Marco Antonio Rodrigues

Felipe Varela Mello

De origem incerta, mas que comumente se remonta para o final da Idade Média, o brocardo jurídico iura novit curia pode ser traduzido pela expressão “o juiz conhece o direito”. Na sua gênese, vinculava-se à ideia de que as normas jurídicas não precisariam de prova, visto que o juiz deve conhecê-las. Contudo, desde logo, passou o brocardo a ser interpretado como significativo de que a aplicação do direito cabe exclusivamente ao juiz, não estando as partes obrigadas a subsumir os fatos por elas invocados às normas jurídicas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Nesse sentido, ainda que a definição do iura novit curia – assim como sua origem – seja tema passível de controvérsia, é possível compreendê-lo, em linhas gerais, como uma máxima que disciplina técnica processual de divisão de tarefas, pela qual compete, em princípio, ao juiz atribuir aos fatos expostos pelas partes a qualificação jurídica que entende ser a adequada<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Em complemento ao referido brocardo, há que mencionar outro a ele indissociável: o da mihi factum, dabo tibi ius, que é traduzido pela expressão "dá-me os fatos que te darei o direito" e exprime, na sua acepção básica, a ideia de que às partes pertence o domínio dos fatos e ao órgão jurisdicional cabe se ater às questões de direito.
Embora o iura novit curia não tenha previsão legal expressa no ordenamento jurídico brasileiro, trata-se de máxima que orienta a atuação dos magistrados até os dias de hoje, daí sua importância de ser aqui tratado.
Neste texto, o que se busca examinar é a compatibilidade do iura novit curia frente aos novos contornos dados pela legislação atual ao princípio do contraditório, em especial, o art. 10 do CPC, que dispõe sobre a vedação à decisão surpresa.
Sem maiores delongas, o brocardo jurídico ora examinado exige uma releitura, especialmente considerando a prática – ainda recorrente – dos Tribunais em admitir, com base no uso irrefletido do iura novit curia, a prolação de decisões cuja fundamentação é pautada em argumentos de direito não submetidos à prévia manifestação das partes.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Antes, no entanto, de melhor relacionarmos ambos os temas – iura novit curia e regra da vedação à decisão surpresa –, é preciso tecer breves comentários sobre o princípio do contraditório.
Por muito tempo, o contraditório foi definido pela mera ciência bilateral dos atos processuais e a possibilidade de contrariá-los. O princípio era representado, tradicionalmente, pelo binômio informação-reação, segundo o qual à parte deve ser garantido o direito de ser comunicada de todos os atos processuais (informação) e o direito de poder impugná-los (reação).
Ocorre que tal binômio assegurava apenas o aspecto formal do princípio. Não havia, por parte dos sujeitos processuais, um direito de reação efetivo, capaz de influenciar verdadeiramente na convicção do juiz.
Foi por essa razão que um terceiro conteúdo foi adicionado ao contraditório, que, na atualidade, além da informação e reação, passa a contar com a influência.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Acrescentou-se, assim, o aspecto substancial ao princípio, denominado poder de influência.
<blockquote class="jota-article__eye">Em síntese, o que vigora, atualmente, é a figura do “contraditório participativo” ou “contraditório substancial”, a mais recente etapa de evolução do princípio, o qual garante às partes, não apenas o direito de serem formalmente ouvidas, mas também o direito de participarem e influenciarem efetivamente na construção das decisões judiciais do processo.</blockquote>
Uma das consequências do princípio do contraditório contemporâneo, na sua dimensão substancial, é a regra da vedação à decisão surpresa prevista no art. 10 do CPC. Segundo esse dispositivo legal, é vedado ao juiz decidir “com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.
Dito isso, o que se pode afirmar, considerando o art. 10, é que o fato de o brocardo jurídico conferir liberdade ao órgão julgador para aplicar o direito no caso concreto, independentemente de provocação, não o autoriza a decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado o contraditório às partes. E não há qualquer incompatibilidade nessa assertiva. O iura novit curia e a regra de vedação à decisão surpresa podem conviver, de forma simultânea, no sistema jurídico brasileiro, sem que isso represente afronta à essência de um ou de outro.
