Direito Penal

A superlotação carcerária em tempos de Covid-19

Em nossa sociedade civilizada, uns nascemos vassoura, outros sujeira, mas ainda assim, todos igualmente impuros e falhos

superlotação carcerária
Crédito: Luiz Silveira/Agência CNJ

É da natureza humana esconder as suas vergonhas. Desde a alegoria bíblica de Adão e Eva, ao comerem o fruto da árvore da ciência do bem e do mal; passando pela criança, que, após praticar uma travessura, esconde o rosto com as mãos; e chegando, finalmente, à famosa metáfora de “varrer a sujeira para baixo do tapete”, como algo a ser escondido, disfarçado, sem que se encontre a solução derradeira. Em nossa sociedade civilizada, uns nascemos vassoura, outros sujeira, mas ainda assim, todos igualmente impuros e falhos.

Esse é o nó górdio de nosso sistema carcerário. Escolhemos, como sociedade, alguns para ocupá-lo, superlotando suas pútridas e fétidas masmorras. Outros tantos, ainda que cometam crimes, mesmo que eventualmente caiam em suas teias, representam uma ínfima parcela de sua imensa população. Eugênio Raúl Zaffaroni, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar[1], três importantes juristas argentinos (o primeiro deles foi ministro da Corte Suprema de Justicia de la Nación e, atualmente, é juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e um dos mais destacados criminólogos latino-americanos), apontam que uma das principais características do sistema penal é ser seletivo.

Culturalmente, escolhe-se quem será o cliente preferencial do sistema penal. Em primeiro lugar, os estereótipos penais, o criminoso ideal (no Brasil, por exemplo, embora negros representem cerca de 50% de nossa população, conforme o último censo, eles representam 65% da população carcerária[2]). Em segundo lugar, aqueles que, embora, não preencham o perfil clássico do criminoso, cometeram crimes tão graves, violentos, bárbaros, que  não podem ficar imunes ao sistema penal (pessoas, por exemplo, como Suzane von Richtofen, Alexandre Nardoni, ou goleiro Bruno, se pegos em um estelionato, ou levando droga para uma festa, talvez o sistema penal relevasse, mas não diante dos fatos pelos quais foram denunciados e condenados). Por fim, aqueles que perderam importantes disputas de poder, como é o caso do Mensalão e da Lava-Jato.

Não por acaso que Luigi Ferrajoli disse que a “história das penas é, sem dúvida, mais horrenda e infamante para a humanidade do que a própria história dos delitos: porque mais cruéis e talvez mais numerosas do que as violências produzidas pelos delitos têm sido as produzidas pelas penas e porque, enquanto o delito costuma ser uma violência ocasional e às vezes impulsiva e necessária, a violência imposta por meio da pena é sempre programada, consciente, organizada por muitos contra um[3]”.

Estima-se que o Brasil tenha, hoje, cerca de 820 mil pessoas privadas de liberdade. Desses, cerca de 337 mil estão presas provisoriamente, perfazendo uma fatia de mais de 41% da população total. Enquanto temos a sexta maior população do mundo, atrás de China, Índia, Estados Unidos, Indonésia, e Paquistão, no universo carcerário somos a terceira maior população, tendo à frente apenas Estados Unidos e China[4]. Isso, por si, já expõe o ritmo acelerado de aprisionamento que o Brasil vem experimentando.

O desgaste do estado do bem-estar social deu lugar, entre os anos 70 e 80, a um modelo econômico liberal na economia, mas conservador e rígido nos costumes, com ampliação de criminalização de condutas e consequente expansão da população carcerária. Isso se acentuou nos anos 90 com o auge da guerra às drogas e a explosão da violência urbana a ela associada.

Entretanto, nos últimos 15 anos, muitos países têm enfrentado de forma séria esse crescimento. A Europa, entre os anos 2000 e 2015, influenciada pelas diretrizes do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, reduziu em 21% sua população carcerária. As Américas, no mesmo período, registraram um aumento de 40%, muito influenciada pelo ritmo brasileiro. Enquanto os Estados Unidos aumentaram sua população carcerária em 14%, o Brasil aumentou incríveis 170%[5].

No cenário que está posto, o qual, em condições normais já representa motivo de preocupação para qualquer democracia verdadeiramente comprometida com ideais humanistas, em uma crise sanitária como a que vivemos, adquire contornos dramáticos. O Conselho Nacional de Justiça, órgão sem competência jurisdicional, vem, em sua missão de desenvolver agendas para o desenvolvimento do poder judiciário brasileiro, tentando resolver os gargalos do sistema carcerário. Assim foi, por exemplo, com as audiências de custódia, iniciativa primeiramente abraçada pelo CNJ para, depois, virar uma realidade no Código de Processo Penal.

No contexto da pandemia atual, em 17 de março, o CNJ emitiu uma recomendação com diretrizes sobre cinco pontos principais a serem observados na questão carcerária: redução do fluxo de entrada nas prisões; medidas preventivas para realização de audiências judiciais; suspensão das audiências de custodia; ação conjunta com os executivos locais para preparar planos de contingência e apoio aos planos decididos pelas  administrações penitenciárias em relação às visitas[6]. Como era se supor, as restrições às audiências de custódia e às visitas de familiares rapidamente foram implementadas. A mesma agilidade e interesse, entretanto, não se viu na redução do fluxo de entrada de pessoas na prisão. Vale dizer, o populismo penal viu no COVID um argumento a mais para sacrificar direitos do cidadão encarcerado e não ampliar um único dever do Estado.

O Departamento Penitenciário Nacional, agência vinculada ao Ministério da Justiça, tem mantido o controle da incidência de contaminação dentro do sistema penitenciário. Até hoje, menos de 23 mil pessoas foram testadas, o que representa um percentual de menos de 3% da população carcerária. Entretanto, quase 6 mil presos testaram positivo para o novo coronavírus, num percentual assustador de quase 25% dos testes realizados[7]. Em um exercício argumentativo, projetando-se o percentual para toda a população carcerária, teríamos cerca de 200 mil presos contaminados. Com isto, a população carcerária, que representa cerca menos de 0,4% da população brasileira, seria responsável por 10% de todos os casos de contágio até hoje notificados no país

Na última semana, o assunto se converteu no tema de discussões em diversas mesas de debates. Com a morte do ex-deputado Nelson Meurer, 78 anos, por COVID, condenado na Operação Lava-Jato, os holofotes foram apontados para o Supremo Tribunal Federal. Em duas oportunidades, o ex-deputado teve o pedido de prisão domiciliar negado. Ante as críticas, o gabinete do Min. Edson Fachin emitiu uma nota em que afirma que “as condições da prisão não indicavam um risco de contágio”[8].

Dois dias depois, o ex-ministro Geddel Vieira Lima obteve a prisão domiciliar, por decisão do Ministro Dias Toffoli, em que pontuou “o demonstrado agravamento do estado geral de saúde do requerente, com risco real de morte reconhecido, justifica a adoção de medida de urgência para preservar a sua integridade física e psíquica, frente à dignidade da pessoa humana”[9].

É muito mais uma decisão baseada na culpa, do que em uma verdadeira consciência humanista a nortear a justiça brasileira. Em matéria publicada na revista Época[10], apenas 5% dos pedidos de liberdade, apresentados na pandemia, foram concedidos pelo Supremo Tribunal Federal. Em mais de 2.700 casos apresentados, 150 foram deferidos, 2.300 negados e 300 aguardam julgamento.

Apesar de os casos notórios se relacionarem a figuras públicas proeminentes, essas são as exceções que confirmam a regra. O cenário carcerário brasileiro nunca permitiu grande otimismo. Agora, em meio à pandemia, eviscera a sua essência: um sistema absolutamente indiferente à criminalização da pobreza, essa sim, infelizmente, uma autêntica e eficiente política pública brasileira.

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[1]ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal: Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Ediar. 2002

[2] Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf

[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: RT. 2002. p. 356.

[4] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/17/cnj-registra-pelo-menos-812-mil-presos-no-pais-415percent-nao-tem-condenacao.ghtml

[5] Disponível em: https://carceraria.org.br/agenda-nacional-pelo-desencareramento/brasil-encarcera-em-ritmo-cada-vez-maior

[6] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/covid-19-cnj-emite-recomendacao-sobre-sistema-penal-e-socioeducativo/

[7] Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/covid-19-painel-de-monitoramento-dos-sistemas-prisionais

[8] Disponível em: https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/nota-do-gabinete-do-ministro-edson-fachin.pdf

[9] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=447616&ori=1

[10] Disponível em: https://epoca.globo.com/guilherme-amado/stf-concedeu-so-5-dos-pedidos-de-liberdade-na-pandemia-24533284