
Contexto
A democracia brasileira sobreviveu ao mais intenso teste de resiliência a que foi submetida, desde o fim do regime militar. A eleição em 2018 de um populista de extrema direita para ocupar a Presidência da República, hostil ao projeto constitucional de 1988, com amplo apoio dos setores mais conservadores da população, de grupos manifestamente autoritários, bem como de largos contingentes das classes armadas, colocou o regime democrático brasileiro sob enorme pressão.
Alinhado à postura de outros populistas autoritários de sua geração, Jair Bolsonaro promoveu um forte processo de polarização política e social, com claro viés emocional, baseado no emprego sistemático das redes sociais e da desinformação. A natureza antipluralista e abertamente antissistema de sua liderança não amenizaram após a chegada ao poder, como previam muitos de seus eleitores. Incapaz de formar uma grande coalizão parlamentar, que o permitisse superar os diversos obstáculos contramajoritários estabelecidos pela Constituição de 1988, empregou de forma abusiva e sistemática medidas infralegais, atos parainstitucionais e nomeações de agentes políticos avessos às suas obrigações institucionais, com a finalidade de fragilizar e capturar instituições, assim como para neutralizar e subverter direitos e políticas públicas de raiz constitucional ou legal. Os retrocessos nos campos da proteção do meio ambiente, a proteção dos povos indígenas, desarmamento, além de saúde e educação, são exemplos dessa subversão de políticas constitucionais por meio de atos infralegais.
Distintamente de outros populistas de sua geração, no entanto, Bolsonaro não abriu mão da tradicional estratégia da política brasileira de incitar de maneira explícita a animosidade dos militares contra os poderes civis. Jair Bolsonaro combinou, dessa forma, três estratégias para subordinar a democracia constitucional brasileira: polarização visceral, erosão e captura institucional e ameaça de golpe militar.
A combinação dessas estratégias – ou múltiplas ameaças – impôs enormes desafios à sociedade civil, aos partidos de oposição, aos meios de comunicação e às instituições comprometidas com a defesa da democracia. Alvo preferencial dos ataques de Bolsonaro e seus apoiadores, desde o processo eleitoral, o Supremo Tribunal Federal e posteriormente o Tribunal Superior Eleitoral assumiram um papel militante ou combativo na defesa da Constituição e dos pressupostos fundamentais do regime democrático, que foram essenciais para a sua sobrevivência.
A conduta desses tribunais tem sido objeto de fortes críticas, como era de se esperar, por parte de setores comprometidos com o bolsonarismo. Assim como na Venezuela, Hungria, Turquia e agora Israel, a corte não foi e nem tem sido poupada pelos inimigos da democracia. Mas não são apenas os bolsonaristas que apontam abusos na forma como esses tribunais vêm conduzindo suas atividades neste período tenso da história brasileira. Muitas têm sido as objeções apresentadas e preocupações levantadas por juristas e outros analistas compromissados com a democracia sobre o comportamento do STF e TSE.
Embora haja um reconhecimento bastante amplo sobre a importância desses dois tribunais na contenção dos impulsos autoritários e anticonstitucionais de Bolsonaro, especialmente na defesa da integridade do processo eleitoral, dos direitos fundamentais de minorias e do funcionamento de órgãos de controle, há uma preocupação sincera e legítima com decisões ou mesmo posturas de membros desses tribunais que estariam em tensão com os limites estabelecidos pela própria Constituição. No campo penal, alerta-se para eventual negligência em relação a garantias do devido processo, do juiz natural, da individualização de condutas ou ainda da estrita legalidade. Já na seara eleitoral, a inquietação diz respeito à suposta ampliação excessiva das restrições à liberdade de expressão, notadamente durante o pleito, quando as liberdades comunicativas devem ser especialmente protegidas.
Em “Nem ‘carta branca’ nem ‘ditadura judicial’”, Diego Werneck e Felipe Recondo impõem um freio de arrumação ao debate, buscando desconstruir diversos equívocos recorrentes em muitas análises sobre o desempenho do STF e do TSE neste período. O ensaio, entre outras qualidades, acerta ao demonstrar que o temor de uma “ditadura judicial” é um equívoco, apenas uma metáfora, mas também aponta para o risco de aprovar acriticamente todas as decisões do STF e do TSE, convidando a comunidade jurídica a se debruçar com maior rigor sobre “cada uma das decisões” proferidas por essas cortes, neste período.
