Hoje voltamos a tema já recorrente neste espaço1, qual seja, as nulidades materiais do lançamento. Para tanto, trazemos a exame acórdão proferido por turma da Primeira Seção de Julgamento do CARF que, por maioria de votos, decidiu por cancelar a autuação para cobrança de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS por alegada omissão de receitas ante a verificação de que “o erro na subsunção do fato ao critério material da regra matriz de incidência (…) constitui vício material impossível de ser validado” (Acórdão nº 1402-003.233).
A controvérsia aqui examinada decorreu de auto de infração lavrado para cobrança de IRPJ e seus reflexos em função da suposta prática de omissão de receitas. Entretanto, ao descrever os fatos que deram ensejo o lançamento, o Fisco relatou que a Contribuinte teria emitido indevidamente notas fiscais eletrônicas de entrada para “acobertar operações de devoluções de venda”. Ainda, esclareceu que a Contribuinte teria apropriado créditos de IPI em face de tais devoluções, nos termos do art. 229 do Regulamento do Imposto sobre Produtos Industrializados – RIPI.
Ao analisar a operação, o Fisco entendeu ter sido incorreta a emissão de notas fiscais de entrada pela Contribuinte, na medida em que este procedimento somente seria possível quando da devolução feita por “pessoa física ou jurídica não obrigada à emissão de nota fiscal” (art. 232 do RIPI), o que não era o caso. Assim, como a devolução seria de pessoa jurídica obrigada à emissão de nota fiscal, os documentos emitidos pela Contribuinte deveriam ser considerados “inidôneos”, nos termos do art. 394, I do RIPI.
Destarte, embora toda a fundamentação legal utilizada no auto de infração tenha se baseado em violação aos dispositivos do RIPI com relação aos procedimentos de devolução de mercadorias, a autuação se deu para fins de cobrança de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS, pois no entendimento do Fisco estar-se-ia diante da prática de omissão de receitas.
Ao verificar tal inconsistência entre os fundamentos de fato e de direito apresentados na autuação, entendeu a Contribuinte por suscitar a nulidade do auto de infração baseado no flagrante “erro na identificação do dispositivo legal violado”, ou seja, o fato descrito não se encaixava no critério material apontado razão para cobrança questionada.
Tal argumento foi negado pela decisão de piso sob o fundamento de que “o erro no enquadramento legal da infração não implica nulidade do auto de infração quando resta evidenciado, ante a descrição dos fatos nele contida e as contraposições apresentadas na impugnação, não houve preterição do direito de defesa”.
Ou seja, embora reconhecido expressamente pela Delegacia Regional de Julgamento – DRJ, o erro no enquadramento legal apontado na autuação em face dos fatos descritos, o órgão julgador decidiu por superar tal vício ante a alegação de que a descrição contida seria suficiente para sustentar a autuação, ainda mais considerando que a Contribuinte foi hábil na apresentação de impugnação o que, em tese, seria prova suficiente da ausência de prejuízo à defesa da Contribuinte.
Em sede de recurso voluntário, foi reiterada preliminar de nulidade da autuação pois a “falta de correlação entre a conduta praticada e a norma legal indicada como infringida desrespeitaria o princípio da motivação”, implicando em violação ao disposto no art. 142 do CTN. Tal argumento levantado pela Contribuinte nos parece correto na medida em que, como sabido, qualquer ato administrativo manter coerência entre os fatos/condutas descritos e seus fundamentos legais, conforme bem se depreende da lição de Di Pietro2 ao explicar que “o princípio da motivação exige que a Administração Pública indique os fundamentos de fato e de direito de suas decisões”. Com efeito, não basta identificar a conduta objeto do ato, mas sim qualificar devidamente aquela conduta dentro da norma supostamente violada e apta a gerar a cobrança fiscal, inclusive sob pena de violação à legalidade.
A turma do CARF, a exemplo da DRJ, reconheceu de forma imediata que a fundamentação legal utilizada no lançamento não mostrava-se coerente com os fatos descritos como fundamentos à cobrança, pois enquanto a legislação abordava questões relativas ao descumprimento de obrigações acessórias sob o ponto de vista do IPI, a cobrança fundamentava-se na alegação de omissão de receitas, descortinando fato gerador do IRPJ, CSLL, PIS e COFINS.
No entanto, ao contrário do decidido pela DRJ, o voto condutor da decisão proferida pelo CARF afirmou ser “de fundamental importância a verificação da motivação da exigência fiscal, se é adequada aos fatos e também à norma que a embasou, para que se possa definir a linha divisória entre a legalidade da exigência e o direito do contribuinte”, de modo que ser imprescindível a necessidade de vinculação entre o “fato material da irregularidade fiscal (…) com a norma legal disciplinadora”.
Note-se que, acertadamente, o acórdão não tentou “salvar” a autuação e reclassificar a infração de omissão de receitas para não comprovação das devoluções de venda. Ao contrário, a decisão foi firme no sentido de afirmar que “inexistindo subsunção dos fatos à norma, não precede a violação daquela norma jurídica invocada”.
Assim, afirmando a necessidade de atenção à devida subsunção dos fatos à norma, com fundamente no disposto nos artigos 10, IV do Decreto nº 70.235/72 e 142 do CTN, por maioria de votos, os Conselheiros entenderam por seguir o voto condutor pela declaração de nulidade do auto de infração por força do vício insanável causado pela “imprecisão da motivação e a determinação da matéria tributável, pela não subsunção dos fatos à regra matriz de incidência”, afirmando-se que tal situação enseja a contaminação por “vício material” do auto de infração, não sendo possível aferir a violação ao critério material da regra matriz.
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1 https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-do-carf/importancia-em-decifrar-o-vicio-que-cancela-o-lancamento-19032018
2 Di Pietro, Maria Sylvia, in Direito Administrativo, Ed. Atlas, 25ª Edição, p. 82.