No processo contemporâneo, a máxima – ainda vigente – atribui autoridade ao juiz para que qualifique juridicamente os fatos alegados pelas partes como entender correto. Com efeito, não se nega a tarefa do juiz de encontrar e realizar o direito, bem como sua liberdade para aplicar a norma jurídica que entender cabível para a resolução da demanda, ainda que não invocada pelas partes<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
O que não se pode mais defender, à luz do contraditório contemporâneo e do Estado Democrático de Direito, é que o brocardo iura novit curia ainda autorize que o juiz atue de forma solipsista na solução do caso concreto, proferindo decisões antidemocráticas, construídas sem prévio diálogo com os participantes do processo. A aplicação do direito pelo juiz sem o prévio debate com as partes fere a regra da vedação à decisão surpresa e, por consequência, o contraditório, o qual, diga-se, também se encontra submetido o próprio juiz.
Além disso, as partes, vale dizer, não estão mais confinadas exclusivamente às questões fáticas, assim como o órgão julgador não está às questões de direito. Essa concepção de divisão de trabalho processual deve ser revista. Afinal, assim como as partes têm direito de se pronunciarem previamente sobre o direito aplicado, de modo a interferirem na decisão judicial e contribuírem para um resultado mais justo da causa, o juiz tem respaldo legal para conhecer de ofício fatos secundários e determinar prova de ofício<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Apesar do exposto, infelizmente, notam-se ainda decisões judiciais que interpretam o art. 10 com um esvaziamento de seu conteúdo e que, por consequência, acabam por enfraquecer a proposta de ressignificação do iura novit curia.
Recentemente, foram prolatados julgados<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> que se utilizaram da distinção entre fundamento jurídico (“circunstância de fato qualificada pelo direito”) e fundamento legal (“dispositivo legal regente na matéria”) para afastar a necessidade de intimação prévia das partes.
Afirmam, em suma, que a regra da decisão não surpresa do art. 10 não impõe um dever, por parte do Tribunal, de informar previamente às partes os dispositivos legais passíveis de aplicação para o caso, visto que o conhecimento geral da lei é presunção jure et de jure. Assim, compreendem que o termo “fundamento” previsto no art. 10, que exige o contraditório prévio, seria apenas o “fundamento jurídico”, e não o “fundamento legal”. E quanto a isso, não discordamos. O ponto crítico é quando essa distinção entre os fundamentos é feita equivocadamente na demanda.
É o caso, por exemplo, do órgão julgador que decide que certa norma jurídica deve ser aplicada ao caso – o que, supondo, altera todo o enquadramento jurídico dos fatos já debatido – e, ato contínuo, contra a alegação de decisão surpresa das partes, afirma que não era obrigado a intimá-las, pois não possui o dever de informar todas as normas jurídicas aplicáveis à demanda.
Para facilitar o entendimento do exemplo anterior, imagina-se a seguinte situação prática: em uma demanda judicial, a parte autora afirma ter sofrido danos morais e fundamenta seu pedido com base no art. 927 do Código Civil, que trata da responsabilidade civil objetiva. Tal tema – responsabilidade civil objetiva – é discutida pelas partes e usada como fundamento tanto na sentença como no acórdão<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. Poderia o Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso especial, decidir que o caso concreto se enquadra na hipótese do art. 186 do Código Civil (responsabilidade civil subjetiva) sem intimar previamente as partes para se manifestar a respeito?
A nosso ver, a resposta é negativa. Compreendemos que seria dever do Tribunal intimar as partes antes de decidir, pois, no caso examinado, não houve alteração apenas de um simples dispositivo legal. Pelo contrário, alterou-se todo o enquadramento jurídico dado aos fatos discutidos. Com efeito, embora a discussão do litígio continue a envolver o tema responsabilidade civil, debater sob a ótica da existência de culpa ou não do réu, representaria um novo cenário a ser examinado na demanda, que merece a participação prévia das partes.
Além de julgados, o art. 10 também tem sido objeto de interpretações restritivas nos enunciados elaborados pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM). Cita-se, como exemplo, o enunciado nº 1, segundo o qual “entende-se por ‘fundamento’ referido no art. 10 do CPC/2015 o substrato fático que orienta o pedido, e não o enquadramento jurídico atribuído pelas partes”.
Com a devida vênia, não concordamos com essa interpretação. O art. 10 não faz distinção entre fundamento de fato ou de direito, não havendo razões para restringir o termo “fundamento” apenas às questões de fato, o que, vale frisar, comprometeria praticamente toda a utilidade do art. 10.
