Como sabido, o artigo 170-A[1] do Código Tributário Nacional (CTN) veda a possibilidade de compensação tributária antes do trânsito em julgado da ação versando sobre o crédito a ser empregado na compensação. Tal dispositivo, inserido por intermédio da Lei Complementar nº 104/2001, veio a eliminar a prática até então corriqueira de Contribuintes em realizar compensações com créditos tributários com base em tutelas provisórias e, portanto, antes da confirmação da efetiva certeza quanto ao direito creditório pleiteado.
Assim, o referido comando veio a prestigiar a segurança jurídica em procedimentos de compensação, refletindo um entendimento que até então vinha sendo reverberado nos tribunais. Tal dispositivo nunca teve o seu fundamento de constitucionalidade abalado, de modo que se trata de norma cogente e plenamente eficaz no ordenamento jurídico, tendo os Contribuintes se conformado à aplicação dos seus efeitos, mesmo que isso represente uma demora maior na utilização de certos créditos tributários cujo direito é praticamente certo.
Considerando tal cenário, chama atenção o entendimento adotado de forma unânime por turma ordinária do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, ainda em 2018, no sentido de considerar válida a compensação ocorrida antes do trânsito em julgado em relação ao direito em relação ao crédito utilizado em tal compensação.
Com efeito, naquela ocasião decidiu a turma da Terceira Seção do CARF que “embora o pedido de compensação perpetrado pelo contribuinte tenha se contraposto à literalidade do art. 170-A do CTN, ao final do processamento da lide por ele proposta foi julgada procedente, com base em precedente vinculante do STF (RE nº 357.950), o que, por sua vez, faz convocar em seu favor o disposto nos artigos 489, §1º, inciso VI, 926 e ss., todos do CPC/2015, bem como o disposto no art. 62, §1º, inciso II, da alínea “b” do RICARF e, ainda, o prescrito no art. 2º, inciso V da Portaria PGFN nº 502/2016. Recurso voluntário provido para sujeitar a Administração Pública ao precedente vinculante do STF (RE nº 357.950). Pedido de compensação a ser analisado pela instância competente apenas para fins de apuração quanto à adequação do montante compensado” (Acórdão nº 3402-005.025).
Conforme exposto no relatório do referido acórdão, o processo que em questão envolveu despacho decisório que não homologou compensação realizada pelo Contribuinte em face da “inexistência do direito creditório indicado”, tendo a Delegacia Regional de Julgamento – DRJ, confirmado o teor do despacho sob o argumento de que “a compensação de crédito oriundo de decisão judicial somente pode ser efetuada após o trânsito em julgado da respectiva sentença, a teor do disposto nos artigos 170-A do CTN e 74 da Lei nº 9.430/96″.
Em suas razões recursais, sustentou o Contribuinte que a decisão judicial proferida em sede de mandado de segurança assegurava direito “irrestrito” ao crédito de PIS e COFINS, apurado em face de pagamentos a maior pelo inconstitucional alargamento da base de cálculo de tais contribuições pela Lei nº 9.718/98.
Ao analisar o caso em sede de recurso voluntário, o Conselheiro-relator apresentou percuciente raciocínio no sentido de relativizar a regra de “tudo ou nada” emanada do comando colocado pelo artigo 170-A do CTN.
Em seu voto, o Conselheiro-relator destacou que o direito creditório decorria de tese jurídica que há muito já havia sido decidida pelo Supremo Tribunal Federal – STF, de forma favorável aos Contribuintes, tendo sido reconhecido que o alargamento da base de cálculo do PIS e da COFINS por intermédio do art. 3º, §1º da Lei nº 9.718/98, seria inconstitucional em face da redação do artigo 195, I da Constituição Federal vigente à época da edição da referida lei. Assim, poderia desde logo se vislumbrar a grande probabilidade – para não dizer certeza -, da procedência do pleito do Contribuinte em ação própria para o reconhecimento do direito à restituição e, por consequência, compensação dos valores de PIS/COFINS recolhidos a maior com base no art. 3º, §1º da Lei nº 9.718/98.
