Adriano Massuda

A <a href="https://www.jota.info/eleicoes">eleição presidencial</a> que se aproxima, a primeira após a tragédia causada pela pandemia da Covid-19, abre uma janela de oportunidade para articular um amplo espectro de forças da sociedade brasileira em torno de uma agenda para a saúde no Brasil que tenha como vértice o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, o SUS.
Não se trata de uma eleição qualquer. Além do caráter plebiscitário em relação à defesa do Estado democrático de Direito, o que está em jogo também é o legado da Constituição de 1988 diante dos inúmeros retrocessos promovidos pelo governo de Jair Bolsonaro, e da ameaça que representa sua eventual reeleição.
O SUS é um dos mais importantes frutos da Constituição de 1988. A luta pela retomada dos direitos políticos, após a ditadura militar, também projetou a aspiração da sociedade brasileira pela ampliação de direitos sociais. Na saúde, esse desejo se materializou na afirmação da saúde como um direito de cidadania e um dever do Estado, e na aprovação dos princípios que sustentam o SUS: universalidade, integralidade e participação social.
Não foram poucos os avanços promovidos pelo SUS. Em apenas 25 anos, a busca pela universalização do acesso à saúde modificou a situação de saúde no país. Entre 1990 e 2015, a expectativa de vida no país cresceu dez anos (de 65 para 75 anos) e taxa de mortalidade infantil caiu 75% (de 53 para 12 por mil nascidos vivos). Evidências demostram que esses resultados estão diretamente associados à expansão de ações e serviços implementados pelo SUS, com destaque para a estratégia Saúde da Família.
A combinação da universalidade e integralidade também possibilitou ampliar o escopo de serviços ofertados à população. Da vacina ao transplante, o SUS ganhou reconhecimento internacional por ter em uma ponta controlado doenças preveníveis e, na outra, ao organizar um dos maiores sistemas públicos de transplantes de órgãos e tecidos humanos do mundo, por ter dado maior expectativa de vida a pessoas com doenças sem alternativas terapêuticas.
A participação social também teve papel importante na formulação e implantação de políticas no SUS. Além de conselhos e conferências de saúde terem permitido à população fiscalizar a atuação de governos na saúde, esses espaços oportunizaram canalizar a pressão de movimentos sociais, levando a importantes inovações no desenho de programas de saúde. Por exemplo, em resposta à mobilização de portadores do HIV, o governo brasileiro foi pioneiro na oferta gratuita de medicamentos antirretrovirais, o que alterou o curso da epidemia de Aids no país e serviu de referência para o mundo.
Porém, apesar dos seus inúmeros méritos, a percepção geral do conjunto da sociedade brasileira em relação ao SUS se deu historicamente pelas suas falhas e fragilidades. A percepção negativa criava dificuldades para reunir apoio em torno da adoção de medidas necessárias para garantir o seu fortalecimento.
Superar as fragilidades estruturais do SUS não é tarefa simples. Além de dispor de capacidade técnica para formular modelos de atenção que sejam eficientes para atender ao conjunto das necessidades de saúde, o que o movimento sanitário brasileiro demostrou com inúmeras evidências ser capaz de fazer, é crucial construir um amplo apoio da sociedade brasileira para enfrentar problemas que derivam em grande parte do modo como se estruturam o Estado e a sociedade no país.
A distribuição do financiamento da saúde no Brasil é um exemplo. Em 2019, o gasto em saúde chegou a 9,6% do PIB, índice superior à média dos países da OCDE. Entretanto, diferentemente da maior parte dos países ricos, em que o gasto público compõe cerca de 70% dos recursos para a saúde, garantindo que seus sistemas públicos alcancem praticamente a totalidade da população, no Brasil o gasto público que financia o SUS não passa de 42% do total. Os outros 58% destinam-se ao setor privado, concentrado em apenas 25% da população.
A desproporção de recursos financeiros disponíveis aos setores público e privado da saúde no Brasil se expressa de maneira mais acentuada na atenção especializada e hospitalar, área de maior fragilidade do SUS. As diferenças na distribuição de leitos hospitalares e na qualidade da assistência prestada entre regiões do país e, principalmente, setores público e privado ficaram escancaradas durante a pandemia.
Dessa maneira, apesar de o SUS ter levado o Brasil a obter avanços nos indicadores de saúde superiores a países de similar condição de renda, não foram criadas as condições necessárias para que o sistema de saúde brasileiro superasse algumas características de nações com grandes desigualdades socioeconômicas, como é comum na América Latina. Nesses países, a fragmentação entre setores público e privado e a segmentação do acesso a serviços assistenciais em função da renda da população fazem com que as iniquidades da sociedade se reflitam nas condições de saúde da população.
Por outro lado, se as fragilidades do SUS têm se exacerbado desde que o país entrou numa complexa crise política e econômica, pelas rígidas medidas de austeridade fiscal adotadas no governo Temer, e pela desastrosa coordenação do Ministério da Saúde sob o governo Bolsonaro, a importância de o país dispor de um sistema de saúde com o SUS nunca foi tão reconhecida pela sociedade brasileira como na resposta à Covid-19.
Nesse contexto, o caráter da atual eleição presidencial pode abrir um momento histórico para reunir uma frente ampla de apoio ao SUS, contemplando um amplo e diversificado segmento da sociedade brasileira. Não é fácil, mas é necessário construir consensos que garantam que candidaturas progressistas firmem compromissos reais para a consolidação do SUS seguindo os princípios constitucionais que o estabeleceram.
Três décadas após a Constituição Federal ter estabelecido as bases para um novo projeto de sociedade no Brasil, agora também se acumulam evidências de que fortalecer o SUS é o melhor caminho para atender ao conjunto das necessidades de saúde da população brasileira, conferir proteção ao país diante de emergências de saúde e alocar com mais eficiência os recursos para atender quem mais precisa. É necessário, porém, que a saúde esteja na agenda prioritária do próximo presidente da República, que tenha compromisso com a defesa da vida e com o desenvolvimento do país.

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JOTA

Saúde precisa estar na pauta prioritária do próximo presidente da República

Uma agenda para a saúde no Brasil: frente ampla em defesa do SUS

Caráter da atual eleição presidencial pode abrir um momento histórico para reunir uma frente ampla de apoio ao SUS