Afinal, a novidade do referido dispositivo legal é que ele exige o contraditório prévio em relação às matérias a serem conhecidas de ofício. E, ora, as matérias conhecidas de ofício, especificamente as fáticas, já são bastante restritas no CPC, limitando-se basicamente aos fatos supervenientes e notórios, sendo que, no caso dos fatos supervenientes, já há previsão de intimação prévia das partes (art. 493, parágrafo único, do CPC)<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. O que demonstra, também por esse ângulo, a total necessidade de se incluir as matérias de direito na interpretação do art. 10.
Por fim, nota-se que o próprio legislador prevê no art. 489, II, do CPC que o fundamento corresponde ao elemento essencial da sentença “em que o juiz analisará tanto as questões de fato e de direito”.
Feitas essas considerações, a proposta de reflexão deste breve texto fica quanto às limitações da aplicação do direito de ofício pelo juiz frente ao que se compreende, atualmente, em relação ao contraditório. O que se conclui, por ora, é que o iura novit curia ainda vige em nosso ordenamento jurídico, mas encontra-se condicionado ao prévio diálogo com as partes, especialmente considerando o teor do art. 10 do CPC.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BAUR. Fritz. Da importância da dicção “Iura Novit Curia”. Revista de Processo, vol. 3, jul.-set. 1976, versão eletrônica, p. 1.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Iura Novit Curia: a máxima e o mito. Salvador: Editora Juspodivm, 2020. p.24.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Entendendo dessa forma: STJ - AgInt no AREsp: 1660702 SP 2020/0029230-5, Relator: Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, Data de Julgamento: 07/12/2020, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/12/2020; STJ - AgInt no REsp: 1701258 SP 2017/0249614-0, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 23/10/2018, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/10/2018. Admitindo que a vedação de surpresa impõe o contraditório também quanto a questões de direito: STJ - REsp: 1676027 PR 2017/0131484-0, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 26/09/2017, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/10/2017
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> RODRIGUES, Marco Antonio dos Santos. A modificação do pedido e da causa de pedir no processo civil. Rio de Janeiro: GZ, 2014, p. 155-168; GRECO, Leonardo. O princípio do contraditório. In: GRECO, Leonardo. Estudos de direito processual. Op. cit., p. 545; CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades do processo moderno: contraditório, proteção da confiança e validade prima facie dos atos processuais. Op. cit., p. 111-112; THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle José Coelho. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. Revista de Processo, São Paulo: Vol. 34, n. 168, p. 107-141, fev. 2009, p. 109.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Nesse sentido: SANTOS, Welder Queiroz dos. Princípio do contraditório e vedação de decisão surpresa. Rio de janeiro: Forense, 2018. p.132.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 173.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> 4ª T., EDcl no REsp 1.280.825/RJ, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 27.06.17, DJe 01.08.17; 4ª T., AgInt no REsp 1.699.989/SP, rel. Min. Lázaro Guimarães, j. 03.04.18, DJe 06.04.18; 4ª T., AgInt no AREsp 1.124.598/SE, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 05.12.17, DJe 12.12.17.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Exemplo dado pelo professor Ravi Peixoto em seu texto sobre a evolução do contraditório (PEIXOTO, Ravi. Os caminhos e descaminhos do princípio do contraditório: a evolução histórica e a situação atual. Revista de Processo, vol. 294, ago. 2019, versão eletrônica, p.6).
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> PEIXOTO, Ravi. Os caminhos e descaminhos do princípio do contraditório: a evolução histórica e a situação atual. Revista de Processo, vol. 294, ago. 2019, versão eletrônica, p.6.

Releitura do brocardo ‘iura novit curia’ frente à regra da vedação à decisão surpresa

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JOTA

O brocardo jurídico passou a ser interpretado como significativo de que a aplicação do direito cabe exclusivamente ao juiz

Releitura do brocardo 'iura novit curia' frente à regra da vedação à decisão surpresa

O brocardo jurídico passou a ser interpretado como significativo de que a aplicação do direito cabe exclusivamente ao juiz