Negócios

Decisões empresariais na pandemia

Uma administração que cumpra deveres fiduciários terá mais chances de receber proteções da business judgment rule

execução trabalhista contra empresas do mesmo grupo
Crédito: Pixabay

Por força de determinantes da crise, ocasionada pela pandemia global de Covid-19, algumas questões estão sendo amplamente discutidas em matéria empresarial, sobretudo aquelas que remetem à realização de assembleias remotas, suspensão do pagamento de dividendos, prorrogação de prazos para a realização dos conclaves e para o cumprimento de obrigações perante a CVM.

A toda evidência, além dessas questões, há um sem número de outros impactos que o contexto atual pode trazer para as companhias.

Um deles diz respeito à medida adotada pela Medida Provisória (MP) 931 de estabelecer que, salvo previsão diversa no estatuto social, caberá ao conselho de administração deliberar, ad referendum, assuntos urgentes de competência da assembleia geral.

A Lei de S.A. segue o princípio segundo o qual cada órgão tem competência privativa para a prática de determinados atos, que não podem ser delegadas a outros órgãos. No entanto, parece salutar que o poder de decisões urgentes possa ser atribuído ao Conselho de Administração, uma vez que na estrutura orgânica da companhia ele se insere entre a Assembleia Geral e a Diretoria.

Com isso se quer dizer que a medida da MP está em consonância com a noção da Lei de S.A. de, por vezes, permitir o afastamento dos acionistas da tomada de decisões estratégicas e reservar aos diretores o papel de executar as deliberações tomadas pelo Conselho.

No entanto, ela deve ser vista como solução excepcional, na medida em que constitui expressão máxima em matéria empresarial que as decisões devem estar nas mãos dos sócios, os quais assumem riscos para receber dividendos e ativos em caso de liquidação, pois serão os principais afetados pelas deliberações que forem tomadas no âmbito da sociedade.

Dessa forma, tal medida parece ser mais apropriada para o caso das companhias abertas, nas quais seria, se não impossível, ao menos irrazoável pensar na possibilidade de reunir os acionistas para a tomada de decisões que requeiram celeridade.

Em outros termos, o uso desmedido dessa alternativa poderia implicar discussões futuras, uma vez que as decisões tomadas pelo Conselho deverão ser posteriormente referendadas pela Assembleia Geral.

Nessa toada, o que ocorreria se a decisão não fosse aceita pelos acionistas em momento futuro? Como ficaria a produção de seus efeitos perante terceiros? Qual seria a responsabilidade dos acionistas que permitiram que tais decisões fossem tomadas ad referendum da Assembleia Geral? A quem compete a decisão de atribuir ao Conselho certas matérias? Poderia o Conselho, de ofício, tomar decisões sujeitas à posterior aprovação da Assembleia, sem consultar os acionistas? Qual seria a responsabilidade dos administradores por essas decisões?

A propósito da última indagação, não se pode perder de vista que nada obstante a decisão necessite ser célere, ela não estará imbuída de qualquer salvo-conduto no que diz respeito à responsabilização de seus tomadores.

Antes mesmo da pandemia, a CVM já havia lançado luz sobre o tema da tomada urgente de decisões, como no PAS Nº 24/2006, de cuja dicção se extrai que a tomada imediata de decisões não afasta o dever de observar o procedimento de aprovação interna da companhia, notadamente se não houver previsão de exceção ou flexibilização para o caso de decisões dessa natureza.

Para uma melhor elucidação, parece induvidoso que controladores e administradores estejam nesta crise permeados por uma profusão de decisões urgentes, as quais podem implicar responsabilização pela quebra de deveres fiduciários.

Sob essa perspectiva, a formulação de algumas questões tem dado mostra da complexidade enfrentada pelos titulares de órgãos da companhia, a saber: qual seria o momento ideal para que empresa da indústria farmacêutica anuncie seus resultados positivos na busca pela cura do vírus? Uma aérea poderia divulgar prognósticos positivos de suas atividades, mesmo diante das circunstâncias que permeiam o setor? Pode a companhia priorizar a venda de produtos essenciais para o mercado interno, mesmo tendo recebido propostas muito mais vantajosas de países mais ricos? Como fica a opção da companhia por doar seus produtos ou valores em espécie para ajudar comunidades e hospitais? Pode a companhia alterar suas atividades para a produção de produtos escassos (ex. álcool em gel, máscaras, ventiladores etc.) que não fazem parte de sua produção original (ex. montadoras de veículos, empresas de bebidas etc.)?

