Adriano Massuda

A Covid-19 deu destaque global à necessidade de ampliar a resiliência de sistemas de saúde frente a emergências sanitárias. No Brasil, porém, a prolongada crise institucional vivida no país está corroendo não somente a democracia brasileira, mas os pilares de sustentação do Sistema Único de Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sus">SUS</a>), minando sua resiliência. Além de mais de 660 mil mortes por Covid-19, há piora generalizada na situação de saúde e disparada nas iniquidades no país.
Resiliência é um conceito da física que analisa a capacidade de os corpos voltarem à sua forma original após serem alvo de deformação ou choque. Em razão de diferentes tipos de ameaças que afetam a saúde global – de epidemias e desastres naturais, a crises políticas, econômicas e humanitárias –, esse conceito tem sido amplamente aplicado ao estudo de como os sistemas de saúde se preparam, adaptam e respondem a situações de estresse.
Em síntese, os estudos apontam que a ampliação da resiliência requer ações coordenadas para fortalecimento de componentes estruturais dos sistemas de saúde – financiamento, governança, alocação de recursos e prestação de serviços; preparação de agentes governamentais, gestores públicos e profissionais de saúde para adoção de medidas adequadas a contextos de crise; e engajamento da sociedade civil nas ações de resposta.
Desde a sua implementação, o SUS não só modificou positivamente as condições de saúde da população brasileira, como ampliou a capacidade de proteção do país contra emergências sanitárias.
Apesar de problemas estruturais, como o baixo financiamento público e a frágil organização regional, o estabelecimento de um modelo de governança compartilhada entre esferas de governo permitiu aprovar políticas que ampliaram a capilaridade do alcance da rede de saúde pública no país. Combinando indução financeira e orientação técnica, o Ministério da Saúde teve papel-chave no apoio a governos estaduais e, principalmente, municipais na estruturação do SUS.
A atuação do SUS foi decisiva para enfrentar emergências sanitárias anteriores à Covid-19. Ainda na década de 1990, o pioneirismo na oferta gratuita de antirretrovirais na resposta ao HIV-Aids pelo SUS mudou o curso da epidemia no país e serviu de exemplo para o mundo. Além do controle de doenças imunopreveníveis alcançado pela excelência do programa de vacinação, a redução de mortes por doenças endêmicas, como malária e dengue, e a boa resposta a epidemias como de influenza e zika deram ao SUS reconhecimento internacional.
Na resposta à Covid-19, a importância de o país dispor de um sistema como o SUS foi valorizada de maneira inédita pela população brasileira. Contraditoriamente, seus pilares de sustentação nunca estiveram tão fragilizados.
O SUS é fruto da luta pela democracia no Brasil. Princípios constitucionais da universalidade, integralidade e participação social, sob os quais o SUS foi edificado, representam a aspiração da sociedade brasileira de ampliar direitos sociais junto à recuperação dos direitos políticos, após duas décadas de ditadura militar. Por essa razão, os golpes que a democracia brasileira têm sofrido abalam diretamente a estrutura do SUS e reduzem sua resiliência.
Após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o então recém-nomeado ministro da Saúde, Ricardo Barros – atual líder do governo Bolsonaro – não tergiversou em afirmar em entrevista à Folha de S.Paulo, em 17 de maio de 2016, que era preciso rever o tamanho do SUS: “Em algum momento, o país não conseguirá mais sustentar os direitos que a Constituição garante –como o acesso universal à saúde– e será preciso repensá-los”.
Ao passo que defendia a redução do SUS como parte da política de austeridade fiscal, o então ministro escancarou as portas para que o financiamento federal ao SUS fosse executado por meio de emendas parlamentares. Estudo de Fabiola Sulpino Vieira, do IPEA, mostra que o valor gasto com emendas parlamentares em Ações e Serviços Públicos de Saúde saltou de R$ 2,1 bilhões para R$ 12,8 bilhões entre 2015 e 2019 (último ano anterior à pandemia), representando um crescimento de 1,7% para 10% no orçamento do Ministério da Saúde.
A ampliação do percentual do orçamento do SUS gasto com emendas parlamentares agrava o subfinanciamento do SUS. Apelidadas de orçamento secreto devido à falta de transparência, esse tipo de mecanismo pulveriza a alocação dos recursos federais na saúde. Além de produzir ineficiências, desperdícios e iniquidades, é prato cheio para corrupção.