Embora estejamos de acordo com grande parte das proposições do texto, entendemos que seria pertinente, ainda mais em função de nosso respeito e admiração pelos autores, fazer algumas observações, de forma a promover uma melhor compreensão do fenômeno da democracia militante tal como implementada no Brasil. A primeira questão que gostaríamos de suscitar é que os autores não deram, a nosso ver, a devida ênfase aos riscos reais de ruptura democrática e ao forte processo de erosão colocado em curso por Bolsonaro, decorrentes do triplo ataque empreendido pelo presidente contra a democracia brasileira.
A segunda observação diz respeito a um certo ceticismo dos autores quanto à utilidade do emprego do paradigma da democracia militante na construção de respostas judiciais a esses riscos. Por último, entendemos que a proposta de análise, individualizada e isolada, de cada uma das decisões do ministro Alexandre de Moraes não é suficiente para captar a dimensão sistêmica das ameaças antidemocráticas nem de revelar a complexa estratégia subjacente ao acionamento dos mecanismos de defesa combativa do regime democrático.
O objetivo principal deste ensaio é contribuir para uma compreensão mais precisa do contexto em que o STF e o TSE operaram durante esse período de grave regressão institucional e ameaça de ruptura democrática; assim como promover um melhor entendimento sobre a postura combativa adotada pelo STF e do TSE, num contexto em que outras instâncias também responsáveis pela defesa do regime democrático e pela apuração de crimes de responsabilidade, optaram por se omitir de suas responsabilidades.
A ameaça existencial
A ideia de que Bolsonaro não representaria um desafio existencial ao regime democrático, que chegou a ser acolhida por muitos nas eleições de 2018, foi perdendo força ao longo dos anos, a medida em que os ataques de Bolsonaro às instituições, em especial ao STF, foram se aprofundando. De um lado, parte importante da opinião pública brasileira e de atores institucionais tomou consciência de que Bolsonaro fazia parte de um movimento mais amplo de erosão da democracia liberal e que suas ações estavam alinhadas a de outros líderes que subjugaram o regime democrático em seus países. O aspecto distintivo do caso brasileiro, no entanto, é que aqui as ameaças ao regime democrático sempre tiveram como pano de fundo a possibilidade de ruptura institucional, promovida ou apoiada pelos militares.
A longa tradição de intervenção das Forças Armadas no processo político brasileiro, associada à identidade de Bolsonaro com setores militares mais radicalizados, além de um processo de contínuo assédio e incitação das Forças Armadas contra os poderes civis, praticado pelo presidente, trouxeram a ameaça de um golpe militar de volta para o cenário político brasileiro. A ambiguidade com que algumas lideranças da caserna participaram de atos políticos, sob a batuta do presidente, deixam claro a especificidade do caso brasileiro, se comparado a processos de autocratização em países como Estados Unidos, Itália, Hungria, Polônia, Peru ou mesmo Índia, onde os militares não se apresentam como elemento desestabilizador da política institucional.
A postura insidiosa de militares no embate com o TSE, em torno da lisura das urnas eletrônicas, insuflada pelo presidente da República; a presença de oficiais da ativa em manifestações políticas promovidas por Bolsonaro, sem que houvesse qualquer punição; a leniência com as manifestações golpistas em frente de quartéis; a presença de militares no comando de diversas agências e ministérios; e finalmente a descoberta de um rascunho da formalização de uma esdrúxula intervenção de natureza militar na Justiça Eleitoral, apreendido na casa do ex-ministro da Justiça – o que carece ainda de apuração –, apontam para um cenário muito preocupante. A intentona de 8 de janeiro, cultivada às portas dos quartéis, que materializou, sob a forma da violência e vandalismo, um longo percurso de ataques discursivos criminosos à democracia liderados por Bolsonaro, sintetiza esse processo.