Ato contínuo, referiu o Conselheiro-relator que a ação própria movida pelo Contribuinte acabou por transitar em julgado apenas após longos dezesseis anos de litígio (ou seja, após a realização das compensações questionadas), tendo a decisão final confirmado o pleito apresentado, razão pela qual dúvidas não remanesceriam em relação ao direito do Contribuinte em relação ao crédito de PIS e COFINS (embora ainda passível de análise o quantum efetivo).
Destarte, o cerne da discussão travada limitava-se à análise da medida adotada pelo Contribuinte de realizar as compensações antes que certificado o trânsito em julgado da demanda que reconheceu o direito ao crédito, em frontal violação ao disposto no art. 170-A do CTN.
Vê-se, portanto, que a disputa encerrava um necessário contraponto entre a aplicação estrita de uma norma que condicionava a utilização do crédito ao trânsito julgado (art. 170-A) e o direito material inequívoco do Contribuinte em relação ao crédito em discussão, mesmo que pendente decisão final definitiva no processo individual movido pelo Contribuinte.
A enfrentar tal situação, o Conselheiro-relator tratou de destacar a evolução do sistema de precedentes no Direito Brasileiro, tendo concluído que havendo decisão enquadrando-se em uma das hipóteses do artigo 927[2] do Código de Processo Civil, ou seja, decisões proferidas com efeitos vinculantes aos juízes e tribunais, então haveria a possibilidade de se relativizar a regra impeditiva à compensação antes do trânsito em julgado colocada no art. 170-A do CTN. Neste ponto, importante transcrever o trecho do voto do Conselheiro-relator do caso:
“(…) é possível afirmar que toda a discussão aqui travada é decorrente, portanto, da morosidade na prestação da atividade judicativa (no presente caso, por exemplo, são mais de 15 anos para as resoluções judicial e administrativa), bem como do já citado status de fonte material que hoje é inegavelmente atribuído aos precedentes vinculantes. Apesar das inúmeras críticas que esse abrasileirado modelo de stare decisis pode sofrer a questão é uma só: tal sistema é fato consumado em nosso ordenamento jurídico, haja vista a existência de inúmeros institutos a prestigiar um aparente modelo de case law, tais como a repercussão geral, o julgamento de recursos sob o rito de repetitivos, as súmulas vinculantes, os incidentes de resolução de demandas repetitivas e de assunção de competência, o efeito erga omnes e vinculante atribuído às decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, dentre tantos outros que poderiam ser aqui listados.”
E, de fato, tal raciocínio faz todo o sentido sob o ponto de vista não apenas processual-tributário, como também sob o ponto de vista da razoabilidade e economia aos cofres públicos. Isso porque decisões pela não-homologação de compensações com créditos tributários, cujo reconhecimento em favor dos Contribuintes já foi afirmado pelo Judiciário em decisões proferidas com efeitos vinculantes, apenas em função do óbice previsto no artigo 170-A do CTN, tratam-se decisões que certamente serão objeto de revisão na esfera judicial, justamente em função do atualmente disposto no artigo 927 do CPC, atraindo, inclusive, o risco de sucumbência elevada para os cofres públicos.
Assim, nos parece que acertou brilhantemente o CARF no julgado acima apresentado ao consignar a “prevalência da ratio decidendi de precedente pretoriano de caráter vinculante com a adequação do disposto no art. 170-A do CTN”, razão pela qual espera-se que em situações similares tal entendimento seja fielmente adotado por outras turmas daquele órgão julgador.
A questão que agora se coloca é: em face dos graves efeitos econômicos decorrentes do impacto da pandemia do Covid-19, seria possível considerar uma flexibilização ainda maior no que tange à regra do artigo 170-A do CTN, ou seja, permitir a compensação antes do trânsito em julgado mesmo em casos que envolvam créditos cujo reconhecimento não decorre de decisões sujeitas às hipóteses do art. 927 do CPC?
