Democracia

Frente ampla defende, mas não constrói

Líderes partidários demonstraram acordo em rechaçar a ditadura e em defender instituições do Estado. Não é tudo, mas é muito

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As cores do arco-íris foram projetadas no edifício do Congresso Nacional no domingo (28/6), das 20h às 20h15, para lembrar o Dia Internacional do Orgulho LGBTI. Crédito: Roque de Sá/Agência Senado

Há no Brasil uma grande maioria unida contra o autoritarismo e isso é necessário para evitar aventuras golpistas. Não é suficiente, entretanto, para construir uma sociedade democrática, livre, próspera e justa. Explico.

A boa notícia da semana vem dos operadores reais da política brasileira. Vem de quem representa parte do poder concreto para mudar as normas que regem a sociedade. Um número significativo deles, reunidos em um seminário, demonstrou seu acordo em rechaçar a ditadura e em defender as instituições do Estado. Não é tudo, mas é muito. Como em qualquer democracia, eles têm importantes divergências.

Na quarta-feira, dia 24 de junho, o David Rockfeller Center para Estudos Latino-americanos da Universidade de Harvard organizou um debate virtual sobre “Liberdade de Expressão e Democracia no Brasil”. Os convidados, todos com grande experiência política, foram os dirigentes partidários Gleisi Hoffman, do PT; ACM Neto, do DEM; Bruno Araújo, do PSDB; Carlos Lupi, do PDT; Marcos Pereira, do Republicanos, e Roberto Freire, do Cidadania.

O encontro foi mediado por Hussein Kalout, pesquisador de Harvard, e contou com intervenções da professora Maria Hermínia Tavares de Almeida e do cientista político Fernando Bizzarro.

Os convidados dirigem agremiações que correspondem a mais de um terço da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. É central a importância dos dirigentes partidários na operação real de um sistema democrático, pois são os partidos políticos que conferem legendas para as candidaturas e emprestam, posteriormente, a base legislativa necessária para governar.

As convergências entre esses partidos evidenciam que as articulações para golpe de estado, autogolpe, agressões às instituições não encontram respaldo na representação popular que existe no Poder Legislativo. Importante observar que os partidos presentes cobrem um leque ideológico e político amplo, com representantes que vão da direita à esquerda e da base de apoio ao governo federal até sua oposição.

Algumas declarações a esse respeito são notáveis, como as do prefeito de Salvador, ACM Neto, que afirma ser a democracia valor inegociável para seu partido e que estarão juntos com “quem quer que seja” para defendê-la. Já o vice-presidente da Câmara dos Deputados, o ex-ministro Marcos Pereira, bispo licenciado da Igreja Universal, ressalta que seu partido rechaça a ditadura “de qualquer maneira que seja” e tampouco percebe no Congresso Nacional qualquer sinal de defesa de regime de exceção. Não houve voz discordante sobre esse tema, vinda de qualquer outro líder partidário.

Conclui-se que, cada vez que o presidente da República, seu grupo ideológico e sua família estimulam atos e manifestações agredindo as instituições e defendendo a ruptura legal – e, pior, deles participa –, distanciam-se do que pretendem, o poder absoluto. Ao contrário do que buscam, eles caminham para o isolamento político, que no limite pode levar ao próprio impeachment.

Os líderes partidários também revelam divergências, mais nítidas no enfrentamento do difícil dilema da defesa da liberdade de expressão e no estabelecimento de limites às agressões e às notícias inventadas para prejudicar alguém, as conhecidas “fake news”.

Mesmo na discordância, há notável unidade em torno da Constituição Federal como o quadro institucional capaz de estabelecer os limites entre a liberdade de expressão e suas violações, notadamente os novos crimes cometidos com o crescimento de importância das redes sociais.

Todos condenam e reconhecem como crime as “fake news”, em especial quando as agressões são cometidas de maneira anônima e automática (robotização) nas redes. Todos esperam que o Estado tenha meios de fazer com que a legislação seja cumprida e reconhecem que a falta de tipificação desses crimes dá margem a discussões sobre os julgamentos, que são feitos com base em analogia. Essa situação sugere que o Congresso Nacional deve atualizar a legislação penal atual para tipificar essas novas figuras.

Entretanto, as divergências observadas não podem nem devem ser negligenciadas, pois afetam o centro da questão democrática e o projeto de país que buscamos.

O presidente do PSDB, Bruno Araújo, identificou, no quadro institucional que está na Carta Magna, os limites a serem cumpridos para defender a liberdade de expressão. Entende que esta é intocável e suas limitações existem na legislação, de forma que qualquer censura prévia e controle sobre os meios de comunicação devem ser, de pronto, rechaçados.

Essa posição foi aceita por representantes do Cidadania, DEM e Republicanos, mas é percebida de modo bastante diverso pelos líderes mais à esquerda, representados pelo PDT e PT.

O ex-ministro Carlos Lupi, que lidera o PDT, julga que há no Brasil “desequilíbrio entre as liberdades de opinar e de informar” por parte dos meios de comunicação, o que impõe que as concessões públicas a canais de rádio e TV devam ser discutidas.

Foi a presidente do PT, a ex-ministra Gleisi Hoffman, quem apresentou a posição mais distante dos demais. Para o PT, há monopólio de comunicação exercido pela Rede Globo e isso se dá pela falta de regulamentação de dispositivos da Constituição que asseguram amplo direito e liberdade de expressão. De acordo com a dirigente partidária, o que se vê nas redes sociais é complementação dos meios de comunicação ditos tradicionais e isto está comprometido pelo monopólio existente. Segundo Gleisi Hoffman, as redes de televisão, sendo concessões públicas, não deveriam ter o direito de opinar, devendo limitar-se a fornecer informações.

A curiosa semelhança entre a posição dos representantes do PT e, em menor escala, do PDT com as defendidas pelo presidente Bolsonaro, sua família e seus apoiadores chega a ser surpreendente, mas tem raízes históricas que as justifiquem.

O ex-ministro Roberto Freire, líder do Cidadania, interpretou o encontro com clareza e reconheceu sua importância e ineditismo na história brasileira.

O experiente político observou que o Brasil vive período de plenitude democrática cujo melhor indicador é a plena liberdade de expressão. A imprensa não precisa ser neutra nem imparcial, precisa ser livre. Discutir concessões pode ser ardil para limitar a liberdade de expressão e isso não pode ser tolerado pelos democratas.

É o Poder Judiciário quem deve julgar os processos sobre crimes de opinião dentro do mais amplo e devido processo legal. Entende Roberto que, exatamente por essa razão, é importante garantir e respaldar o Poder Judiciário, em especial neste momento em que se encontra atacado, ao examinar denúncias de crimes que alcançam setores próximos ao governo.

Roberto Freire reforça a necessidade de todos os partidos andarem juntos, em ampla frente democrática contra qualquer tipo de golpe, formando unidade plural com diversidade de opiniões.

Do que vi e ouvi, acredito que seja mesmo possível e talvez até fácil organizar uma frente democrática para evitar que a tenra democracia brasileira feneça atentada por interesses menores e desqualificados. Muito mais difícil, entretanto, é criar uma frente política vencedora, com programa para aprofundar e defender uma democracia vibrante e inclusiva, uma sociedade livre e um Estado completamente regido pela lei.

Assista ao novo episódio do podcast Sem Precedentes sobre a decisão do TJRJ de conceder foro privilegiado a Flávio Bolsonaro: