Recentemente, novas súmulas foram aprovadas no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Ao total, foram analisadas 43 propostas, e aprovadas 26 novas súmulas. Dessas 26 novas, doze foram aprovadas pelo Tribunal Pleno do Conselho.
Dentre os novos enunciados aprovados pelo Pleno está a Súmula 169, que afasta a aplicação do artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) ao processo administrativo fiscal. Assim está redigida a referida súmula:
O art. 24 do decreto-lei nº 4.657, de 1942 (LINDB), incluído pela lei nº 13.655, de 2018, não se aplica ao processo administrativo fiscal.
E assim está redigido o dispositivo legal objeto da Súmula:
Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.
Certamente causa surpresa a edição de Súmula que nega a aplicação de dispositivo legal vigente, válido e eficaz a um órgão administrativo com função judicante como o Conselho. Surpresa tanto maior quando se sabe que há mais de 20 anos a Lei do Processo Administrativo Federal (Lei 9.784/99) prevê a vedação de aplicação retroativa de nova interpretação (art. 2º, § único, inciso XII).
Não bastasse isso, é de se notar que a própria redação do dispositivo indica a sua plena aplicabilidade ao CARF. De um lado, o caput refere que a “revisão (…) quanto à validade de (…) processo cuja produção já se houver completado…”. Certamente não se está limitado aos atos administrativos, uma vez que é o próprio dispositivo que menciona processos que serão objeto de revisão. De outro lado, o parágrafo único menciona que as orientações gerais serão aquelas contidas em atos públicos de caráter geral ou em “jurisprudência (…) administrativa majoritária”. Certamente não se pode indicar que o parágrafo único faz referência à jurisprudência administrativa, mas, implicitamente, exclui àquela de natureza fiscal.
Não se pretende discutir o mérito do dispositivo e o que ele busca proteger. Outros já o fizeram em maior profundidade e melhor qualidade. De forma singela, pode-se afirmar que a Administração não pode alterar o seu entendimento e pretender que o posicionamento anterior simplesmente nunca existiu.
Esse tipo de contradição viola, a um só tempo, a moralidade administrativa e a proteção da confiança e da boa-fé dos administrados. Mais, a proibição do venire contra factum proprium faz com que a conduta pretérita da Administração vincule seus comportamentos futuros. Afinal, como afirmou o saudoso Professor Almiro do Couto e Silva, “a reiterada conduta da administração pública num determinado sentido, ainda que no exercício do poder discricionário, implica uma ‘autovinculação’.”[1] Ou, como sustenta Humberto Ávila:
“O Poder Executivo igualmente está vinculado à sua própria atuação passada, não podendo, sem justificativa, abandoná-la, sob pena de violação ao princípio da igualdade no tempo. Mesmo nos casos em que possa haver algum âmbito de discricionariedade, uma vez tendo ela sido exercida e continuamente firmada, a Administração não mais pode dela se afastar, salvo com um motivo para tanto”.[2]
Ou, ainda, Carlos Ari Sundfeld, tratando especificamente da aplicabilidade do artigo 24 ao direito tributário, defende que:
“O art. 24 proíbe que a administração tributária dê aplicação retroativa a nova interpretação sobre a legislação tributária, de modo que nenhuma revisão de validade de ato singular da autoridade (o lançamento, por exemplo) pode ser feita por mudança da orientação geral a respeito. Aliás, como se sabe, a proibição da irretroatividade da nova intepretação vai além dos simples casos de invalidação de atos administrativos, pois está prevista em termos amplos na Lei Federal de Processo Administrativo (art. 2º, parágrafo único, XIII) e no Código Tributário (art. 100, II, III e paragrafo único, e art. 146)”.[3]
Diante disso, pretender que um dispositivo que apenas reafirma a obrigatoriedade de observância da segurança jurídica, especificamente da proteção da confiança e da boa fé dos contribuintes não se aplica à jurisdição administrativa causa, reitere-se, surpresa.
No entanto, e com o intuito de contribuir para o debate sobre a aplicabilidade da LINDB ao processo administrativo fiscal, enumeram-se alguns questionamentos sobre quais outros dispositivos também poderiam ser considerados inaplicáveis ao processo administrativo fiscal.
Poder-se-ia questionar se o CARF pode editar Súmula que determina que o artigo 2º da LINDB não é aplicável ao processo administrativo. Sendo isso possível, poderiam os contribuintes, então, alegar o desconhecimento da legislação tributária para eximir-se do seu cumprimento?
Poder-se-ia indagar se o CARF pode editar Súmula que determine que a previsão de que a “lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior” não se aplica ao CARF. Sendo isso possível, teríamos no processo administrativo fiscal um verdadeiro espaço de aplicação de direito já revogado?
Poder-se-ia interrogar se o CARF pode editar súmula que determine que a previsão de que a “lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência” não se aplica ao Conselho. Sendo isso possível, teríamos a volta da repristinação no processo administrativo fiscal?
Poder-se-ia perguntar se o CARF pode editar súmula que determine que os conceitos de ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada, presentes na LINDB, não têm aplicação nos processos do CARF. Sendo isso possível, teríamos a mitigação da segurança jurídica de forma drástica no processo administrativo fiscal.
Por fim, poder-se-ia perquirir se o CARF pode editar súmula que determina que a lei em vigor não terá efeito imediato e geral no processo administrativo fiscal. Sendo isso possível, teríamos no CARF um espaço no qual a própria aplicabilidade do direito vigente ficaria condicionada à aceitação por parte do destinatário da norma?
A resposta foi dada pelo Prof. Carlos Ari Sundfeld, de maneira objetiva e clara:
“O que a Lei de Introdução contém são normas gerais de Direito, isto é, preceitos que, não sendo específicos do direito tributário, incidem também em seu âmbito, e isso justamente pelo fato de serem gerais”.[4]
Diante das considerações acima, pode-se afirmar que a Súmula 169 do CARF terá como efeito produzir exatamente aquilo que o dispositivo da LINDB pretendia combater: insegurança jurídica.
[1] COUTO E SILVA, Almiro. Conceitos Fundamentais do Direito no Estado Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2015, p. p. 376.
[2] ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 5a. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, pp. 661 e ss.
[3] SUNDFELD, Carlos Ari. LINDB: Direito Tributário está sujeito à Lei de Introdução reformada. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lindb-direito-tributario-esta-sujeito-a-lei-de-introducao-reformada-10082018
[4] SUNDFELD, Carlos Ari. LINDB: Direito Tributário está sujeito à Lei de Introdução reformada. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lindb-direito-tributario-esta-sujeito-a-lei-de-introducao-reformada-10082018