Fortíssimos são os indícios de que todos esses episódios resultaram de um projeto abrangente e articulado de ataque aos pilares do regime democrático levado a efeito por Bolsonaro e seus correligionários, do qual os diversos inquéritos presididos pelo ministro Alexandre de Moraes guardam informações. A sombra de militares nesse processo incremental de polarização viceral e erosão das instituições e valores democráticos ainda não foi integralmente desvelada. Porém, foi justamente o engajamento de membros das Forças Armadas nas ameaças às eleições que alertou para a elevação do risco de ruptura democrática a um patamar sem precedente na recente trajetória da República, pós-1988. É preciso lembrar que setores militares encamparam a campanha de desinformação do governo Bolsonaro para colocar em xeque a segurança das urnas eletrônicas e a imparcialidade do TSE. Só isso já seria suficiente para demonstrar que a falta de um controle integral das Forças pelos poderes civis ainda ameaça a democracia brasileira.
Em parte, a origem dessa crise está associada à expressiva militarização do governo pela nomeação de mais de 6.000 oficiais da ativa para cargos na administração, que aprofundou de maneira dramática a politização das Forças Armadas. Ao ascenderem a altos cargos no Poder Executivo, setores militares abandonaram parâmetros básicos de neutralidade, demonstrando publicamente forte alinhamento ao projeto de poder de Bolsonaro. É crescente a percepção de que parcela dos militares que acumulou poder político – com influência e projeção nas polícias militares dos estados – estava disposta a transigir com a premissa fundamental do jogo democrático: o respeito ao resultado das eleições.
O fator militar que caracterizou a crise democrática entre nós é a maior diferença da intentona brasileira de 8 de janeiro de 2023 para a invasão do Capitólio dos EUA de 6 de janeiro de 2021. A plausibilidade da tese de envolvimento de parte das Forças Armadas em diferentes formas de ataques à democracia – cuja magnitude ainda deverá ser objeto de adequada apuração, inclusive na seara penal – emprestou ao projeto de autocratização bolsonarista uma perigosa plausibilidade.
Importante destacar também uma crescente insatisfação de parte dos militares com o STF. De acordo com uma interpretação equivocada do artigo 142 da Constituição, difundida por setores civis e militares mais radicalizados, caberia às Forças Armadas o exercício de uma pretensa função moderadora, que no regime constitucional de 1824 havia sido conferida ao Imperador. Como salientam Raymundo Faoro e Alfred Stepan, essa função foi de facto (e não de iure) usurpada pelos militares ao longo da história republicana, culminando com a tomada do poder em 1964.
Com o processo de redemocratização, e a adoção da Constituição de 1988, a tarefa de guardião da Constituição foi expressamente conferida ao STF. A centralidade ocupada pelo STF ao longo das últimas três décadas da vida político-institucional brasileira gerou um forte ressentimento de setores das Forças Armadas contra o tribunal, especialmente após o estabelecimento de limites à Operação Lava Jato. Bolsonaro soube explorar esse ressentimento de natureza estamental, potencializado por uma ampla campanha de deslegitimação do STF por setores conservadores da sociedade em decorrência de uma pretensa jurisprudência ativista, de natureza progressista e garantista, por parte do tribunal.
Entendemos que ao não conferir o devido peso às ameaças autoritárias, a análise de Diego Werneck e Felipe Recondo sobre a atuação militante dos tribunais neste período pode ter ficado prejudicada. É possível que os autores concordem com a gravidade da questão militar na crise democrática nacional, embora não a tenham explicitado. Da mesma forma, compreendem os riscos impostos à democracia por um processo de polarização visceral e de erosão e captura institucional. Mas o fato de não terem dado maior destaque à magnitude do risco de autocratização imposto ao país pela combinação dessas três estratégias inibiu um diagnóstico mais acurado sobre a necessidade e intensidade da postura militante assumida por esses tribunais.
A democracia militante
A segunda divergência parcial em relação ao ensaio de Diego Werneck e Felipe Recondo diz respeito ao papel que a categoria de democracia militante assume na avaliação sobre a legitimidade das decisões do STF e do TSE. Em nossa visão, os autores atribuíram uma função demasiadamente limitada a essa categoria, o que impacta o juízo sobre a legitimidade das decisões produzidas por essas cortes no contexto de contenção do crescente autoritarismo no país.