No que toca a esses questionamentos, muito embora no bojo das sociedades empresárias esteja embutido o objetivo de angariar resultados, para partilha entre seus investidores, a própria lei reconhece a possibilidade da prática de atos de liberalidade, desde que com razoabilidade e em benefício de seus empregados e da comunidade.

Tanto é assim que a Lei de S.A. também determina como um dos deveres do controlador o de usar seu poder com o fim de fazer a companhia cumprir sua função social. Com a mesma dicção, estabelece que compete ao administrador exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.

Sob essa perspectiva, embora a lei confira legitimidade a essas medidas, tanto o administrador quanto o controlador jamais podem perder de vista que seus atos se dão a partir da disposição do patrimônio alheio, de forma que todo poder a eles concedido deve estar acompanhado da exata medida de responsabilidade que lhe corresponda.

A toda evidência, o contexto de pandemia cria numerosos desafios para os executivos de companhias. Na situação atual, eles devem manter uma visão focada dos negócios, enquanto lideram a empresa com prudência e estabelecem as bases para uma rápida recuperação.

Os membros do Conselho de Administração e os diretores agora têm a tarefa de tomar decisões importantes rapidamente e estão sob grande pressão para obter resultados, enquanto também lidam com possíveis gargalos de fornecedores e quedas na demanda por seus produtos e serviços.

Quando a pandemia terminar, os administradores serão medidos pela maneira como lidaram com esses desafios. A experiência demonstra que muitas decisões tomadas durante uma crise são questionadas logo após o seu término, com tempo para reflexão e a vantagem de saber como elas foram tomadas.

Nesse contexto, muitos administradores podem ser encorajados a invocar a denominada business judgment rule, na tentativa de se eximir do dever de indenizar por eventuais prejuízos causados à companhia.

No entanto, a teoria em questão não deve ser compreendida como tabula rasa para a solução de todo e qualquer problema advindo de decisões desacertadas da administração, ainda que no contexto de crise.

Isso porque ela possui como ratio preservar a discricionariedade daqueles na gestão da companhia, desde que suas decisões sejam pautadas pela diligência, i.e., se tomadas de maneira informada, refletida e desinteressada.

Nas circunstâncias atuais, os administradores são frequentemente demandados a tomar decisões em prazos apertados e sob grande pressão para obter resultados, no entanto, tudo isso ocorre a partir de uma base limitada de informações, as quais poderão dar ensejo a futura responsabilização.

Para lidar com essa situação, é salutar a reflexão sobre algumas medidas orientadas a mitigar os riscos de responsabilização, dentre as quais iniciamos com a recomendação de documentar as decisões tomadas, seja por meio de atas ou relatórios, de forma a registrar o caminho trilhado pela administração para que se chegasse àquela decisão.

No que diz respeito às decisões com potencial de risco elevado, e que devam ser tomadas em circunstâncias extraordinariamente incertas, parece de todo necessário que medidas mais rigorosas sejam adotadas, uma vez que, se algo der errado, a cobertura de seguro de responsabilidade de executivos (D&O) apenas fornece proteção até certos limites e somente quando não se aplicam exclusões de cobertura. Nesse ponto é fundamental que os administradores busquem aconselhamento especializado em questões críticas.

Outro ponto fundamental diz respeito à organização da empresa para responder a uma crise. Aquelas com mais sucesso normalmente são capazes de adaptar rápida e eficientemente os processos e estruturas organizacionais, estabelecendo equipes multifuncionais, com delegação de tarefas.

A jurisprudência tende a sugerir que os membros do Conselho de Administração das companhias devem monitorar intensamente as atividades da Diretoria e seus subordinados. Nos últimos anos, os principais casos de responsabilidade envolveram conselheiros que não estavam próximos de entraves sensíveis, mas apenas marginalmente envolvidos. Portanto, é aconselhável monitorar de perto os departamentos envolvidos em questões de maior relevância e incentivar uma abordagem coletiva para a tomada de decisões importantes.

A prática dessas e outras medidas de diligência poderá evitar os efeitos prejudiciais da revisão judicial ou administrativa da CVM com relação ao mérito da decisão negocial.

Os deveres dos administradores em situação de crise, mesmo em um ambiente sem precedentes, ocasionado pela pandemia mundial, permanecem inalterados. Uma administração que cumpra adequadamente seus deveres fiduciários, exercendo sua função de supervisão, por meio da busca de informações, do teste de premissas e da tomada de decisões no melhor interesse da companhia, terá mais chances de receber as proteções da business judgment rule.