O voto de qualidade foi contestado por diversas ações diretas de inconstitucionalidades. Em virtude de possuírem o mesmo objeto, a ADI6399, proposta pelo Procurador-Geral da República, a ADI 6403, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB, e a ADI 6415, proposta pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), estão sendo julgadas em conjunto pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Neste breve texto, analisar-se-á a tese proposta pelo ministro Roberto Barroso e seus eventuais efeitos que a adoção de tal tese poderá acarretar.
Em seu voto, o ministro Barroso afirma que a alteração legislativa não violou os procedimentos estabelecidos pela Constituição, isto é, não houve “contrabando legislativo”, na alteração da Lei 10.522/2002. Da mesma forma, o ministro Barroso não vislumbra qualquer inconstitucionalidade na escolha pelo legislador em declarar o contribuinte vitorioso em caso de empate no julgamento administrativo, nos seguintes termos:
o legislador optou por mudar a sistemática de desempate, proibindo o voto de qualidade nos julgamentos relativos à determinação e à exigência do crédito tributário. Tal opção legislativa não é incompatível com a Constituição. Não há, no texto constitucional, a previsão de um método específico de solução de impasses em órgãos de contencioso administrativo. O legislador atuou dentro de legítima margem de discricionariedade.[1]
Continua o ministro Barros, afirmando a constitucionalidade da inclusão do artigo 19-E na Lei 10.522/2002, uma vez que
É legítima a adoção pontual, por lei, do princípio do in dubio pro contribuinte como critério de desempate no CARF. Embora esse critério também possa ser discutível, por dar ensejo, de igual forma, a questionamentos quanto ao equilíbrio entre as partes, pode ser justificado a partir de um amplo sistema constitucional de proteção de direitos e garantias fundamentais do contribuinte contra eventuais excessos cometidos pelo Estado. Em caso de empate, a presunção de legitimidade do ato administrativo é fragilizada pela incerteza quanto à interpretação e à aplicação das normas tributárias pela Administração.
O ministro Barroso ainda estabelece o equilíbrio entre o fisco e o contribuinte como um dos elementos centrais da relação para então determinar que a via judicial também poderá ser aberta à Fazenda Pública em caso de derrota na esfera administrativa. Consta do voto:
Possibilidade de a Fazenda ajuizar ação em caso de empate. Diante da substituição do voto de qualidade pelo critério de resolução da controvérsia em favor do contribuinte, há de se afirmar, em caso de empate, a possibilidade de a União ajuizar ação visando a restabelecer o lançamento tributário. Isso porque, nessa hipótese, o resultado favorável ao sujeito passivo decorre de mera ficção legal, e não de maioria de votos acolhendo a sua tese, o que evidencia o interesse de agir da Fazenda Nacional. Medida necessária para resguardar o equilíbrio das relações entre o Fisco e o contribuinte.
Ao final, o ministro Roberto Barroso propõe a fixação da seguinte tese:
É constitucional a extinção do voto de qualidade do Presidente das turmas julgadoras do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), significando o empate decisão favorável ao contribuinte. Nessa hipótese, todavia, poderá a Fazenda Pública ajuizar ação visando a restabelecer o lançamento tributário.
A tese proposta pelo ministro Barroso apresenta problemas fundamentais, mas se chama a atenção de apenas dois, por amor à brevidade.
De um lado, a tese proposta estimula a litigiosidade em matéria tributária. Diante de um Poder Judiciário já assoberbado de trabalho, a tese proposta pelo ministro Barroso tem como consequência provável o aumento das demandas tributárias.
Este fato foi notado em excelente texto publicado neste JOTA por Michell Przepiorka, Bruno Bontempo, Rinaldo Braga e Daniel Gomes. Além disso, como bem demonstram os estudos e eventos do Observatório da Macrolitigância Fiscal, coordenado pelos professores Lucas Bevilcqua e Rafael Fonseca, vinculado ao IDP, o direito tributário já sofre com o excesso de litigância – tanto administrativa quanto judicial – de forma que a instituição de mais uma fonte de discussão judicial em matéria tributária não é recomendável.
Em um momento no qual se buscam instrumentos de solução consensuais de controvérsias tributárias – como os projetos de transação e arbitragem – criar mais uma caminho de litigiosidade em matéria tributária não é recomendável.
De outro lado, a tese proposta retira a importância e a autoridade do processo administrativo. Assim o é, uma vez que a decisão tomada no PAF poderá ser rediscutida no Poder Judiciário, podendo ser revista, tanto em seus fundamentos fáticos quanto em sua dimensão jurídica.
Ainda, a tese proposta pelo ministro Barroso devolve ao Judiciário a integralidade questões técnicas e complexas que são extensivamente analisadas no processo administrativo fiscal. Quer isso dizer que todo o manancial probatório, ainda que possa ser utilizado, pode ser questionado pelas partes envolvidas. O peso e o valor dos processo administrativo e das provas nele produzidas ainda é tema que terá que ser definido pelo Judiciário, caso a tese do ministro Barroso seja vitoriosa.
Como é sabido, o Conselho é composto por técnicos de reconhecida capacidade, que analisam os feitos, em sua grande maioria, à exaustão, com a participação ativa tantos dos demais conselheiros quanto das partes envolvidas. Devolver todo esse manancial ao Judiciário, que poderá desconsiderá-la diante da produção de novas provas, é diminuir a importância da jurisdição administrativa fiscal.
Em suma, pode-se afirmar que a tese proposta pelo ministro Barroso pode, a um só tempo, prejudicar tanto a jurisdição administrativa em matéria tributária e quanto prejudicar o Poder Judiciário. De um lado, enfraquece e retira a autoridade do CARF enquanto órgão para a solução de controvérsias tributárias, permitindo a rediscussão de todas as matérias perante o Poder Judiciário. De outro lado, permite que a Fazendo Pública busque nova discussão de questões já resolvidas na esfera administrativa, devolvendo sua discussão perante um Poder Judiciário já assoberbado de trabalho.
Por fim, deve-se notar que a tese proposta apresenta outros problemas, tanto de ordem normativa quanto de ordem institucional. Esses problemas serão objeto de coluna própria.
[1] Sobre o assunto, já tivemos a oportunidade de nos manifestar em sentido semelhante: “Não há na Constituição, portanto, obrigação de instituição de uma jurisdição paritária para a solução dos conflitos fiscais. É o que se pode denominar de margem de conformação estrutural, uma vez que nada há no texto constitucional que obrigue ou proíba em relação à estruturação do CARF. Se a Constituição não obriga ou proíbe, então garante a liberdade ao legislador. Quer isso dizer que o legislador possuía uma ampla margem para definir a organização da jurisdição administrativa.” Cf. ADAMY, Pedro. Voto de Qualidade no CARF – Violação ao Critério Paritário – Considerações de Lege Ferenda. Revista Direito Tributário Atual, Vol. 37, 2017, p. 372. Disponível em: https://ibdt.org.br/RDTA/wp-content/uploads/2017/06/Pedro-Adamy.pdf