Fortalecer a resiliência do SUS, ao contrário, requer direcionar recursos financeiros para programas estratégicos, como atenção primária e vigilância em saúde, em áreas de maior necessidade. Bem como equipar o SUS para que os profissionais de saúde tenham a disposição as melhores tecnologias existentes para proteger a vida da população brasileira.
Entretanto, o agravamento da crise institucional sob o governo de Jair Bolsonaro, cuja escalada na retórica golpista sustentada por parte das Forças Armadas ameaça a democracia brasileira, tem potencial para implodir as bases de sustentação do SUS, tornando o país cada vez mais vulnerável a toda sorte de emergências sanitárias.
Além da piora no financiamento e na alocação de recursos, o governo Bolsonaro destruiu o sistema de governança federativa do SUS na resposta à pandemia. Em paralelo ao desmonte de áreas técnicas do Ministério da Saúde, cujo auge ocorreu sob a gestão do general <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/eduardo-pazuello">Eduardo Pazuello</a>, a política de confrontação substituiu o compartilhamento de decisões entre as esferas de governo no SUS.
Ao invés de apoiar estados e municípios, o governo federal passou a obstruir a adoção de medidas para o controle da propagação do vírus, a orientar a prescrição de tratamentos sem base científica e a agir para atrasar o início da vacinação, lançando dúvidas sobre sua eficácia. Como se não bastasse, o governo Bolsonaro fez uso intensivo da máquina de fake news para desacreditar autoridades de saúde regionais e locais na luta contra a Covid-19.
A resultante do governo Bolsonaro conta-se em número de mortes. Com 3% da população mundial, o Brasil registra até o momento 11% dos óbitos por Covid-19 no mundo.
Além disso, observa-se redução generalizada na produção assistencial do SUS. Em estudo realizado pelo FGV-Saúde, recém-publicado na revista Lancet Américas, demostramos que, assim como na Covid-19, as regiões mais afetadas pela queda da produção do SUS foram aquelas com maior vulnerabilidade socioeconômica, aumentando as iniquidades no país.
A redução na produção assistencial do SUS tem impacto direto na piora da situação de saúde no país. Indicador sensível da performance de sistemas de saúde, a <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-ligia-formenti/combate-a-mortalidade-materna-provoca-nova-discussao-entre-esferas-de-governo-20042022">mortalidade materna disparou no Brasil em 2021</a>. O número preliminar de 2.787 mortes de gestantes declaradas no ano é 36,5% maior do que o pior já registrado na série histórica do SUS, ocorrido em 1998.
Porém, o SUS resiste.
Premiado em 2022 como melhor longa-metragem no festival de documentários É Tudo Verdade, o mais importante do gênero na América Latina, o filme "Quando falta o ar", dirigido pelas irmãs Helena e Ana Petta, retratou magistralmente a grandeza, a generosidade, o alcance e os desafios enfrentados por profissionais do SUS, em diferentes regiões do país, durante a pandemia.
Num dos trechos, ao acompanhar a rotina de trabalho dos profissionais na Unidade Básica de Saúde no Morro da Conceição, no Recife, o filme registra a seguinte fala da médica de família e comunidade Rafaela Freire: "A coragem tem que ficar em cima do medo. O SUS é uma política de Estado, não de governo. Não vão ser esses caras que vão destruir o SUS. Porque o SUS está dentro da gente. Nós somos o SUS."
A fala da médica toca no centro de força da resiliência do SUS. Apesar de fragilização dos seus componentes estruturais, a defesa dos princípios da reforma sanitária está na alma de grande parte de trabalhadores, gestores e usuários do SUS. Representa não apenas uma concepção de sistema de saúde, mas a aspiração de um projeto civilizatório para Brasil.
Na força desse ideal, que mantém acessa a chama do SUS, está o caminho para enfrentar a barbárie bolsonarista que assola nossas instituições e ameaça nossa democracia.

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Além da piora no financiamento e alocação de recursos, governo destruiu governança federativa do sistema

A crise institucional brasileira e a resiliência do SUS

Além da piora no financiamento e alocação de recursos, governo destruiu governança federativa do SUS na resposta à pandemia da Covid-19