Arrecadação

Tributação no pós-pandemia: quem pagará a conta da crise?

Reestruturação do sistema tributário deve ter como premissas função distributiva do tributo e transparência fiscal

STJ: correção monetária de rendimento em aplicação financeira é tributável
Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A crise gerada pela pandemia lança um imenso desafio às Administrações Públicas de todo o mundo. Como garantir a sustentabilidade fiscal doméstica diante do aumento do déficit primário, gerando um custo de centenas de bilhões de dólares aos cofres públicos?

No caso do Brasil, o pagamento do auxílio-emergencial, criado pela Lei nº 13.982/20, foi a resposta dada pelo Governo para proteger a parcela mais vulnerável da população. Outras medidas adotadas para evitar o desemprego e a falência de pequenas e microempresas, como a abertura de linha de crédito para assegurar o pagamento de salários e a renúncia de receitas pela União, também ajudaram a aumentar o rombo nos cofres públicos, gerando incertezas e a necessidade de se angariar recursos para custeio e manutenção do Estado.

O impacto das medidas emergenciais de combate à crise gera projeções não muito animadoras do ponto de orçamentário, sendo estimado que o déficit alcance a cifra histórica de R$ 861 bilhões[1] e que a Dívida Bruta supere os 100% do PIB nos próximos anos.[2]

Diante de tal cenário, muito se tem falado a respeito da necessidade de se dar andamento às reformas tributária e administrativa, com o principal propósito de se aumentar receitas e cortar despesas obrigatórias com o funcionalismo público, além de ser constantemente ressaltada a necessidade de se respeitar o teto de gastos instituído pela Emenda Constitucional nº 95/2016.

É evidente que o tema relativo ao endividamento público e à necessidade de se estabelecer o equilíbrio fiscal deve passar pela discussão concernente ao contingenciamento de gastos e de alternativas que viabilizem o aumento da arrecadação de receitas. No entanto, tais preocupações não deveriam estar dissociadas de um aspecto crucial que tem sido negligenciado por muitos: o concernente à instituição de um modelo de tributação não apenas mais simples e eficiente, mas, sobretudo, justo e transparente.

Quanto ao aspecto da justiça fiscal, de se sublinhar que o momento atual – em que se discutem reformas tributárias com vista a angariar mais receitas para fazer frente à crise – é o mais propício para se debater a necessidade de se estabelecer regras que promovam não apenas a eficiência arrecadatória mas que também, em um país tão desigual como o Brasil, tornem o sistema tributário brasileiro menos regressivo.

É sabido que o modelo atual gera uma sobrecarga de exação sobre as classes menos favorecidas por meio da tributação sobre o consumo e sobre a classe média por meio da retenção de imposto na fonte sobre o rendimento do trabalho assalariado, enquanto as camadas mais privilegiadas vêm, há muito tempo, sendo beneficiadas com incentivos e isenções que, em grande parte, visam a evitar a fuga de capitais para paraísos fiscais, onde há garantia de confidencialidade das contas e tributação baixa ou nula.

Nessa linha, ao se cogitar da utilização do tributo enquanto instrumento de redução de desigualdades, pode-se visualizar uma absoluta ausência de paridade de armas entre os indivíduos mais vulneráveis – que deixam grande parte de seus ganhos para o pagamento de tributos sobre alimentos e itens de primeira necessidade – e os 1% mais ricos.

Isso porque, do ponto de vista da eficiência arrecadatória, estes últimos têm um potencial muito maior para influenciar as decisões do legislador no tocante ao texto de uma reforma tributária.

Dito de outro modo, o legislador bem sabe que, de todas as bases tributáveis, o capital é o que tem maior mobilidade, enquanto o consumo e o rendimento advindo do trabalho, por serem menos móveis, são mais facilmente tributáveis.[3]

Talvez isso explique, ao menos em parte, o fato de o legislador brasileiro ter sido tão reticente, ao longo das décadas, em instituir o IR sobre os lucros e dividendos e o IGF, assim como de fazer “vista grossa” a fenômenos como o da pejotização, em que pessoas físicas que auferem salários gordos pagam proporcionalmente, como pessoas jurídicas, muito menos impostos do que suportam um assalariado (alíquota de 16%, versus a alíquota de 22,5% a 27,5% paga pelo último).

Também se deve sublinhar que a Concorrência Fiscal Prejudicial, que coloca os estados em uma race to the bottom, faz com que incentivos fiscais sejam concedidos a setores dotados de grande capacidade contributiva, com a única finalidade de atrair investimentos e de evitar a erosão da sua base tributável doméstica, sem que sejam considerados aspectos ligados à justiça fiscal.

É inexorável o fato de que a elite econômica exerce influência sobre a produção legislativa em matéria tributária no país, destacando-se como fator preponderante na escolha do legislador o pragmatismo de tributar bases menos móveis, aliado à eficiência arrecadatória.