A ideia de democracia militante, como é de conhecimento de todos, surge no contexto da ascensão ao poder de líderes fascistas na Alemanha e na Itália, nas primeiras décadas do século 20. Embora a proposta de Loewenstein compartilhe do ethos do constitucionalismo liberal, de matriz madisoniana, de que a República deve se defender não apenas das ameaças da “tirania” da minoria, mas também da “tirania da maioria”, o autor propõe barreiras ainda mais elevadas à ação de grupos radicalizados, em face daquilo que ele denomina “emocionalismo”, inerente ao movimento fascista. Ou seja, a democracia militante não é uma ferramenta a ser empregada nos embates naturais, ainda que contundentes, de uma democracia estável, para a qual os mecanismos de freios e contrapesos e reforçadas ferramentas contramajoritárias devem ser suficientes.
As ferramentas da democracia militante devem ser empregadas quando a razão ou mesmo o interesse deixam de ocupar um papel central na ação política, sendo substituídos pela emoção. Ou seja, é um recurso da democracia contra seus inimigos que não estão mais dispostos a discutir e resolver os seus conflitos racionalmente e com base nas regras do jogo democrático. Como aluno de Weber, Loewenstein estava preocupado com as irracionalidades da democracia de massas. Como refinado constitucionalista, que foi obrigado a se refugiar nos Estados Unidos, em face de sua origem judaica, tinha clareza sobre as deficiências da Constituição de Weimar para se autodefender, bem como sobre a omissão daqueles que tinham por responsabilidade defender a democracia, especialmente dentro do Judiciário.
A democracia militante está baseada na premissa de que, diante de ataques à sua própria existência, os regimes democráticos têm legitimidade para acionar medidas restritivas aos direitos fundamentais de grupos ou indivíduos movidos por projetos autoritários. Como apontam Diego Werneck e Felipe Recondo, tal paradigma deveria funcionar para que os Estados estabelecessem normas de defesa da democracia, como fez o legislador brasileiro ao inserir novos dispositivos no Código Penal voltados à defesa das instituições do Estado democrático de Direito.
Mas nos parece equivocado que o paradigma da democracia também não se expanda para o campo da interpretação e aplicação da lei. Aliás, Loewenstein é claro ao afirmar que sem a lealdade à democracia por parte de quem tem que aplicar a lei, a ideia de democracia é irrelevante. É evidente que, como adverte a literatura especializada no tema, há quase um século, a noção de democracia militante está sujeita à regra da legalidade. Essa constatação, porém, não resolve o principal desafio, que é o de interpretar as leis existentes para fazer frente às ameaças autoritárias. A contundência como a Corte Constitucional alemã assumiu a doutrina da democracia militante no pós-guerra indica o papel central que instâncias contramajoritárias podem ser obrigadas a ocupar na defesa da democracia.
Como se sabe, o acionamento de ferramentas institucionais de autodefesa democrática – e.g. a restrição da liberdade de expressão ou a criminalização de condutas que ameaçam ou atentam contra as instituições – pode constituir operação jurídica complexa que não se deixa captar pela ideia de subsunção simples e automática de regras cujo conteúdo esteja completamente pré-definido pela lei. É justamente aí que a ideia de democracia militante demonstra grande parte de sua funcionalidade, ao parametrizar a interpretação e aplicação dos mecanismos de autodefesa democrática em ordem a maximizar o efeito paralisante das agressões autoritárias ao regime democrático. Alguns exemplos podem ilustrar essa realidade.
Em uma decisão paradigmática dessa postura proativa do STF na defesa da democracia, a corte entendeu ser constitucional a abertura de inquérito, instaurado com base no art. 43, caput, do seu Regimento Interno, para investigar fake news e outras ameaças digitais feitas contra os ministros e seus familiares. Embora o referido dispositivo regimental disponha expressamente que, “[o]correndo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”, o STF decidiu que a norma também poderia ser aplicada à hipótese de ilícitos cometidos no ambiente virtual, já que o regimento interno havia sido elaborado em momento anterior ao advento da internet. Na mesma decisão, a corte afastou a alegação de violação ao princípio acusatório sob a premissa de que a mera investigação preliminar de delitos praticados contra seus ministros não comprometia a atribuição exclusiva do Ministério Público para o oferecimento de denúncias e tampouco comprometia o núcleo duro da ideia de imparcialidade judicial.