Não há dúvidas sobre os graves efeitos econômicos decorrentes da Covid-19. Atividades industriais e comerciais paradas, desaceleração da economia, demissões em massa e um empobrecimento geral de empresas e cidadãos. No campo tributário, o impacto de todo este novo cenário é uma evidente dificuldade no cumprimento de obrigações tributários, tendo em vista a restrição de crédito e o menor fluxo financeiro.
Neste ponto, uma das alternativas colocadas à disposição dos Contribuintes é justamente a utilização da compensação como instrumento a mitigar a situação periclitante de Contribuintes em face do cenário decorrente da Covid-19 e, assim, ajudar na recuperação do fluxo de caixa das empresas durante o período mais crítico da crise.
Ocorre que em muitos casos, por força de recursos e medidas protelatórias por parte do Fisco, muitos Contribuintes atualmente se veem impossibilitados de dispor de tal alternativa, tendo em vista a regra impeditiva colocada no art. 170-A do CTN. Neste ponto, talvez o exemplo mais evidente seja o grande número de Contribuintes com decisões pendentes da certificação de trânsito em julgado em relação ao direito à restituição de valores de PIS e COFINS apurados em face da inconstitucional inclusão do ICMS na base de cálculo de tais contribuições, conforme já decidido pelo STF nos autos do RE 574.706, julgamento proferido sob regime de repercussão geral.
Em artigo ainda inédito em que analisa a aplicação do artigo 170-A do CTN em um cenário de pandemia do Covid-19, o Prof. Arthur Maria Ferreira Neto[3] destaca com propriedade que os comandos normativos foram projetados para aplicação em “casos normais e ordinários”. Neste contexto, em situações extremas como a que estamos vivendo – provavelmente a crise econômica, social e de saúde mais grave do País -, em juízo de equidade, possível seria ao magistrado “avaliar a situação concreta e nela identificar a presença de elementos particulares de anormalidade ou excepcionalidade, assim fundamentos, expressa e publicamente a necessidade de se afastar daquele caso concreto específico a incidência do que está previsto no texto da lei”, atuando a equidade neste cenário como um instrumento a mitigar os “efeitos colaterais nefastos que surgem quando da aplicação acrítica e imponderada da lei diante de circunstância anormal e de exceção”.
Tal raciocínio é extremamente adequado à situação posta na presente coluna. Com efeito, os graves efeitos econômicos decorrentes da Covid-19 impactaram seriamente a capacidade de adimplemento das obrigações, inclusive tributárias, de diversos Contribuintes. De igual maneira, muitas das medidas apresentadas pelo Governo Federal como a postergação da data de vencimento de alguns tributos são ainda insuficientes para fazer frente à enorme redução da atividade econômica, de modo que a utilização de créditos tributários para adimplemento via compensação é, sem dúvida, uma alternativa atrativa e muito mais econômica aos Contribuintes.
Neste sentido, importante a lembrança de Ferreira Neto ao destacar que a inserção da regra do art. 170-A do CTN veio na esteira das disposições da Súmula 212 do STJ, a qual fixou o entendimento de que a compensação tributária não poderia ser admitida por decisões precárias (antecipação de tutela), tendo em vista a possível insegurança jurídica que tal situação poderia ocasionar, tendo em vista a probabilidade de reversão da medida, especialmente se considerarmos que a grande maioria de decisões relativas à matéria tributária demanda análise sob o ponto de vista constitucional, sendo o longo o caminho a percorrer até a chegada no STF.
Assim, o artigo 170-A do CTN tem a sua inserção realizada com fundamento na segurança jurídica, de modo a restar assegurado que compensações sejam realizadas uma vez declarada de forma definitiva a certeza em relação ao direito creditório pleiteado em juízo.
Neste sentido, em linha com o entendimento exposto pelo CARF acima apresentado, nos parece que a existência de decisões proferidas sob efeitos vinculantes e dotadas de eficácia erga omnes, justamente seriam suficientes para assegurar a segurança jurídica que o artigo 170-A do CTN e Súmula 212 do STJ tinham por objetivo. Conforme bem exposto por FERREIRA NETO[4], “nas situações em que já haja decisão vinculante de tribunal superior, reconhecendo a existência de determinado indébito tributário, sequer deveria persistir interesse processual para o contribuinte ir a Juízo para veicular, de modo redundante, pleitos individuais com esse mesmo propósito”.
