por que não? – os próprios membros do Poder Judiciário viram-se na contingência de terem de se submeter a um procedimento que, embora vise promover a segurança jurídica (art. 9º, CPC/15), indubitavelmente atravanca a execução, justamente por suspendê-la (art. 134, § 3º, CPC/15) enquanto se aguarda a decisão interlocutória sobre incluir ou não um terceiro no polo passivo.
Não demorou muito para que as primeiras reações surgissem. Ainda nem havia entrado em vigor o novo Código, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) divulgou diversos enunciados acerca de temas que entendeu serem de potenciais divergências interpretativas. Na oportunidade, foi aprovado o Enunciado nº. 53 a dizer que o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente prescinde do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no art. 133 do CPC/2015, sob a justificativa de que o incidente seria incompatível com o rito das execuções fiscais e com a celeridade que se pretende dar a elas.
As Fazendas Públicas em geral também passaram a defender a tese de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica não deve ser instaurado em execuções fiscais. Porém, assim começaram a atuar calcadas no forte argumento de que, em regra, os redirecionamentos feitos nas execuções fiscais se fundam nas hipóteses de responsabilidade tributária prevista em legislação específica (art. 128, CTN), e não em causas de afastamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica (art. 50, CC). Como bem explicado por Diogo Brandau Signoretti<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, há consideráveis diferenças entre os institutos da desconsideração da personalidade jurídica e o da responsabilidade tributária que impediriam um tratamento processual igualitário na aplicação de ambos.
Seja como for, até onde se sabe, juízes e procuradores fazendários têm se orientado pela não submissão das execuções fiscais à instauração do incidente de desconsideração, ao menos não nos casos de redirecionamento fundados na dissolução irregular da pessoa jurídica devedora (art. 135, inciso III, CTN c/c Súmula STJ nº. 435). Por isso, os sócios-administradores que encerram as atividades empresarias da sociedade devedora sem a devida baixa nos órgãos de registro continuam a ser incluídos no polo passivo das execuções fiscais a partir do pedido de redirecionamento lastreado com a prova da dissolução irregular. Assim, contraditório e ampla defesa permanecem diferidos e só exercidos após a afetação patrimonial, em sede de embargos (art. 16, LEF).
Aparentemente, não houve desvantagens às Fazendas Públicas com esta solução. A rigor, tratando-se de redirecionamento, a situação dos feitos executivos fiscais pouco se alterou com o novo Código de Processo Civil. A princípio, portanto, a advocacia pública obteve êxito na defesa dos interesses fazendários, ao evitar que as execuções fiscais fossem obstaculizadas pela suspensão automática decorrente da tramitação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. O sentimento que se teve foi o de sucesso por ter sido afastada a ameaça que o incidente parecia trazer à celeridade e à eficiência da cobrança judicial de tributos.
No entanto, tendo em vista que o propósito da execução fiscal não é o de obter uma tutela jurisdicional que coloque fim à lide (art. 487, CPC/15), mas o de viabilizar a plena satisfação do crédito mediante pagamento em dinheiro (art. 924, inciso II, CPC/15), é de se perguntar se realmente a não sujeição das execuções fiscais aos art. 133 e seguintes do novo Código de Processo Civil melhor atende à finalidade de se recuperar os créditos inadimplidos. Isto porque a sistemática do incidente de desconsideração traz consigo uma vantagem até então inexistente no sistema processual brasileiro, que é a de considerar como ineficazes as alienações de bens feitas por quem, à época, nem ainda tinha sido incluído no polo passivo da execução.
O art. 792, § 3º, CPC/15 reza categoricamente que, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar. Conforme a nova regra processual, se o sócio que vier a ser incluído no polo passivo da ação em razão do acolhimento do incidente de desconsideração tiver alienado bens após a citação da pessoa jurídica cuja personalidade veio a ser desconsiderada, então poderá o credor requerer seja decretada a ineficácia da alienação em relação a si (art. 137, CPC/15), de maneira a poder penhorar bens do sócio que haviam sido alienados mesmo antes de ter sido instaurado o incidente.
Assim, se de um lado o incidente de desconsideração garante o exercício prévio do contraditório e da ampla defesa (art. 136, CPC/15) para o sócio, de outro lado assegura a ampliação do rol de bens passíveis de serem al-cançados na execução (art. 789, CPC/15) pelo credor que tenha demonstrado a ocorrência de confusão patrimonial ou desvio de finalidade da sociedade devedora. Como se vê, ao mesmo tempo que visa promover o princípio da segurança jurídica (art. 9º, CPC/15), o incidente de desconsideração traz consigo a capacidade de neutralizar os prejuízos eventualmente sofridos pelo credor durante a execução de uma devedora cujos sócios abusaram da personalidade jurídica.
Sob este prisma, não há como negar que submeter as execuções fiscais ao regramento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica pode ser mais vantajoso à Fazenda Pública. Insistir e defender a tese de que os redirecionamentos devem continuar a serem feitos como sempre foram importa em se sujeitar ao entendimento jurisprudência firmado pelo Superior Tribunal de Justiça de que, se alienação dos bens dos sócios-administradores ocorreu antes de serem incluídos no polo passivo, é descabida a caracterização de fraude à execução fiscal (STJ, 2ª Turma, REsp 1.409.654/PR, Relator Ministro Herman Benjamin). O que se pode ganhar em celeridade – que, vamos convir, depende mais do bom funcionamento dos mecanismos da Justiça do que do tipo de procedimento a ser adotado – certamente se perde em eficiência.
Por sua vez, aceitar a contingência de promover o redirecionamento por intermédio do incidente de desconsideração assegurará à Fazenda Pública um instrumento inédito e eficaz para combater a blindagem patrimonial, especialmente por não ser incomum que os sócios que encerram irregularmente as atividades da empresa coloquem seus bens em nome de terceiros pouco antes de serem incluídos no polo passivo da execução fiscal, por já anteverem o inevitável redirecionamento. A aplicação da regra do art. 792, § 3º, CPC/15 às execuções fiscais permitirá que a Fazenda Pública penhore bens que, pela atual jurisprudência, não estariam ao alcance das constrições.
Logo, a par do ônus de ter de provar que a dissolução irregular acarretou confusão patrimonial, é perfeitamente possível que a Fazenda Pública veja na submissão do redirecionamento ao procedimento do incidente uma vantagem e, por isto, mude de estratégia. Aliás, é recomendável que o faça, não só porque terá a vantagem de perseguir patrimônio alienado pelo sócio antes de ter sido citado a pagar, mas sobretudo porque, na vida, realmente é preciso dar um passo à trás para dar dois à frente.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> https://jota.info/artigos/o-incidente-de-desconsideracao-da-personalidade-juridica-e-o-credito-tributario-09052016

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JOTA

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