Não há dúvida de que o STF optou por uma interpretação atualizada da norma regimental – recepcionada com status de lei pela Constituição – em razão do contexto fático de crescimento dos ataques e ameaças dirigidos aos seus ministros com o objetivo de minar a credibilidade da corte e ameaçar sua independência. Também parece claro que a admissão da validade da imputação de uma excepcional função probatória desenvolvida de ofício pelo próprio STF foi decisivamente influenciada pela inércia da PGR na condução de apurações criminais relacionadas às investidas autoritárias contra a corte. Ao longo dos últimos anos, o alinhamento da PGR a Bolsonaro garantiu ao governo inúmeros e injustificados pedidos prematuros de arquivamento de investigações – como no caso dos procedimentos instaurados a partir da CPI da Covid ou das apurações que envolviam os conhecidos inquéritos dos atos antidemocráticos.
Outro exemplo que pode auxiliar na compreensão do argumento é o da condenação do ex-deputado Daniel Silveira, pelo STF, em razão da prática do delito de abolição violenta do Estado democrático de Direito. O delito está definido pelo Código Penal da seguinte forma: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. A delimitação do conteúdo desse injusto penal exige um esforço para interpretar quais condutas possuem aptidão para colocar em risco “o Estado democrático de Direito”. Exige também que se esclareça o que pode ser entendido como “restrição ao exercício dos poderes constitucionais”, especialmente quando as ameaças ficam confinadas ao território discursivo.
Embora não houvesse qualquer dúvida relevante acerca dos fatos que estavam em julgamento, dois ministros do STF entenderam que as agressões verbais praticadas por Daniel Silveira contra magistrados da corte não chegaram a restringir o seu funcionamento e tampouco revelavam com clareza uma tentativa de abolir a democracia. A divergência interpretativa foi resolvida, com acerto, em favor de uma leitura da lei incriminadora compatível com a necessidade de proteção penal antecipada contra atos autoritários (inclusive os de caráter discursivo) que, pela gravidade do método de agressão empregado (violência ou grave ameaça) e particular robustez, revelam aptidão para ingressar na antessala da abolição do regime democrático.
Nos dois exemplos citados, as decisões proferidas pelo STF não podem ser representadas pelo dilema simplificador entre “fazer o que quiser” ou “agir em conformidade com a lei”. Em ambos os casos o desafio era o de conferir a melhor interpretação à lei vigente. No primeiro caso, para decidir se o STF poderia, no contexto de crescente autoritarismo, superar a omissão da PGR relativamente aos delitos praticados virtualmente contra seus ministros com objetivo de abalar a credibilidade e a independência da corte. E, no segundo, para definir se o discurso de um deputado em exercício que propagava ódio e ameaça de violência contra ministros do STF revelava ou não a prática do recém-criado delito de abolição violenta do Estado democrático de Direito.
Daí se nota que o paradigma da democracia militante (ou combativa) não se limita a fomentar o debate sobre a criação de instrumentos para impedir ou restringir o uso dos próprios mecanismos da democracia. Esse paradigma também informa a maneira como esses mecanismos são concretamente mobilizados. Aqui entram em jogo, simultaneamente, a relevância do contexto fático – i.e., a gravidade dos riscos autoritários considerados – e a decisão sobre a adoção de postura mais autocontida ou mais proativa na reação judicial a esses riscos.
De fato, como afirmam Diego Werneck e Felipe Recondo, o mandamento de “defesa judicial da democracia” não se realiza no vazio ou no terreno das ideias abstratas. Mas, diante da gravidade e da robustez dos riscos autoritários, os intérpretes em geral – e os juízes, em especial – devem atuar de modo particularmente proativo na moderação de todo o ciclo autoritário, acionando, com alguma dose de abertura interpretativa, a caixa de ferramentas disponibilizadas pelo paradigma de democracia militante.
É por isso que a proposta de adoção da metodologia tradicional de análise “uma a uma” das decisões do ministro Alexandre de Moraes é insuficiente. Isoladamente, as decisões do TSE e do STF não captam a dimensão sistêmica das ameaças antidemocráticas, nem revelam a complexa estratégia subjacente ao acionamento dos mecanismos de defesa combativa do regime democrático. Como estabelecido na literatura sobre a crise global da democracia, o caráter gradual e incremental das dinâmicas de retrocesso democrático justifica a revisão do modelo atomizado de controle da legitimidade dos atos praticados por governos autoritários, ainda mais quando esse processo de erosão é apoiado por uma ameaça subjacente de ruptura. O mesmo raciocínio deve valer para a resposta a esses atos.