Dada a mobilidade da renda decorrente do capital, ainda que sejam debatidas reformas tributárias que contemplem uma tributação mais onerosa sobre a renda e o patrimônio dos mais ricos, a proposta vencedora não será efetiva do ponto de vista arrecadatório caso não sejam adotadas, concomitantemente, medidas que sejam voltadas à maior transparência fiscal.

Estas devem ser aptas a desestimular a prática de planejamentos tributários abusivos e, com isso, evitar a erosão das bases tributáveis, podendo-se citar como exemplo a necessidade de se elaborar regras mais claras no que diz respeito à zona cinzenta existente entre a elisão e a evasão fiscais, obstruindo-se brechas legais que ainda possibilitam a prática de planejamentos tributários inconsistentes.

Além da produção legislativa doméstica, que deve ser dotada da maior clareza possível – a fim de evitar interpretações equívocas e, por conseguinte, questionamentos por parte de contribuintes – há que se atentar para a necessidade da assunção de compromissos internacionais de cunho multilateral que possibilitem o rastreamento e a apreensão do patrimônio e do capital situado em contas bancárias no exterior.

Interessante notar que uma das preocupações expostas na exposição de motivos que acompanhou o projeto que trouxe a primeira etapa da reforma tributária apresentada pelo Governo é, justamente, a adequação às recomendações propostas pela OCDE para melhoria do sistema tributário brasileiro.[4]

Nessa mesma linha, é importante salientar que uma das metas dos 15 planos de ações BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), da OCDE, é o de promover a coordenação e harmonização por meio do consenso e de acordos multilaterais, visando à transparência fiscal internacional e ao combate às práticas de planejamento tributário abusivo.

Assim, mais do que trazer dispositivos que foquem na simplificação e na eficiência arrecadatória, uma boa reforma tributária deve trazer em si regras que contemplem a função distributiva do tributo, não onerando ainda mais aqueles que já têm sobre si uma carga de exação elevada proporcionalmente aos seus ganhos.

Além disso, deve favorecer a transparência fiscal, promovendo a estruturação de órgãos de arrecadação e cobrança com vista a possibilitar uma troca cada vez mais intensa de informações de cunho fiscal com jurisdições sediadas no exterior, eliminando, ainda, os obstáculos que ainda impedem a cobrança extraterritorial de tributos.[5]

Em última análise, uma reforma tributária justa e eficiente do ponto de vista arrecadatório não deve se limitar a instituir dispositivos voltados à simplificação e à racionalização, mas antes deve contemplar regras que evitem a transferência artificial de lucros e o planejamento tributário abusivo, além de assegurar a aplicação de tratados multilaterais voltados à efetiva tributação de indivíduos super-ricos e de grandes corporações, combatendo a prática de sonegadores fiscais contumazes.

De outro modo, quem acabará por arcar com o ônus do endividamento público serão, mais uma vez, os consumidores de bens e serviços – por meio da oneração de atividades produtivas, a exemplo de uma possível tributação sobre as transações realizadas por meios eletrônicos – tornando o sistema ainda mais regressivo e recrudescendo uma desigualdade que já é abissal.

 


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[1] Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/07/02/governo-eleva-estimativa-de-rombo-fiscal-para-r-828-6-bilhoes-em-2020>. Acesso em 29 de setembro de 2020.

[2] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/25/divida-publica-deve-passar-de-100-do-pib-nos-proximos-anos-alerta-ifi-1>. Acesso em 28 de setembro de 2020.

[3] Conforme já tivemos oportunidade de discorrer: “aqueles que conseguem se esquivar, efetivamente, do pagamento de tributos, são os indivíduos mais ricos e, portanto, os que menos necessitam das prestações positivas estatais. Os resultados são desastrosos e repetem sempre os mesmos padrões: perda da arrecadação estatal, aumento do endividamento público, oneração da carga tributária sobre a classe média e baixa e aumento da desigualdade, com riscos ao próprio Estado Democrático de Direito. Nesse contexto, busca-se evidenciar o conjunto de fatores que potencializa a perda da arrecadação fiscal dos países no Estado da Sociedade de Risco: a fuga de tributos por aqueles que poderiam arcar com um peso maior da carga tributária; a limitação da soberania fiscal dos países gerada pela livre circulação de capitais; a remessa de capitais para jurisdições em que a tributação é nula ou baixa, com garantia da confidencialidade das contas, além do incremento de novas tecnologias como o uso de criptoativos em contraposição ao sistema financeiro atual”. Cf. VITTORIA, Aline Della. Cooperação Administrativa para a Cobrança Extraterritorial de Tributos: uma demanda do Estado Fiscal. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2020. p. 272-273.

[4] Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1914971&filename=Tramitacao-PL+3887/2020>. Acesso em: 24 de setembro de 2020.

[5] O tema é explorado com profundidade em nossa obra “Cooperação Administrativa para a Cobrança Extraterritorial de Tributos: uma Demanda do Estado Fiscal”. De forma resumida, tal problemática pode ser resolvida mediante a retirada das reservas pelo Estado brasileiro e a estruturação dos órgãos de cobrança e fiscalização nacionais que viabilizem pedidos oriundos do exterior.