A Câmara dos Deputados aprovou, recentemente, Projeto de Lei Complementar (PLP 18/2022) que promove importantes alterações nas normas que disciplinam a cobrança do ICMS.
O texto aprovado — que segue para análise do Senado Federal — passa a tratar como essenciais os combustíveis, o gás natural, a energia elétrica, as comunicações e o transporte coletivo e estabelece que as alíquotas do ICMS incidentes sobre operações e prestações correlatas não poderão ser superiores às das operações em geral.
Embora o projeto preveja, em determinados casos, que a União compense os entes federados por eventual queda na arrecadação, o Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e Distrito Federal (Consefaz) já se manifestou contra a medida.
Antes mesmo da aprovação do projeto, já se discutiam os eventuais reflexos no orçamento dos estados e do Distrito Federal. Pouco, porém, se falou sobre a possibilidade (ou não) de lei complementar nacional tratar dessa matéria.
Para lembrar: embora ICMS seja tributo de competência dos estados e do Distrito Federal, cabe à lei complementar nacional o papel de disciplinar inúmeras questões a ele relacionadas — como, por exemplo, o regime de compensação do imposto (art. 155, § 2º, XII, CF) —, dada a feição nacional desse imposto e a necessidade de prevenir conflitos entre os entes tributantes.
Pela mesma razão, foi conferido a esse instrumento normativo o papel de estatuir normas gerais em matéria tributária, especialmente sobre “definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes” (art. 146, III, “a”, CF).
É incontroverso, portanto, que os estados e o Distrito Federal, ao instituírem o ICMS, devem observar as regras gerais introduzidas pelo Congresso Nacional (em especial por meio da Lei Complementar nº 87/96).
A questão que se põe, todavia, é a seguinte: poderia o Congresso, no exercício da competência que lhe foi conferida pelo constituinte originário, qualificar determinados bens e/ou serviços como essenciais e criar limites para a definição das alíquotas aplicáveis nas operações ou prestações correlatas?
Pois bem. Se voltarmos ao texto constitucional, veremos que há, ali, enunciado estatuindo que o ICMS poderá ser seletivo em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços (art. 155, § 2º, III).
Ante o emprego do verbo “poderá” — em oposição a “deverá”, utilizado no momento de traçar os limites para a instituição do IPI — o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o Tema 745 de Repercussão Geral, entendeu que essa modalidade de tributação é uma opção conferida ao legislador dos estados e do Distrito Federal. Se assim é, não poderia o legislador complementar impor sua observância.
Há, porém, que se considerar o seguinte: naquela mesma oportunidade a Corte, examinando justamente a constitucionalidade das alíquotas aplicáveis às operações com energia elétrica e à prestação de serviços de telecomunicação, entendeu que, embora a seletividade seja uma opção, o critério para implementá-la não o é.
Assim, uma vez adotada essa técnica de tributação — como, aliás, é a regra atualmente —, devem os estados e o Distrito Federal observar, necessariamente, a essencialidade da mercadoria ou do serviço (a qual, por sua vez, poderá ser determinada considerando outros elementos que não apenas a sua qualidade intrínseca, como, por exemplo, a capacidade econômica do consumidor final ou a destinação do bem ou serviço).
Portanto, a adoção da seletividade no momento da instituição do tributo tem efeitos positivos e negativos para os entes tributantes. Afinal, ao mesmo tempo que permite que a carga tributária seja dosada de acordo com as características intrínsecas do bem ou serviço (aliadas a outros elementos), proíbe que essa “dosagem” seja aplicada apenas quando convém ao ente tributante.
Em termos mais diretos: feita a opção pela seletividade, todos os bens e serviços considerados essenciais deverão receber o mesmo tratamento, ou seja, as operações e prestações a eles relacionadas deverão ser submetidas a cargas tributárias menores do que aquelas em vigor para as operações e prestações em geral.
Sob tal perspectiva, e considerando que os entes tributantes optaram pela aplicação da seletividade na instituição do ICMS (reduzindo, por exemplo, a tributação de bens da cesta básica), põe-se a seguinte questão: se a lei complementar não pode impor a tributação seletiva, pode, ao menos, impor critérios para sua aplicação, definindo bens e serviços essenciais?
Voltemos ao acórdão proferido pelo STF no julgamento do Tema 745: ao examinar essa decisão, percebe-se que a Corte Suprema foi chamada a se manifestar não só sobre a obrigatoriedade (ou não) de adotar-se a seletividade. O principal ponto controvertido era a essencialidade (ou não) da energia elétrica e dos serviços de comunicação e os votos bem demonstram que tal avaliação não é singela e pode resultar em conclusões distintas.
É plenamente possível, portanto, que um bem ou serviço seja considerado essencial por um ente tributante e supérfluo por outro. Considerando, porém, a feição nacional do ICMS, é indispensável que sejam adotados critérios semelhantes pelos entes tributantes no momento de aplicar o princípio da seletividade.
Sendo assim, cremos, em se tratando de bens e serviços “notoriamente” essenciais — como é, hoje, o caso da energia elétrica e das telecomunicações, no entender do STF — poderia a lei complementar defini-los e impedir a adoção de alíquotas superiores àquelas aplicáveis às operações e prestações em geral, tudo com o objetivo de garantir que, uma vez feita a opção pela seletividade, esta seja aplicada de maneira uniforme pelos entes tributantes.
É evidente, no entanto, que, se aprovado o PLP 18/22, medidas judiciais serão propostas para questionar não só a essencialidade dos bens e serviços lá mencionados[1], mas também a competência do Senado Federal para definir o que é ou não essencial.
[1] É importante lembrar que a decisão proferida pelo STF no Tema 745 alcança apenas energia elétrica e serviços de telecomunicação. Ademais, embora tenha se decidido pela sua essencialidade – afastando-se a tributação em patamares superiores àqueles aplicáveis às operações e prestações em geral – os Ministros decidiram, por maioria, pela modulação dos efeitos da decisão, estipulado que ela produza efeitos a partir de exercício financeiro de 2024 (ressalvadas as ações ajuizadas até o início do julgamento do mérito, em 05/02/2021).