Seria difícil compreender a validade de uma série de decisões tomadas pelo STF e pelo TSE fora do “romance em cadeia”, para usar a conhecida expressão de Dworkin, que tem sido escrito para dar conta das mais diversas formas de agressão à democracia brasileira nos últimos anos. Embora não se possa prescindir de uma motivação válida para a tomada de cada uma das decisões, é preciso não perder de vista que, independente da expressa referência que nelas possa haver às decisões pretéritas, a legitimidade de cada uma delas também deve ser simultaneamente avaliada à luz de uma visão mais abrangente sobre o avanço do autoritarismo globalmente considerado – e, por consequência, do conjunto de decisões judiciais já proferidas a propósito do mesmo fenômeno.
O Brasil é um caso bem-sucedido de defesa judicial combativa da democracia
Desde que assumiu o poder, Bolsonaro seguiu à risca o script pré-anunciado de luta contra os princípios e valores da Constituição de 1988: fomentou a polarização visceral, com largo emprego das mídias sociais e das notícias falsas, restringiu os poderes dos órgãos de fiscalização, atacou os pontos de veto institucionais – particularmente por meio de esforços para enfraquecer os tribunais –, trabalhou incessantemente para minar a legitimidade das eleições, além de fragilizar direitos de grupos vulneráveis, assim como constranger o exercício de liberdades civis de seus críticos. Somado a esse repertório dos novos populistas autoritários, Bolsonaro incitou a animosidade das Forças Armadas contra o STF, guardião da Constituição, e o processo eleitoral, coração de qualquer regime democrático. Nesse contexto desafiador, o STF e o TSE não vacilaram em assumir um papel militante na defesa do processo democrático.
O papel militante do STF foi desempenhado em pelo menos três dimensões principais: na defesa do processo eleitoral, na proteção de direitos fundamentais relevantes para a garantia das condições de cooperação democrática e no reforço aos mecanismos institucionais de controle do poder executivo central. De fato, o STF esteve atento ao método incremental de ataque às urnas, às instituições e aos direitos fundamentais, desempenhando um papel fundamental na defesa da democracia brasileira ao realizar intenso controle sobre amplos conjuntos de práticas infralegais e informais de desmobilização das instituições democráticas, bem como não se furtou ao confronto político institucional com as Forças Armadas no embate em torno da integridade das urnas eletrônicas.
Foi o que a corte fez, de maneira bem-sucedida, (i) no julgamento de ações estruturantes que envolviam, nos últimos anos, a tutela de grupos minoritários contra processos sistemáticos de violação de múltiplos direitos fundamentais (e.g., ADPFs das Favelas, da Saúde das Comunidades Indígenas na Pandemia, entre outras), (ii) no controle da validade de conjuntos de atos administrativos que resultavam na desinstitucionalização de mecanismos de fiscalização de atos do Poder Executivo (e.g., ADIs contra extinção de conselhos sociais promovida pelo governo Bolsonaro), (iii) na proibição da instrumentalização de instituições públicas para perseguição de opositores políticos (e.g., caso dos dossiês contra servidores públicos produzidos pela Abin); e (iv) na fiscalização de atos infralegais que possuíam potencial para incentivar a violência e a subversão do regime democrático (e.g., ADIs voltadas à invalidação de decretos que buscavam subverter o Estatuto do Desarmamento e possibilitar o amplo acesso pela população civil a armas de fogo).
O STF realizou, ainda, importante função de valorização da estrutura federativa do Estado e do papel do Senado Federal. Nos últimos anos, a federação brasileira funcionou como importante cordão de contenção ao arbítrio do governo federal. Não por acaso, a guerra de Bolsonaro contra os governadores remonta aos primeiros meses do seu governo e se intensificou à medida que a resistência democrática das lideranças locais se manifestou de maneira mais contundente. Nesse contexto, um conjunto relevante de decisões do STF adotou uma postura favorável à descentralização na atuação estatal em face da pandemia da Covid-19. A valorização, pelo STF, do vetor da autonomia federativa se mostrou fator determinante na contenção das mais diversas formas de abuso de poder.
