Adriano Massuda

Além de emergências sanitárias de impacto global, como a Covid-19 evidenciou de maneira dramática, os sistemas de saúde em todo o mundo têm sido cada vez mais pressionados por fatores diversos. O envelhecimento populacional, a maior prevalência de doenças crônicas e a incorporação de novas tecnologias de alto custo têm provocado um aumento crescente nos gastos em saúde, ameaçando a sustentabilidade de sistemas universais de saúde e ampliado as desigualdades na atenção à saúde entre populações.
No Brasil, os municípios foram os grandes protagonistas da implementação do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sus">Sistema Único de Saúde</a> (SUS). Porém, cabe a pergunta: qual deve ser o papel dos municípios na gestão do SUS frente aos atuais e futuros desafios dos sistemas de saúde?
A descentralização da gestão de sistemas de saúde do âmbito nacional para esferas subnacionais de governo foi uma estratégia adotada por diferentes países buscando melhorar a eficiência e a qualidade dos serviços, bem como aprimorar a capacidade de controle local sobre o funcionamento do sistema. Porém, na maioria das situações, a descentralização alcançou o âmbito regional. Poucos países descentralizaram a gestão do sistema para esfera municipal, como o Brasil.
A municipalização trouxe importantes avanços para a gestão do sistema de saúde brasileiro. Os municípios foram os maiores responsáveis pela expansão da rede assistencial promovida pelo SUS no Brasil. Além de capilarizar a rede assistencial, possibilitaram ampliar a participação social: em cada um dos municípios brasileiros há um conselho municipal de saúde que deve fiscalizar o funcionamento do sistema e realizar conferências para aprovar diretrizes para a gestão do SUS no âmbito municipal.
Além disso, os municípios produziram as mais importantes inovações no modelo de atenção em saúde brasileiro. A saúde da família, os centros de atenção psicossocial (CAPS), a organização de redes de atenção, entre tantos outros arranjos organizacionais que transformaram a assistência à saúde no país, nasceram de experiências locais, formuladas e implementadas em municípios, antes de se tornarem políticas nacionais de saúde.
Porém, o protagonismo municipal teve seu custo. Apesar de ser o ente federativo com menor capacidade arrecadatória, desde a implementação do SUS a participação dos municípios no gasto governamental em saúde tem sido a que mais cresce.
Entre 1990 e 2018, o percentual municipal das despesas públicas em saúde saltou de 12% para 32%, enquanto a participação federal caiu de 73% para 43%, e os estados passaram de 15% para 25%. Com isso, a média do gasto próprio de municípios com a saúde chegou a 24%, quase 10% acima do mínimo de 15% estabelecido no ano 2000 pela Emenda Constitucional 29, referendado pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp141.htm">Lei Complementar 141</a>, em 2012.
Além de comprometer despesas em outras áreas da municipalidade, a ampliação da base do financiamento de sistema de saúde por fonte de recursos municipais — num país com 5.570 municípios, dos quais 70% têm população inferior a 20 mil habitantes — amplia a fragmentação das despesas e reduz a eficiência no uso dos recursos existentes, evidenciando limites do municipalismo autárquico adotado na organização do SUS.
As diferenças entre municípios perpetuam desigualdades na capacidade de oferta de cargos e carreiras para profissionais de saúde, na compra de medicamentos e produtos para saúde, bem como na oferta assistencial promovida pelo SUS. Principalmente em serviços de alta complexidade, que se concentraram em poucos centros urbanos e no setor privado. Também desafiam o inexorável processo de transformação digital pelo qual o sistema de saúde deve passar nos próximos anos.
Rever o papel dos municípios na gestão da SUS passa por estabelecer um novo pacto federativo tripartite e um modelo de governança regional, sem perder os avanços conquistados pela municipalização, como a capilarização da rede assistencial e do controle social. Porém, a experiência acumulada de tentativas de regionalização do SUS ao longo das últimas duas décadas demonstra que não se constrói regiões de saúde com o somatório de planos municipais de saúde pactuados em comissões intergestoras.
A experiência internacional de países com sistemas de saúde descentralizados demostra, por outro lado, que para serem efetivas as regiões de saúde precisam dispor de capacidade técnico-administrativa e autoridade política para executar a gestão de funções do sistema de saúde em âmbito regional.
Traduzindo para a realidade brasileira, as experiências internacionais sugerem que regiões de saúde deveriam:
<ul>
<li>i) dispor de fontes tripartite de recursos para financiamento do SUS na região;</li>
<li>ii) dirigir investimentos em áreas estratégicas para o sistema na região, da infraestrutura assistencial a tecnologias de saúde digital;</li>
<li>iii) orientar o provimento e a formação de profissionais de saúde em áreas de necessidade de saúde na região;</li>
<li>iv) organizar cadeias logísticas para suprimentos de insumos estratégicos para saúde na região;</li>
<li>v) coordenar a contratação e a regulação do acesso a serviços ambulatoriais especializados, hospitalares e de urgência na região a partir da atenção primária;</li>
<li>vi) organizar sistemas de informação e vigilância em saúde na região;</li>
<li>vii) coordenar a preparação a respostas a emergências de saúde pública na região;</li>
<li>viii) dispor de espaços de participação social para fortalecer a transparência e os mecanismos de gestão democrática e participativa do SUS na região.</li>
</ul>
Revisar o papel dos entes federativos na gestão do SUS não é tarefa simples em razão da complexidade e da multiplicidade de interesses envolvidos. Porém, sem mudanças no padrão de financiamento e na estrutura organizacional do SUS, a capacidade da gestão municipal tende a ficar cada vez mais enfraquecida e limitada para fazer frente aos desafios atuais e futuros enfrentados pelos sistemas de saúde.
O XXXVI congresso do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), que ocorrerá entre 12 e 15 de julho em Campo Grande (MS), poderia ser um espaço privilegiado para fazer esse debate. Além de discutir a “captação de recursos por meio das emendas parlamentares” — um dos temas previstos na programação do evento —, a entidade, cujo histórico crítico e construtivo foi determinante para a formulação das principais políticas de saúde no país, deveria dar mais atenção a revisão dos papéis e responsabilidades das esferas de governo na gestão do SUS.
Adiar esse debate, além de colocar em risco a sustentabilidade do SUS e ampliar as desigualdades em saúde no país, pode deixar os gestores municipais cada vez mais submetidos ao clientelismo da política brasileira.

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JOTA

Adiar esse debate pode deixar os gestores municipais cada vez mais submetidos ao clientelismo da política

O papel dos municípios na gestão do SUS: uma revisão necessária

Adiar debate, além de arriscar a sustentabilidade do SUS, pode deixar os gestores municipais cada vez mais a mercê do clientelismo da política