Ora, se a rigor a existência de decisões vinculantes e dotadas de efeitos erga omnes têm, em tese, o condão de afastar o próprio interesse processual de se pleitear em juízo, argumento este com que concordamos na íntegra com a posição de Ferreira Neto, nos parece que mais forte ainda mostra-se o argumento pelo afastamento da regra colocada no artigo 170-A do CTN nas situações em que o Contribuinte já pleiteia em juízo a repetição do indébito, especialmente naquelas situações em que a certificação do trânsito em julgado decorre de situações alheias às ações do Contribuinte (morosidade do Judiciário, recursos protelatórios do Fisco, etc.), conforme destacado no voto proferido pelo Conselheiro-relator no acórdão hoje em comento.
Em assim sendo, verificando-se que em “condições normais” já se mostra razoável admitir a flexibilização da regra do artigo 170-A do CTN a fim de viabilizar as compensações antes do trânsito em julgado, observadas a condicionante de existência de prévia decisão vinculante dotada de efeitos erga omnes, a crítica situação econômica decorrente da pandemia do Covid-19 reforça ainda mais a possibilidade de relativização do artigo 170-A do CTN.
Não obstante, tal raciocínio, em situações extremas como a presente, nos parece possível ser aplicável inclusive em casos envolvendo discussões ainda pendente de decisões com efeitos vinculantes, desde que efetivamente comprovada a extrema dificuldade de adimplemento das obrigações pelo Contribuinte e, ainda, mediante apresentação de contracautelas mínimas a assegurar o eventual ressarcimento ao Fisco em caso de não comprovação do crédito utilizado.
De mais a mais, fazendo menção também ao recente alerta feito por Pedro Adamy[5] de que em função dos impactos decorrentes do Covid-19 “os casos futuros deverão levar em consideração que muitos contribuintes foram concreta e efetivamente proibidos de exercerem normalmente as suas atividades”, nos parece que o momento atual causado pela pandemia da Covid-19 é situação que teria o condão de reforçar ainda mais o necessário afastamento das disposições do artigo 170-A do CTN, não apenas naquelas hipóteses em que o crédito pleiteado pelos Contribuintes já teve o seu reconhecimento veiculado em decisão de efeitos vinculantes e erga omnes, conforme argumento já desenvolvido no âmbito do CARF em 2018, ou seja, em época de “normalidade”.
Concluindo, e conforme lembrado por Ferreira Neto de que “nesse contexto pandêmico, na exata medida em que o Judiciário deverá agir para minimamente preservar o salário de trabalhadores nos rompimentos de contrato trabalho (…), no mesmo sentido deverá esse órgão mobilizar seus esforços para (…) tomar medidas necessárias para preservação de empresa (…), dentre as quais a possibilidade de afastar a incidência do artigo 170-A do CTN”, entendemos que a mesma advertência ser feita em relação aos conselheiros dos CARF quando enfrentarem casos de compensações antes do trânsito em julgado realizadas durante a vigência dos decretos de calamidade emitidos por força da pandemia do Covid-19.
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[1] Art. 170-A. É vedada a compensação mediante o aproveitamento de tributo, objeto de contestação judicial pelo sujeito passivo, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão judicial.
[2] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
- 1º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1º , quando decidirem com fundamento neste artigo.
- 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
- 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
- 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
- 5º Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
[3] FERREIRA NETO, Arthur Maria, “Pandemia da Covid-19 e a possibilidade excepcional de compensação antes do trânsito em julgado” (artigo inédito)
[4] FERREIRA NETO, Arthur Maria, “Pandemia da Covid-19 e a possibilidade excepcional de compensação antes do trânsito em julgado” (artigo inédito)
[5] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-do-carf/a-crise-e-os-futuros-julgamentos-do-carf-05052020