Já o TSE desenvolveu a sua própria versão de jurisprudência militante na autodefesa da democracia, com respaldo do STF. Ao cassar o mandato do ex-deputado estadual Fernando Francischini, o tribunal deixou claro que a desinformação massiva contra a integridade do processo eleitoral também seria controlada no terreno das redes sociais. Foi por meio desse precedente que o TSE fixou um conteúdo próprio e autônomo para esse tipo de ilícito, que se refere à garantia da normalidade das eleições e da higidez do processo democrático de eleição de representantes e, portanto, não depende da existência de violação à igualdade de chances entre os candidatos.
Com apoio nessa decisão, o tribunal, no uso da sua competência normativa, positivou a existência do ilícito eleitoral de desinformação contra o processo eleitoral – “É vedada a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinja a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos” (Art. 9-A da Resolução TSE 23.610/2019). Baseado nesse dispositivo, o TSE condenou Bolsonaro pela prática de desinformação grave contra a integridade do processo eleitoral no conhecido episódio da reunião com os embaixadores. Tudo graças à observação da quadra histórica, em que projetos de desinformação se transformaram em estratégia virulenta de deslegitimação do processo eleitoral e, assim, do regime democrático.
A jurisprudência produzida pelo STF e pelo TSE já pode entrar na conta dos estudos comparados como uma bem-sucedida defesa judicial da democracia. E isso não é um feito trivial. Não faltam exemplos de cortes que, na tentativa de impor freios ao avanço do autoritarismo, se tornaram totalmente irrelevantes ou foram capturadas por projetos autoritários. É o caso da Rússia, onde a Corte Constitucional foi fechada em 1993 ao desafiar decisões do então presidente Boris Ieltsin, e depois restaurada sem qualquer relevância prática. E também o da Hungria, onde a corte teve suas competências reduzidas e sua composição alterada para impedir qualquer reação à agressiva investida autocrática de Viktor Orbán e seu partido Fidesz.
Além de produzir um amplo conjunto de decisões essenciais para a tutela da integridade do processo eleitoral, de direitos fundamentais básicos (inclusive de minorias discriminadas) e da garantia dos mecanismos institucionais de controle do abuso de poder (como a federação), o STF aproveitou o momento de maior coesão em torno da proteção da democracia para realizar a mais relevante mudança institucional no seu próprio funcionamento ao aprovar, sob a presidência da ministra Rosa Weber, alteração regimental para impor a revisão colegiada de todas as decisões do tribunal e fixou prazo máximo para a devolução de pedidos de vista. O reforço à dimensão colegiada do tribunal restringirá episódios de voluntarismo individual e conferirá maior autoridade às suas decisões.
Estamos de acordo com a reivindicação de Diego Werneck e Felipe Recondo de que não devemos renunciar à tarefa de exercer juízo crítico de cada uma das decisões proferidas nesse período pelo STF e pelo TSE, ainda que proferidas em defesa da democracia. Aquelas que se demonstrarem abusivas, merecem ser revistas. Porém, não podemos desconsiderar a dimensão do ataque.
Em síntese, defesa militante da democracia, por parte do Judiciário, exige submissão aos princípios e regras constitucionais e rigoroso respeito ao devido processo legal. Exige, igualmente, capacidade de avaliar a gravidade das ameaças autoritárias, para poder calibrar, com moderação e equilíbrio, a intensidade do uso de mecanismos de autodefesa da democracia. Na expressão tantas vezes repetida de Abraham Lincoln, a Constituição, em momentos de crise, não pode ser interpretada como um “pacto suicida”. Por outro lado, também não devemos olvidar a advertência de Montesquieu de que “até a virtude precisa de limites”. Equilibrar essas duas admoestações não é uma tarefa simples, mas é um imperativo que se impõe àqueles que são fiéis à democracia e estejam dispostos a defendê-la dos ataques e amaças autoritárias.
À medida que as investidas autoritárias sejam arrefecidas, as cortes deverão desmobilizar progressivamente a caixa de ferramentas da democracia militante, como parece ter sido a intenção da ministra Rosa Weber, ao propor mecanismos de autocontenção do tribunal. De qualquer modo, é fundamental reconhecer que a atuação do STF e do TSE nesse período de crise democrática, com todas as suas idiossincrasias, foi essencial para a sobrevivência da democracia. Se o regime democrático não sucumbiu à vaga de autocratização que nos assolou, e continua a ameaçar, muito se deve a postura militante desses dois tribunais.